Será que o brasileiro gostaria de contratar um city manager?

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No segundo semestre deste ano, teremos as eleições para as prefeituras e câmaras de vereadores do país. Em pauta, diversos problemas públicos como segurança e mobilidade urbana estão em voga na agenda político-eleitoral municipal. Ademais, vários desafios contemporâneos, como o processo de urbanização com déficits de planejamento, o incremento da desigualdade social a partir da pandemia de Covid-19 e as pressões inadiáveis por um modelo de desenvolvimento sustentável local, colocam para a Administração Pública municipal a necessidade de uma maior e melhor profissionalização.

Nesse contexto, modelos de gestão que promovam a inovação em serviços públicos e o desenho de políticas públicas pautado em evidências e boas práticas – internacionais e nacionais – podem oferecer caminhos promissores para as cidades brasileiras, sobretudo às capitais e aos aglomerados urbanos de grande porte.

Refletindo sobre a gestão pública municipal no Brasil, uma análise em termos de direção pública que se pode levar a cabo é sobre a possibilidade de se adotar o modelo de city manager, uma prática de longa data nos Estados Unidos, onde dirigentes altamente qualificados são contratados por conselhos municipais para gerenciarem estrategicamente as operações das cidades[1].

Em linhas gerais, esse modelo busca promover uma administração local baseada em critérios de eficiência, responsabilidade, transparência e inovação; dados recentes[2] mostram que aproximadamente, 60% dos city managers têm um mestrado em Administração Pública (MPA), salientando o foco da ocupação desses cargos pela capacitação técnica e gerencial. Esses profissionais, que frequentemente acumulam uma média de 11,5 anos de experiência antes de assumirem o posto de city manager, trazem uma estabilidade e continuidade no cotidiano da gestão pública local nos EUA, com salários que refletem o alto nível de responsabilidade e de competência exigidos, oscilando entre US$ 187 mil e US$ 700 mil anuais[3].

Tal modelo nos leva a ponderar sobre a realidade da liderança municipal no país, na atualidade. Jogando luz nas últimas eleições municipais, em 2020[4], e analisando as informações dos(as) prefeitos(as) eleitos(as) na ocasião, nota-se que: a maioria são homens brancos, com média de idade de 49 anos; 55% possuem formação superior, 25% foram reeleitos, e cerca de 20% declaram possuir um patrimônio superior a R$ 1 milhão, um contraste marcante com o fato de que menos de 0,2% da população brasileira se enquadra nessa faixa de estoque de riqueza. Se focalizarmos tão-somente as capitais estaduais, 100% dos mandatários políticos já ocuparam algum cargo público anteriormente. E, pasmem, há apenas uma mulher prefeita nas 26 capitais! Conclui-se, por aproximação, pela predileção do eleitor por políticos profissionais e/ou membros da elite econômica local/regional.

A reflexão sobre a implantação do modelo de city manager no Brasil implica várias considerações. Talvez, a primeira de todas, seja a sua difícil adaptação ao panorama brasileiro, haja vista a dinâmica política local e a não separação, na cultura política brasileira, entre as atividades políticas e a seara administrativa. Como garantir, por exemplo, que a seleção de um city manager pelos vereadores seja baseada em critérios de competência de direção, livre de influências políticas ou partidárias? Enfim, reconhecemos que a consolidação de um cargo com níveis comparáveis de autonomia e responsabilização enfrenta obstáculos significativos na nossa realidade, perante a postura e legitimidade da figura do prefeito como o “gestor” central nas nossas municipalidades; uma tradição administrativa na qual o Poder Executivo local mantém uma influência preponderante sobre as decisões de gestão urbana.

No Brasil, por sua vez, os secretários municipais das áreas de finanças/fazenda, planejamento/orçamento e/ou gestão/administração desempenham funções críticas para o sucesso da administração pública local. No entanto, quando comparamos a qualificação desses profissionais com os city managers americanos, notamos que eles possuem uma formação acadêmica bem menos densa em gestão e políticas públicas. Da análise curricular de 54 ocupantes dessas pastas nas capitais, apenas 1/3 deles possuem algum tipo de especialização lato sensu, e um número ainda menor apresenta títulos de mestrado. Isso, de alguma forma, aponta para uma possível lacuna na capacitação técnica e gerencial desses profissionais que ocupam esses postos estratégicos em prol da coordenação macroadministrativa nas prefeituras das principais cidades brasileiras.

Há ainda uma necessidade de aprimoramento também da oferta acadêmica para gestores de cidades no país. Investigamos, preliminarmente, um rol de 20 cursos de pós-graduação stricto sensu em Administração Pública no Brasil e constatamos que a maioria deles (55%) não oferece disciplinas voltadas diretamente para as questões urbanas. Grosso modo, isso indica uma lacuna significativa na preparação dos gestores municipais para enfrentar os desafios específicos da administração de cidades. Além disso, há uma concentração geográfica desses cursos em estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, desvelando uma distribuição desigual das oportunidades de formação acadêmico-profissional avançada em gestão pública pelo território nacional.

Embora a introdução do modelo de city manager nos moldes norte-americanos enfrente resistências no Brasil, sua discussão estimula a busca por uma gestão pública municipal mais eficaz e inovadora em território nacional. A consideração desse referencial como pressuposto teórico incita debates fundamentais para o futuro da administração das cidades no país, focando no bem-estar da população e englobando temas como responsabilidade fiscal, governo aberto (transparência e participação cidadã), modernização/continuidade administrativa e orientação para resultados nas políticas públicas locais.

Logo, acreditamos que a capacitação de gestores públicos locais, por meio de cursos de pós-graduação em Administração Pública (e correlatos) e programas de MBA focados na gerência de cidades, desponta como iniciativa fundamental. Além disso, a adequação da remuneração desses profissionais às responsabilidades e desafios enfrentados é essencial para atrair e fixar dirigentes públicos competentes e talentosos, que possam contribuir significativamente para a evolução da governança pública municipal.

Portanto, enquanto exploramos a possibilidade de introduzir city managers nos municípios brasileiros, urge avolumarmos o diálogo – de maneira aberta e contínua – sobre quais são os caminhos para aperfeiçoarmos a gestão pública local no país. Esse é um convite à reflexão para todos nós, cidadãos, políticos, gestores públicos e acadêmicos. Afinal, o desafio está posto: como podemos construir cidades mais justas, sustentáveis, inclusivas e prósperas para as futuras gerações?

[1] MAY, Michael. What Does a City Manager Do? (Duties, Salary and Skills). What Does a City Manager Do? (Duties, Salary and Skills), 2023. Disponível em: https://www.indeed.com/career-advice/finding-a-job/what-does-a-city-manager-do. Acesso em: 31 jan. 2024.

[2] REDDICK, Christopher G.; DEMIR, Tansu. Professional Identification and City Managers: An Analysis of a National Survey. International Journal of Public Administration, v. 37, n. 3, p. 174–182, 2014.

[3] https://govsalaries.com/salaries/city-manager-salary

[4] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/17/perfil-medio-do-prefeito-eleito-no-1o-turno-no-brasil-e-homem-branco-casado-com-ensino-superior-e-49-anos.ghtml