Por convite do Estado brasileiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou um período completo de sessões em Brasília e Manaus no mês de maio de 2024. Nestes dias, houve uma série de símbolos que foram muito potentes para a proteção multinível e dialógica dos direitos humanos na América Latina. Por exemplo, a instalação das sessões do tribunal interamericano no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) e a realização das audiências da Corte IDH na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
No entanto, o aspecto mais importante se refletiu na atitude das autoridades nacionais ao receber o tribunal interamericano. As duas intervenções públicas do ministro Luís Roberto Barroso foram uma demonstração fundamental da atitude judicial dialógica de um tribunal nacional com os órgãos regionais de direitos humanos. O ministro Barroso relatou as decisões que o poder judiciário do Brasil adotou para proteger o meio ambiente com base na Opinião Consultiva (OC) 23 da Corte IDH. Em especial, ele se referiu à decisão do marco temporal, ao fundo amazônico ou à reconstrução do Estado do Rio Grande do Sul.
Também abordou os direitos das pessoas privadas de liberdade (PPL) e defendeu as decisões estruturais sobre a matéria que foram construídas com base nos padrões interamericanos estabelecidos na OC 29 de 2022 da Corte IDH. Entre muitos outros aspectos, o ministro Barroso evidenciou a fluidez do STF para interagir com o direito interamericano na luta contra a pobreza e a desigualdade ou a importância dos parâmetros regionais de direitos humanos para os avanços do STF nas ações afirmativas para os afrodescendentes.
Frente às promessas não cumpridas do constitucionalismo latino-americano, o ministro Barroso indicou que estas ocupam a agenda da Corte IDH e afirmou: “E para isso estamos também nós, no STF, para fazer avançar esta agenda”. Concluiu reconhecendo que no STF buscam “implementar no Brasil na maior extensão possível as decisões da Corte IDH e estamos aumentando essa interlocução com a Corte” por meio de um sistema eletrônico que monitora o cumprimento das decisões do tribunal interamericano. Finalizou com a apresentação dos documentos nos quais o próprio STF divulga as decisões da Corte IDH.
O que podemos extrair desta atitude do presidente do STF? Além de outras explicações, destaque-se a ausência de vaidade judicial. Este elemento é muito relevante se levarmos em conta que o STF é o tribunal constitucional mais poderoso da região. Em vez de usar sua força, legitimidade, história e arraigo institucional para defender a soberania, suas competências constitucionais, suas interpretações locais ou a configuração doméstica da estrutura do Estado, a intervenção do ministro Barroso reflete que as autoridades judiciais entendem que os problemas que a Corte IDH e os juízes nacionais enfrentam são compartilhados e, sobretudo, comuns. De modo que não faz sentido continuar um monólogo do mais forte ou perpetuar desacordos nos quais apenas o ser humano sofre.
Esta é uma demonstração de que os juízes nacionais entendem como obrigatório, mas sobretudo útil e imperativo, participar no diálogo regional e global sobre a proteção coordenada e cooperativa dos direitos humanos. Certamente, não é casual que isso ocorra no contexto de uma agenda marcada pela emergência climática em que pouco ou nada valem as fronteiras nacionais ou as tradições constitucionais identitárias. A catástrofe climática deixa sem fundamento qualquer intenção de manter as trincheiras nacionais ou os monopólios judiciais na interpretação dos direitos.
Esse gesto de humildade judicial é ainda mais importante se considerarmos que a Corte IDH não tem sido precisamente condescendente com o Brasil ou com seus tribunais nos últimos anos. A responsabilidade internacional desse Estado foi declarada em quinze ocasiões. Apesar disso, e frente à realidade dialógica, a presidenta da Corte IDH também reconheceu o papel do STF e do poder judiciário brasileiro na defesa da democracia e o alto grau de independência dessas autoridades como sua fortaleza intrínseca.
Certamente, a humildade judicial não é suficiente. Trata-se apenas de um elemento subjetivo e intencional valioso que deve ser completado com ações concretas. O STF continua sendo um tribunal que olha mais para a jurisprudência alemã, norte-americana e europeia do que para a interamericana. Embora o gesto de humildade judicial mostrado pelo STF seja significativo, é importante reconhecer que persistem vários desafios decorrentes de uma cultura jurídica profundamente arraigada na ideia clássica de soberania. Esta cultura jurídica enfatiza a autonomia e a independência dos tribunais nacionais e pode dificultar o diálogo e a cooperação com os órgãos regionais, como a Corte IDH.
A resistência em abandonar as interpretações locais em favor de uma abordagem mais cooperativa e multinível reflete não apenas uma questão de vaidade, mas também uma adesão às tradições constitucionais que historicamente priorizaram a soberania nacional. Para avançar na consolidação de um sistema de proteção dos direitos humanos verdadeiramente integrado, é essencial superar estas barreiras culturais e fomentar uma maior abertura à colaboração e ao diálogo regional e internacional. É crucial lembrar que a verdadeira justiça não se mede pela soberania de um tribunal, mas por sua capacidade de ouvir, dialogar e proteger os direitos humanos em todos os níveis.
Acima dos desacordos ou das barreiras estritamente jurídicas, em muitos casos, a vaidade judiciária tem sido mais determinante para a inexistência do diálogo judicial. Nesse jogo de inflações, os únicos afetados foram os direitos das pessoas, a vocação de proteção do ser humano que legitima as autoridades judiciais, a responsabilidade internacional do Estado respectivo e o dinheiro dos contribuintes com o qual foram pagas as respectivas indenizações. Por isso, é justo destacar que deixar essa vaidade de lado é um dos muitos passos que devem ocorrer para a verdadeira consolidação do sistema multinível de proteção dos direitos humanos na América Latina. O tribunal constitucional latino-americano mais poderoso mostrou-se humilde nesse diálogo. E isso não é pouco.