Em dezembro de 2023, após uma participativa votação online, a Oxford University Press elegeu a palavra situationship como a segunda palavra mais importante do ano. O neologismo é fruto da fusão das expressões situation (situação) e relationship (relação) e designa uma nova espécie de relacionamento afetivo, que não chega a ser formado por puros encontros casuais (como acontece com os meros “ficantes”, categoria já consagrada no inventivo português do Brasil), mas também não exprime a pretensão de receber um rótulo formal, nem mesmo como um simples namoro. Trata-se, em suma, de uma relação em que os envolvidos se sentem mutuamente confortáveis, mas não refletem sobre qualquer compromisso, nem “pensam em um futuro juntos”, constituindo um “sistema sem obrigações”.[1]
A consagração léxica da situationship é o reflexo simbólico de um dado real: a transformação progressiva na forma como as pessoas experimentam e vivem o afeto. Em uma realidade “líquida” – para usar o termo tão explorado de Bauman[2]–, a formação de compromissos e garantias para o futuro perde gradativamente a relevância, a ponto de as pessoas estarem preferindo estar em uma “situação” do que em uma efetiva “relação”, ou, ao menos, em um meio do caminho entre elas.
Não se trata do velho e antiquado “pular a cerca”, mas de eliminar as cercas por completo ao ponto de nem ser preciso mais pensar sobre qualquer espécie de demarcação. Rótulos deixam de ser importantes. Tudo isso naturalmente deve ser fruto do consenso e de um genuíno exercício de autonomia dos envolvidos, com naturalidade e transparência. E é aí que entra o desafio para o Direito de Família.
Por toda parte, e também no Brasil, os estudos sobre Direito de Família vêm apontado para a crescente tendência a assegurar autonomia àqueles que se vinculam por relações familiares. No plano jurídico formal, após o progressivo (e batalhado) reconhecimento da autonomia da mulher casada – considerada até 1962 como pessoa relativamente incapaz diante do chefe da sociedade conjugal –, seguiu-se um movimento pelo reconhecimento da liberdade dos filhos de participar ativamente no seu processo educacional e formativo. Em paralelo a isso, lutas inclusivas lograram abrir espaços de autonomia na própria constituição das relações familiares, primeiro com o reconhecimento normativo e constitucional da união estável e, anos depois, com a célebre decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADPF 132, que assegurou às famílias homoafetivas os mesmos direitos reservados àqueles que vivem em união estável ou em casamento civil.[3]
Essa progressiva marcha do Direito de Família rumo à autonomia e à liberdade não consiste, todavia, em uma linha contínua, sem sobressaltos ou retrocessos. Basta mencionar que as relações afetivas simultâneas continuam a enfrentar resistência no STF. O precedente mais conhecido da Corte foi formado em 2014 no julgamento de uma disputa por pensão previdenciária travada entre a esposa de um falecido fiscal de rendas da Bahia, que atendia pelo nome emblemático de Waldemar do Amor Divino, e sua companheira com quem o falecido havia tido nove filhos.
Apesar do inspirador voto vencido do ministro Ayres Britto, o Supremo acabou rejeitando qualquer status familiar à companheira, mãe de – repita-se – nove filhos de Waldemar. O STF retornou ao tema em 2020 e acabou por reiterar o antigo entendimento, concluindo que “a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.”[4]
Este exemplo ilustra como o avanço pela liberdade e pela autonomia no campo do Direito de Família não é constante. Por vezes, considerações atinentes à proteção patrimonial das pessoas envolvidas entram em cena, exprimindo uma opção mais ou menos atual do próprio legislador brasileiro. Caso emblemático foi julgado na semana passada também pelo Supremo, que analisou a constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, que obriga a adoção do regime de separação de bens em casamento envolvendo pessoa maior de 70 anos.
Em decisão capitaneada pelo ministro Luís Roberto Barroso, a Corte, ao examinar o tema, fixou a seguinte tese de repercussão geral: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública.”[5]
A decisão só produz efeitos para o futuro, preservando-se, como não podia deixar de ser, o regime da separação obrigatória de bens de pessoas que se casaram ou passaram a viver em união estável antes da decisão do STF, assegurada sempre, consoante o disposto no artigo 1.639, § 2º, do Código Civil, a possibilidade de alteração do regime de bens por meio de autorização judicial, no caso do casamento, ou de manifestação em escritura pública firmada em cartório, no caso da união estável.[6]
A decisão exprime bem o dilema entre autonomia e segurança: a um só tempo, a Suprema Corte entendeu necessário preservar a eficácia do artigo 1.641, II, da codificação civil sobre todas as relações pretéritas, ao mesmo tempo em que abriu um novo espaço de autonomia para o futuro. A marcha rumo à liberdade não se dá sem freios, contrapesos e ponderações, pois o Direito é, em última análise, o terreno do respeito à lei que vigora ao tempo dos acontecimentos – o eternamente atual tempus regit actum.
Nos dias de hoje, o desafio do Direito de Família parece, contudo, mais extremo: não se trata de abrir espaços de autonomia no regramento das relações jurídicas familiares, mas frear o próprio campo de incidência do Direito de Família para não converter em relações jurídicas familiares toda e qualquer forma de convívio ou contato afetivo. Não é algo simples.
Para muitos, soa quase paradoxal que, após décadas de luta por inclusão sob o manto do Direito de Família, as pessoas estejam hoje pretendendo o avesso: nem casamento, nem união estável, nem mesmo o namoro (capturado no seu romantismo e convertido já em contrato por perspicazes advogados), nem mesmo uma relação, mas apenas uma… situationship. Para outros, a ausência de expectativas, deveres e rótulos é uma tendência irresistível no campo da realização pessoal das novas gerações, que não desejam se prender a nada – mesmo quando isso implique menor proteção às próprias expectativas sob o prisma jurídico.
Se o Direito de Família brasileiro irá ou não conseguir se autoconter, mitigando o histórico paternalismo que o caracteriza – paternalismo que, diga-se, ainda se mostra muitas vezes importante para evitar injustiças na vasta e complexa realidade brasileira –, é uma pergunta que deverá ser respondida em breve. Enquanto isso, é bom estar atento à segunda palavra mais importante do ano.[7]
[1] Confira-se a reportagem publicada em 2 de fevereiro de 2024 no El País sob o título “Not a couple, not friends and not fuck buddies: What is a ‘situationship,’ the non-relationships that plague those who hook up in the 21st century?” (El País, 2.2.2024).
[2] Ver Zygmunt Bauman, Amor Líquido, Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
[3] Sobre o tema, confira-se STF, Plenário, ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 5.5.2011.
[4] STF, Plenário, RE 1.045.273/SE, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 19.12.2020.
[5] STF, Plenário, ARE 1.309.642/SP, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 1.2.2024.
[6] “Art. 1.639. §2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.”
[7] A primeira palavra foi “rizz”, mas isso é tema para outra coluna.