Quando falamos em reforma, é intuitivo pensarmos que reformamos para melhor. Basta verificarmos uma reforma em nossas casas: investimos tempo no projeto, conversamos e pesquisamos com diversos especialistas, vamos em busca dos melhores preços e condições.
Passada a fase do planejamento, vem a fase de transição, na qual escolhemos ficar em casa durante a obra (o que causa diversos transtornos aos membros da família) ou até mesmo ir para uma moradia provisória. Independentemente de qual seja a escolha, haverá dor de cabeça pois estaremos em um sistema pior do que aquele que estávamos e muito pior do que aquele esperado no futuro.
Quando finalmente a reforma acaba (se é que ela acaba definitivamente) ou damos ela por acabada (fazemos a reforma possível, de acordo com o que o nosso orçamento, tempo e interesses discrepantes dos integrantes da família permite), entramos numa casa nova.
Espera-se que, dentro dessa casa nova, vivamos de uma maneira muito melhor, afinal, passamos por um momento difícil que valeu a pena pois moraremos de um jeito diferente, em um lugar que permite uma convivência mais gostosa com os familiares e amigos ao mesmo tempo que nos fornece privacidade e autonomia para exercermos nossa individualidade. Nossos móveis, decoração, estruturas, foram colocados e pensados de forma a permitir essa convivência mais gostosa e harmônica.
Pois bem, agora imaginem que nós mudemos para essa nova casa com a esperança de que essa nova estrutura nos trará esses benefícios, mas, no decorrer do tempo, os velhos problemas familiares voltam a aparecer. Por exemplo:
foi pensado um espaço de convivência para que a família possa ter momentos em conjunto, mas os filhos adolescentes insistem em isolar-se em seus quartos, sem travar um diálogo com seus pais;
foi pensado um cantinho de privacidade aos pais, para que pudessem ter seus momentos, mas os filhos pequenos insistem em deixar brinquedos espalhados, pintar os móveis com giz de cera e tinta guache;
foi pensado uma mesa para refeições, mas ela acaba sendo utilizada como apoio de materiais de trabalho e outros apetrechos, uma vez que a família não alterou o seu velho hábito de fazer suas refeições no sofá.
Ou seja, a família gasta dinheiro, tempo, se estressa, passa por um período de transição dificílimo, mas a mudança na estrutura da casa de nada adiantou, a dinâmica das relações familiares continuou a mesma.
E sabemos o motivo por trás disso: de nada adianta mudar cômodos, móveis, decoração, dentre outros, se os integrantes da família não entenderem que deve haver uma mudança de mentalidade para que se conviva naquela nova casa da forma como ela foi pensada.
E o que acontece caso essa mentalidade não mude? A mesa de jantar vira mesa de escritório permanentemente, o sofá vira o local de refeições permanente; o cantinho que era privativo vira o quarto de brinquedos.
Com o tempo, percebe-se, inclusive, que é melhor trocar alguns móveis, mudar a cor da parede, tirar aquela mesa de centro, estante e poltrona que, na verdade, foram apenas uma sugestão do arquiteto porque a família nunca quis aquilo de verdade e não estava disposta a viver de forma que aqueles objetos se encaixassem em sua rotina.
Ou seja, invariavelmente, serão feitas pequenas reformas depois da reforma original para readequar a casa à rotina que a família continuou a viver e se negou a alterar, apesar de toda a estrutura montada para tanto.
Pois é, esse é o grande risco que corremos com a reforma tributária. O risco de passarmos por tudo isso, tempo com o projeto, recursos, período de transição dificílimo, custos de conformidade para se adaptar ao novo sistema, para depois voltarmos a um sistema tão ou mais complexo do que anterior.
Até aí, nenhuma novidade. Toda reforma corre esse risco. Se nos amedrontarmos diante dele, nada seria reformado.
No entanto, movimentos recentes das autoridades nos fazem pensar que a realidade descrita acima está mais perto do que se imagina no que se refere à reforma tributária: (i) a rejeição do convênio 174/2023 pelo Estado do Rio de Janeiro (Ato Declaratório Confaz 44); e (ii) o movimento recente dos Estados para aumentar as alíquotas de ICMS para que não haja perdas de arrecadação aos Estados quando a novo sistema tributário (reformado) entrar em vigor.
No primeiro caso (rejeição do Convênio 174), os Estados se reuniram no Confaz e decidiram pela publicação do Convênio, que basicamente previa que os contribuintes que transferem mercadorias entre estabelecimentos de sua titularidade seriam obrigados a transferir os créditos correspondentes a essas mesmas mercadorias.
Com a publicação, contribuintes que estavam ansiosos por uma solução do problema colocado em decorrência do julgamento da ADC 49 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), fizeram consultas, verificaram adaptações aos sistemas, pediram pareceres jurídicos e contábeis para verificar a melhor forma de cumprir a norma, consultaram seus auditores. Ou seja, fizeram tudo aquilo que deve ser feito diante de uma nova norma: adaptar-se. Com isso, investiram tempo e recursos.
Dias depois, o Estado do Rio de Janeiro, que estava presente na reunião do Confaz resolve se manifestar pela não ratificação do Convênio. Como o Convênio depende de unanimidade, teve seus efeitos revogados. Não se discute aqui se o Convênio era certo ou errado, bom ou ruim, mas se chama a atenção para a atitude contraditória de um Estado que estava na reunião do Confaz e só manifestou sua inconformidade com a norma ali acordada depois de sua publicação. Tal fato gera uma enorme insegurança jurídica, além de desconfiança por parte dos contribuintes que deverão aguardar uma nova norma para repetir todo o processo de adaptação gastando mais recursos e tempo nessa tarefa.
É um Estado que não aceita aquilo que foi acordado coletivamente por entender que tal norma (elaborada de forma coletiva e colaborativa) é contrária aos seus interesses particulares.
Pior ainda é a situação descrita no segundo caso, em que diversos Estados aumentaram e/ou pretendem aumentar suas alíquotas de ICMS. Alguns argumentam que, como a reforma tributária estabelece que a divisão das receitas do IBS será realizada com base na arrecadação de ICMS dos Estados no período entre 2024 e 2028, os Estados agiram dessa forma para garantir uma parcela maior de arrecadação do IBS. Outros argumentam que os Estados estão agindo individualmente para compensar perdas relacionadas a incentivos/reduções de carga tributária de ICMS implementadas no passado. Independentemente dos motivos, trata-se de uma postura individualista dos Estados em busca de uma arrecadação maior.
O que esses episódios nos indicam? O que esses episódios têm a ver com a Reforma Tributária?
Eles indicam fortemente que os moradores da casa que está sendo reformada não estão preocupados em alterar seu estilo de vida para se adaptar à casa que ficará pronta após a reforma, à nova estrutura, móveis e decoração. É como se os Estados fossem os filhos adolescentes que insistem em isolar-se em seus quartos, em vez de conviver com a família na área comum, como foi pensado no projeto de reforma da casa.
Tais condutas indicam uma postura pouco colaborativa dos entes envolvidos, indicam que estão pensando em sua própria arrecadação e interesses em vez de pensar em um sistema mais coletivo, colaborativo, em um pacto federativo mais harmônico e em uma relação com o contribuinte mais amigável.
As duas condutas acima servem de alerta. No momento em que a discussão sobre a reforma tributária é tão intensa, deveriam os Estados estarem mais preocupados com os princípios que a norteiam, especialmente aqueles da cooperação entre os entes federativos e do estabelecimento de uma outra relação entre Fisco e o contribuinte. No entanto, as condutas são diametralmente opostas e seguem a velha cultura tributária brasileira.
Tal cenário preocupa e representa um sério risco à Reforma Tributária. Já escrevi neste espaço anteriormente[1] que o maior problema do sistema atual não é o texto constitucional, mas o que foi feito após a sua promulgação. Pelos episódios que estamos vendo na construção da reforma, temos um sério risco de cairmos no mesmo lugar.
Se continuar assim, não tardará para que a mesa de jantar vire mesa de escritório, para que o sofá vire o local de refeições, para que o IBS seja completamente desvirtuado de acordo com os interesses individuais de cada Estado, para que as autoridades fiscais continuem tendo a mesma postura de inimizade diante do contribuinte e para que os contribuintes utilizem de todos os instrumentos para pagar menos tributo, aumentando o contencioso.
É muito bom termos arquitetos idealizadores porque eles realizam projetos que podem induzir os moradores de uma casa a conviver de maneira diferente após a reforma. No entanto, o maior fracasso do projeto é não considerar as particularidades da família que viverá naquela casa, espacialmente aqueles aspectos mais arraigados em sua cultura.
Caso não haja essa convergência e, pelos eventos acima, a indicação é de que ela ainda não existe, teremos gastado tempo e recursos, passado por um período de transição dificílimo e continuaremos a ter um manicômio tributário.
Autoria
Marcel Alcades Theodoro – Advogado em São Paulo, especialista em Direito Tributário pela FGV, sócio de Mattos Filho Advogados
[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/emendas-a-procura-do-tributo-perfeito-o-vilao-icms-vs-o-super-iva-26042023