Sobre catástrofes anunciadas que os olhos não querem ver

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O tema das mudanças climáticas e dos seus impactos no mundo do trabalho é um tema que se impõe hodiernamente, a todos os cultores do Direito do Trabalho, especialmente no Brasil, após os traumáticos eventos climáticos que assolaram – e seguem a assolar – a população gaúcha: mais de 94% das cidades do Rio Grande do Sul foram atingidos pelas enchentes entre os meses de abril e maio de 2024; ou, mais exatamente, 441 municípios, com danos e transtornos para cerca de dois milhões de pessoas. E é sobre ele que trataremos na coluna deste mês, nobre leitor.

Não é possível olvidar que tais eventos estão diretamente relacionados com as mudanças climáticas globais ou, mais exatamente, com o chamado aquecimento global; e, logo, com o impacto das ações humanas ambientalmente deletérias, no curso das décadas – desde o início da Revolução Industrial, no final do século 18, até nossos dias –, na vida comum de todos os seres vivos. Impende tomar consciência desse fato, porque a boa ciência já discute se o ponto de não retorno em relação às mudanças climáticas foi ou não alcançado, i.e., se conseguiremos ou não regredir na atual trajetória climato-ambiental. Regredir, sim; porque, nesse caso, regredir na senda autodestrutiva da poluição acumulada significará progredir na preservação da humanidade e da civilização como a conhecemos.

No que diz respeito ao Direito do Trabalho, é importante entender que as mudanças climáticas já afetam a saúde de cerca de 70% dos trabalhadores em todo o planeta. Esses dados constam de um recentíssimo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT),[1] de 22 de abril de 2024, a revelar que as medidas de saúde e segurança do trabalho vão se tornar cada vez menos efetivas diante deste quadro de alterações climáticas que estamos vivendo neste momento. E – não nos enganemos – os trabalhadores são talvez a primeira camada da população a padecer com a concreção dos riscos gerados pelas mudanças climáticas; aliás,  com uma dose ainda maior de realidade, será exato afirmar que os mais intensamente atingidos serão frequentemente os trabalhadores mais pobres.[2]

A tragédia do Rio Grande do Sul demonstra de modo eloquente como os efeitos nefastos das mudanças climáticas, concretizando-se como chuvas torrenciais que engendram enchentes intermináveis, alcançam toda a população, mas castigam em especial as famílias mais carentes.

Com efeito, se todos são reféns dessa condição climática agressiva, as camadas mais pobres da população – e, nelas, os trabalhadores mais vulneráveis, incluindo os que estão à margem da legislação tuitiva, como os que operam no mercado informal, os que estão em condição de desemprego involuntário e os desalentados – terminam afetadas de modo mais cruel e rigoroso, porque geralmente estão instalados em regiões geográficas mais vulneráveis aos efeitos destes incidentes climáticos, além de deterem menores condições econômicas para se prevenirem ou fazerem frente às catástrofes climáticas.

Também compõem as populações especialmente atingidas os trabalhadores rurais que prestam serviços em regime sazonal, como os safristas, que acabam tendo as suas rotinas e expectativas de ganho diretamente afetadas pelas alterações climáticas, que acabam redefinindo os próprios períodos de safra ou mesmo prejudicando integralmente a atividade laboral no contexto de um período inteiro de safra que se perde em razão dos incidentes meteorológicos.

Podemos, todavia, ir ainda além.

Segundo a OIT, o cenário atual é o de 1,6 bilhão de trabalhadores expostos à radiação ultravioleta, com mais de 18.960 mortes anuais (câncer de pele não melanoma); e, de outro turno, 1,6 bilhão de pessoas provavelmente expostas à poluição atmosférica no local de trabalho, resultando em até 860 mil mortes ao ano entre as pessoas que trabalham ao ar livre. São, outrossim, mais de 870 milhões de trabalhadores na agricultura, provavelmente expostos a pesticidas, com mais de 300 mil mortes atribuídas ao envenenamento; e outras 15 mil mortes relacionadas à exposição a doenças parasitárias por vetores animais.

E o que isso tem a ver com as mudanças climáticas? Simples: o aumento da temperatura do planeta, ainda que discreto, especialmente em áreas mais úmidas do globo, tem levado a um relevante incremento da população de insetos, vetores de doenças e devoradores de plantações, donde a necessidade de um uso cada vez maior dos pesticidas, alguns carcinogênicos e/ou teratogênicos.

Estamos tratando de um problema essencialmente ambiental, na acepção mais holística e gestáltica da palavra, com impactos que não se limitam ao nosso tempo e que se estenderão para as futuras gerações. Estamos tratando, pois, do que dispõe o art. 225, caput, da Constituição Federal,  a garantir às atuais e futuras gerações o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Para mais, a legislação brasileira também não tem contribuído no campo regulatório, potencializando os impactos negativos destas mudanças climáticas. No último governo, por exemplo, constatou-se importante decréscimo nas atividades estatais de fiscalização do trabalho (SIT/MTE – ministério, aliás, extinto no início do governo Bolsonaro), por um inaudito preconceito ideológico associado à absoluta falta de investimentos, inclusive em matéria de saúde, segurança e higiene do trabalho.

De outra parte, uma das mudanças feitas entre 2019 e 2022 nos textos normativos do Ministério do Trabalho deu-se precisamente no Anexo 3 da Norma Regulamentadora 15, relativa ao calor, estabelecendo-se que a exposição de um trabalhador a condições térmicas ontologicamente insalubres derivadas de fontes naturais não assegura mais o direito constitucional ao adicional de remuneração por trabalho insalubre (CRFB, art. 7º, XXII), limitando administrativamente tal direito apenas às hipóteses de medições insalubres derivadas de fontes artificiais (Portaria SEPRT 1359, de 09 de dezembro de 2019).

Esta mudança impacta essencialmente a remuneração dos trabalhadores que estão justamente expostos ao calor solar, cada vez mais agressivo no contexto do aquecimento global. Se projetarmos isso para as próximas décadas, encontraremos um cenário desolador, de paulatina desproteção sem quaisquer compensações econômicas.

À mercê de tantas evidências intencionalmente ignoradas, com efeitos catastróficos a fustigar sobretudo os países do capitalismo periférico,[3] caberá talvez encerrar com uma fala de Emmanuel Macron, presidente da França, dita há algum tempo:

“Estamos perdendo a corrida para as alterações climáticas. Esse é o desafio da próxima geração: ganhar a batalha contra o tempo. Aprendemos, com sofrimento, como essas mudanças nos afetam e aos nossos irmãos e irmãs. Façamos agora o bom combate, enquanto ainda há tempo, e tem de ser nesta geração“.[4]

É como deve ser.

*

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[1] Relatório “Report at a glance: Ensuring safety and health at work in a changing climate”, 22 abr. 2024. Disponível em: https://www.ilo.org/publications/report-glance-ensuring-safety-and-health-work-changing-climate. Acesso em: 10 jul. 2024. Os dados, que remontam a 2020, revelam que,“[q]uando calculada como percentagem da força de trabalho global, a proporção aumentou de 65,5% para 70,9 % desde 2000. Além disso, o relatório estima que 18.970 vidas e 2,09 milhões de anos de vida ajustados por deficiência são perdidos todos os anos devido a 22,87 milhões de lesões ocupacionais atribuíveis ao calor excessivo”.

[2] V., e.g., a reportagem “Mudanças climáticas têm afetado a vida dos trabalhadores ao redor do mundo” (Rádio USP, 25 abr. 2024), com a nossa colaboração como docente da USP. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/mudancas-climaticas-tem-afetado-a-vida-dos-trabalhadores-ao-redor-do-mundo/#:~:text=Mudan%C3%A7as%20clim%C3%A1ticas%20j%C3%A1%20afetam%20a,adequar%20a%20essa%20nova%20realidade. Acesso em: 10 jul. 2024.

[3] “For less developed countries, the effects can be stark2, harming worker health and reducing labour supply and labour productivity, and even eliminating sources of livelihood altogether. To adequately match the scale of the challenge, governments will be required to strengthen resilience to the negative occupational impacts of climate change. This commendable task must be followed by sensible and proportionate climate policies and regulations. It must also be underpinned by investment in human, technical and economic sources for global climate action in conjunction with capacity building and targeted support. In the context of a climate crisis, human rights-based climate plans and strategies, if effectively implemented, can constitute a safeguard to respect the fundamental right of workers to a safe and healthy working environment”. BUCOCK, Marcus. The impacts of climate change on OSH. [s.l.]: IOSH, 26 abr. 2024. Disponível em: https://iosh.com/news-and-opinion/the-impacts-of-climate-change-on-osh. Acesso em: 10 jul. 2024.

[4] O mesmo Macron, aliás, que consternou os ambientalistas ao perguntar: “Qui aurait pu prédire la crise climatique ?”.