Recentemente, em defesa do incremento de parcelas remuneratórias da magistratura, a Associação de Juízes divulgou nota em que afirmava: “O trabalho diligente de juízes e juízas federais trouxe benefícios à nação brasileira e em 2022, houve recuperação de créditos fiscais da União no valor de R$ 17 bilhões”. Não discuto aqui o mérito ou demérito do acréscimo de vantagens remuneratórias aos juízes.
É função de um sindicato defender melhorias salariais. Destacar a importância da categoria e seu bom desempenho é parte da estratégia. Problema é achar que a função do juiz é defender os interesses do fisco. O erário é defendido pela advocacia pública. Ou pelo Ministério Público, quando há desvios. Juízes devem julgar com imparcialidade e isenção, independente das partes. A função do Judiciário não é recuperar créditos fiscais. É julgar bem e celeremente.
Se um particular, pessoa física ou jurídica, litiga contra a Fazenda, espera isenção judicial. Se o juiz entende que pendendo para a Fazenda está “prestando um serviço” pelo qual fará jus a remuneração aquinhoada, nega a função jurisdicional.
A própria existência de “Varas da Fazenda Pública” (que na origem eram varas dos feitos da Fazenda) acabou por perverter o sistema. O credor ou devedor do erário merecem ter suas pretensões analisadas por um juiz imparcial, como aliás prevê, há 75 anos, a Declaração Universal dos Direitos do Humanos. Quando em juízo a advocacia pública economiza recursos ou obtém um crédito, das duas, uma: ou o valor era devido e, neste caso, o juiz nada mais fez que cumprir o direito, nada havendo para se vangloriar. Ou então o proveito econômico não era devido ao fisco e, portanto, a decisão operou contra o Direito para satisfazer o erário.
A desapercebida gafe da associação de juízes reforça o problema do viés do decisor. A magistratura que assume como sua função defender o erário, a ponto de usar os resultados disso como argumento para elevar salários, aceita como válida a premissa de que a Fazenda precisa ser defendida pelo juiz. Este viés amesquinha, de partida, o direito do particular que postula em face do fisco.
O contribuinte que contesta um tributo é então visto como sonegador. O servidor que pleiteia um diferença salarial, é tido por marajá. O fornecedor que cobra uma fatura ou um desequilíbrio, é um corsário dos cofres públicos. A independência do Judiciário vai sendo corroída. Até o ponto em que seus os membros se sentem à vontade para apresentar a conta dos seus préstimos.
Assim o fazendarismo encontra o corporativismo de perfil patrimonialista. Ao dividir os interesses em “sagrados” e “profanos”, a magistratura vende a ideia de estar alinhada com os interesses “elevados” “da Nação” (e do erário) contra os interesses “profanos” dos particulares que litigam contra o Estado, como mostra o instigante artigo de Fabiana Luci de Oliveira. Cria-se uma política pública do fiscalismo.
Há cem anos, Rui Barbosa proferia a Oração aos Moços. Nela advertia os formandos que evitassem “contrair a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de ‘fazendeiros’. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado”. Rui segue atual.