Sem fato, sem foro

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Neste ensaio, proponho desenvolver reflexões críticas sobre a Ação Penal 1.666/DF, apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, em julgamento realizado pelo plenário daquela corte.

Trata-se de caso paradigmático em que se discutem não apenas as condutas atribuídas ao acusado, mas também os limites do exercício do poder punitivo estatal em um regime democrático. Este assunto é ainda mais sensível porque se insere no contexto das ações penais vinculadas ao denominado Inquérito 4.781, das “Fake News”, e ao Inquérito 4.874, das “milícias digitais”, ambos instaurados como desdobramentos de uma linha investigativa voltada ao enfrentamento de ataques contra as instituições.

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Ainda, vincula-se aos inquéritos específicos sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, notadamente os de número 4.917, 4.918, 4.919, 4.920, 4.921, 4.922 e 4.923/DF, instaurados para apurar crimes como associação criminosa, incitação ao crime, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Não por outro motivo, muitos desses personagens, todos misturados entre si, acabaram denominados “golpistas”, embora inúmeros deles tenham sido condenados por crimes diversos.

Registre-se, desde logo, que, no plano acadêmico, uma visão crítica à jurisprudência adotada pelo Supremo Tribunal Federal, não significa, de modo algum, ignorar a relevância e a dignidade dessa instituição para a democracia brasileira, nem tampouco desconsiderar seu papel essencial para a preservação do Estado de Direito. Ao contrário, é ao mesmo Supremo Tribunal Federal que compete assegurar e garantir, no Brasil, a liberdade de crítica às decisões judiciais, como expressão legítima do pluralismo democrático[1].

O réu Joel Muru Chagas Machado, profissional autônomo, foi condenado, em sessão de 2024, em concurso material pela prática dos crimes de associação criminosa (art. 288, caput, do Código Penal) e de incitação à animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes da República (art. 286, parágrafo único, do Código Penal).

A reprimenda imposta consistiu em 1 ano de reclusão, pena substituída por restritivas de direitos, além da aplicação de 20 dias-multa, no valor unitário de meio salário-mínimo vigente à época dos fatos. Ademais, foi fixado o pagamento de R$ 5 milhões, a título de reparação por danos morais coletivos, a ser cumprido de forma solidária com os demais réus condenados em ações penais correlatas aos eventos de 8 de janeiro de 2023[2].

O escopo deste artigo se limita estritamente ao voto condutor do ministro Alexandre de Moraes, que prevaleceu como fundamento da condenação no plenário. Assim, não se pretende revisitar todo o conjunto processual ou as manifestações divergentes, mas examinar criticamente os argumentos expostos no voto vencedor.

A análise pretende verificar se a condenação do réu Joel Muru Chagas Machado, nos moldes da fundamentação estampada no acórdão avaliado neste ensaio, está compatível com os princípios constitucionais da legalidade, tipicidade, culpabilidade, responsabilidade penal subjetiva e individualização da conduta delituosa, todos inscritos na Constituição de 1988 e consagrados na tradicional jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme se poderá observar na exposição deste trabalho.

Ademais, tais princípios constitucionais estão intrinsecamente conectados aos direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, ao devido processo legal — em suas dimensões formal e substancial — e ao direito penal do fato, conquistas civilizatórias inerentes ao Estado Democrático de Direito.

Competência do STF e a prerrogativa de foro

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 102, inciso I, alínea “b”, estabelece que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional e outras autoridades ali previstas.

Trata-se da chamada prerrogativa de foro, instituto que, longe de configurar privilégio pessoal, destina-se à proteção institucional do cargo, assegurando que determinadas funções de alta relevância nacional sejam apreciadas pela mais alta Corte de Justiça.

Importa destacar, contudo, que embora a redação constitucional não restrinja a prerrogativa a crimes cometidos no exercício ou em razão da função, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da AP 937-QO (2018), fixou entendimento no sentido de limitar o foro privilegiado apenas aos delitos praticados durante o exercício do cargo e relacionados às atribuições funcionais da autoridade.

Vale esclarecer que pessoas sem prerrogativa de foro podem ser julgadas em conjunto com pessoas detentoras dessa prerrogativa, desde que a denúncia e, sobretudo, o acórdão condenatório demonstrem a conexão entre os crimes atribuídos ao agente com prerrogativa e ao corréu destituído dela, nos termos da Súmula 704 do STF. Nesse sentido, os institutos da continência (art. 77 do CPP) e da conexão (art. 76 do CPP) devem estar devidamente comprovados na peça acusatória e na decisão judicial, de modo a legitimar a atração da competência para o Supremo Tribunal Federal.

O próprio Supremo Tribunal Federal já assentou que a reunião de processos por conexão ou continência não pode ser presumida, exigindo fundamentação probatória concreta que demonstre o nexo entre as condutas. Assim decidiu, por exemplo, o ministro Joaquim Barbosa no julgamento da Ação Penal 470, em que foram processados 38 réus pelos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira.

Na ocasião, ressaltou-se o entendimento firmado na Súmula 704 do STF, no sentido de que “não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.

No mesmo sentido, na AP 937-QO (2018), sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, em que se examinava denúncia por corrupção passiva contra parlamentar federal, a corte fixou as seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”.

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No caso da Ação Penal 1.666/DF, o ministro Moraes fundamentou a competência do Supremo Tribunal Federal não apenas na gravidade dos fatos relacionados aos eventos de 8 de janeiro de 2023, mas também na conexão probatória com investigações já em curso na corte que envolvem autoridades com prerrogativa de foro.

Em seu voto, o relator fez menção expressa, entre outros, ao Inquérito 4.781/DF (conhecido como “Inquérito das Fake News”), no qual figuram parlamentares federais investigados por condutas relacionadas à difusão de discursos de ódio, ataques às instituições e incentivo a atos antidemocráticos.

Nesse contexto, citou nominalmente autoridades com prerrogativa de foro, como: senador Flávio Bolsonaro; deputados federais Otoni de Paula, Cabo Júnior do Amaral, Carla Zambelli, Bia Kicis, Eduardo Bolsonaro, Filipe Barros, Luiz Phillipe de Orleans e Bragança, Guiga Peixoto e Eliéser Girão; além de outros parlamentares mencionados em inquéritos correlatos, como Carlos Jordy, Cabo Gilberto Silva e Gustavo Gayer.

Assim, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a atuação de Joel Muru Chagas Machado, ainda que não detentor de foro, estaria intrinsecamente conectada ao mesmo contexto fático e probatório desses inquéritos. Por isso, justificou-se a atração da competência do STF com base no art. 76, II e III, do Código de Processo Penal, evitando-se a fragmentação processual e a possibilidade de decisões contraditórias.

Não obstante, no curso da fundamentação do acórdão condenatório, não há qualquer referência à coautoria entre o réu condenado e parlamentares ou autoridades detentoras de prerrogativa de foro, seja no crime de associação criminosa (art. 288 do Código Penal), seja no crime de incitação à animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes da República (art. 286, parágrafo único, do Código Penal).

De fato, trata-se de lacuna descritiva que desconecta o réu de qualquer vínculo com autoridade que ostente prerrogativa de foro no campo delitivo, de tal sorte que resulta, no plano da própria narrativa acusatória e condenatória, esvaziada a competência do Supremo Tribunal Federal.

No terreno da tipicidade, o crime de associação criminosa exige a descrição de um vínculo do réu com outras pessoas determinadas, de forma específica e concreta. Essa associação não pode ser concebida como um ente abstrato, invisível e destituído de qualquer identificação. A fundamentação do acórdão, para justificar a competência do Supremo Tribunal Federal, deveria ter apontado, de modo expresso, ao menos uma autoridade detentora de prerrogativa de foro como integrante da associação criminosa da qual o réu Joel Muru Chagas Machado faria parte, bem como demonstrar de que maneira se estabeleceria o vínculo entre ambos e em relação aos demais supostos associados.

Quanto ao crime de incitação à animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes da República (art. 286, parágrafo único, do Código Penal), a decisão condenatória tampouco descreveu o papel da autoridade detentora de prerrogativa de foro nem o seu eventual protagonismo em coautoria com o réu Joel Muru Chagas Machado. De modo que não se sabe se Joel Muru Chagas Machado teria sido incitado por alguma autoridade a integrar o acampamento, se ele próprio teria incitado a autoridade detentora de prerrogativa de foro a alguma prática criminosa, ou ainda se ambos teriam atuado conjuntamente para incitar as Forças Armadas à hostilidade contra os Poderes constituídos.

Esse déficit se mostra ainda mais evidente quando se analisa a competência do Supremo Tribunal Federal à luz dos institutos da conexão e da continência. Ambos são previstos no Código de Processo Penal como hipóteses de reunião de processos, mas possuem fundamentos distintos: a conexão (art. 76 do CPP) ocorre quando duas ou mais infrações guardam entre si um vínculo probatório, objetivo ou subjetivo, de tal modo que a apuração de uma influencia a da outra; já a continência (art. 77 do CPP) verifica-se quando há concurso de pessoas na mesma infração ou quando várias infrações decorrem de uma só conduta, exigindo julgamento conjunto.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estabelece que a reunião de feitos por conexão ou continência não é automática nem pode ser presumida. Exige-se demonstração concreta, na denúncia e na decisão condenatória, de um liame fático ou probatório que justifique a competência do tribunal, como assentado na Súmula 704 do STF.

No julgamento da AP 470, o ministro Joaquim Barbosa destacou que a atração da competência pela conexão pressupõe fundamentação clara quanto ao nexo entre as condutas dos corréus. De igual modo, na AP 937-QO, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso (2018), a Corte delimitou que a prerrogativa de foro somente se mantém se houver vínculo funcional direto entre o crime e a autoridade aforada.

Nesse contexto, caberia ao acórdão condenatório da AP 1.666/DF explicitar qual seria o vínculo de conexão probatória ou de continência capaz de atrair a competência do Supremo. A ausência de descrição clara sobre esse ponto compromete a legitimidade da competência invocada, pois não basta a gravidade genérica dos fatos: é indispensável demonstrar se havia concurso de agentes ou interdependência probatória entre o réu e autoridades com prerrogativa de foro.

Não obstante, ainda quanto à competência do Supremo Tribunal Federal, quando se observa a fundamentação constante do voto do eminente relator, ministro Alexandre de Moraes, não se verifica nenhuma conexão concreta dos atos praticados pelo réu Joel Muru Chagas Machado com qualquer ato específico atribuído aos deputados nominados pelo relator quando da justificativa da conexão probatória, circunstância que chama a atenção.

Aliás, neste caso concreto, não se observa nem mesmo conexão probatória ou fática entre os atos praticados pelo réu condenado e quaisquer atos praticados pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro, cuja prerrogativa de foro também fora reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, como é público e notório, ou por qualquer outro detentor de prerrogativa de foro.

Nesse aspecto, a prerrogativa de foro do acusado na Ação Penal 1.666 ficou sem explicação lógica ou base probatória, na medida em que não se demonstrou vínculo entre seu comportamento e qualquer cadeia de comando que envolvesse personagem detentor de prerrogativa de foro. Basta constatar que, na estrutura da associação criminosa que o réu supostamente integraria, não foi descrita a participação ostensiva de qualquer pessoa com prerrogativa de foro, vale dizer, não se apontou qualquer ligação do réu com personagem que detivesse tal prerrogativa.

Nesse sentido, ao menos para justificar a competência do Supremo Tribunal Federal, na hipótese concreta, ficou esvaziada a individualização de uma conduta em coautoria do réu com detentor de prerrogativa de foro, de modo que o princípio do juiz natural restou vulnerado, em afronta ao disposto no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal, que asseguram que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

A distribuição do inquérito das fake news ao ministro Moraes

A fundamentação do voto do ministro Moraes na Ação Penal 1.666/DF faz menção expressa ao Inquérito 4.781/DF, conhecido como “Inquérito das Fake News”, como uma das bases de conexão que justificam a competência do Supremo Tribunal Federal.

O relator recorda que esse inquérito não foi objeto de distribuição por sorteio eletrônico, como ocorre ordinariamente nos feitos de competência originária da Corte. Sua origem remonta a uma decisão da presidência do STF, então exercida pelo ministro Dias Toffoli, que instaurou o inquérito de ofício e determinou sua relatoria pelo ministro Moraes.

Esse encaminhamento direto, realizado em 2019, buscou dar resposta célere a um conjunto de ataques e notícias falsas que, segundo o entendimento do plenário da corte, atingiam a honorabilidade dos ministros e a própria instituição.

Desde então, o Inquérito 4.781 consolidou-se como núcleo de investigações sobre ataques às instituições democráticas, servindo de base para a instauração de outros procedimentos correlatos, como o Inquérito 4.874/DF (milícias digitais) e, posteriormente, para a conexão com os fatos de 8 de janeiro de 2023.

O relator, ao invocar essa linha de continuidade, sublinhou que a competência do STF já estava firmada em razão da presença de autoridades com prerrogativa de foro no Inq. 4.781 e em inquéritos a ele conexos. Assim, a persecução penal de indivíduos sem prerrogativa, como Joel Muru Chagas Machado, se justificaria pela atração da competência prevista no art. 76, II e III, do CPP.

Esse ponto, contudo, suscita relevantes discussões constitucionais e convencionais. A ausência de distribuição por sorteio e o direcionamento do inquérito pela presidência — ainda que posteriormente referendado pela maioria do plenário — têm sido alvo de questionamentos sob a ótica do princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, CF/88) e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A individualização da conduta do acusado

No voto proferido, o ministro Moraes expôs os elementos que, em sua visão, demonstraram a adesão de Joel Muru Chagas Machado à associação criminosa e ao crime de incitação.

A individualização da conduta foi descrita em três eixos: (i) a confissão prestada em sede policial, na qual o réu admite ter se deslocado de Santa Maria/RS a Brasília em 8 de janeiro de 2023, permanecendo no acampamento até ser preso em 9 de janeiro; (ii) a corroboração indireta dessa confissão pelo comportamento de outros 529 acusados, que reconheceram a mesma prática e celebraram ANPPs com a Procuradoria-Geral da República; (iii) a utilização de fotografias para demonstrar a estrutura organizada do acampamento em frente ao Quartel-General do Exército.

Nota-se que a decisão não registra apreensão de armas, objetos ilícitos, identificação de veículo utilizado pelo réu, tampouco indícios de recrutamento ou liderança. A prova individual restringe-se à confissão extrajudicial, corroborada por uma inferência de adesão coletiva a partir do contexto.

Esse modo de individualização abre espaço para uma análise crítica: a Constituição exige imputação penal individualizada (art. 5º, XLV e XLVI), enquanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos reitera que a responsabilidade criminal deve estar ancorada em atos concretos atribuíveis à pessoa, e não em presunções coletivas.

Evidencia-se que o acórdão não foi unânime. O ministro Nunes Marques, em voto divergente, repudiou a perspectiva de responsabilidade penal objetiva e assentou não apenas a incompetência absoluta do Supremo Tribunal Federal, como também a ausência de individualização da conduta apta a amparar qualquer decreto condenatório contra o réu, sintetizando seu posicionamento nos seguintes termos:

“Vale destacar que as manifestações realizadas pelos acampados eram bastante diversas e heterogêneas, abrangendo desde pautas ligadas aos costumes até reivindicações políticas variadas. Não se pode afirmar – até porque não há prova nesse sentido – que todos os integrantes do acampamento tinham, indistintamente, o propósito comum de incitar as Forças Armadas à deposição do governo constituído ou à abolição violenta do Estado democrático de direito. Tampouco há elementos materiais de prova que apontem a atuação concreta da parte ré no sentido de instigar ou estimular a prática de quaisquer crimes”.

Ainda quanto à carência de individualização da conduta do réu condenado, chama a atenção o fundamento utilizado pelo acórdão quanto ao uso de suposta confissão de outros integrantes da mesma associação criminosa, confissão esta ocorrida em acordo de não perseguição penal.

Consignou, em seu voto, o eminente ministro Alexandre de Moraes, que ao menos 529 réus, em situação idêntica à de Joel Muru Chagas Machado, admitiram coautoria e celebraram ANPP com a PGR, assumindo obrigações como prestação de serviços à comunidade, participação em curso sobre democracia, restrição ao uso de redes sociais e pagamento de prestação pecuniária.

Em outras palavras, a fundamentação do acórdão, ao aludir às confissões colhidas em acordo de não persecução penal, revelou-se completamente vazia e desprovida de individualização da conduta imputada ao réu condenado na Ação Penal 1.666. Caso tais declarações tenham se limitado a confirmar a mera presença do réu no acampamento, sem qualquer outro elemento de autoria ou participação, mostram-se inócuas para fins condenatórios. Com efeito, o réu negou a prática de qualquer crime, admitindo apenas ter estado no local.

Em realidade, o voto do relator não nominou os corréus que teriam confessado ilícitos nos acordos de não persecução penal, tampouco detalhou o teor dessas supostas confissões, de modo que se torna impossível utilizar tais elementos para fundamentar um decreto condenatório contra o acusado Joel Muru Chagas Machado.

Registre-se, ademais, que seria vedado ao Supremo Tribunal Federal utilizar confissões colhidas no âmbito de um acordo de não persecução penal como prova emprestada para sustentar o decreto condenatório do réu Joel Muru Chagas Machado, na medida em que as confissões colhidas para fins de acordo de não persecução penal não se prestam a essa finalidade.

Não bastasse o fato de tais corréus sequer estarem nominados e de os respectivos conteúdos dessas confissões não terem sido detalhados no decreto condenatório, o certo é que essa espécie de confissão presta-se tão somente à finalidade restrita do acordo celebrado e não à condenação de terceiras pessoas, pois não envolve um juízo de culpabilidade quanto aos fatos narrados[3].

Uma indagação se impõe: se a mera presença no acampamento fosse suficiente para caracterizar crime, por qual razão o poder público não promoveu sua dissolução em momento anterior? E, ainda, por que motivo os agentes da Polícia Federal não se encontravam previamente infiltrados no acampamento?

Com efeito, se realmente os fatos estivessem conectados com a tentativa de golpe de Estado, com a prática de atos antidemocráticos ou com a atuação de organização criminosa e milícias digitais, haveria incidência da Lei 12.850/2013, de modo que a própria investigação criminal poderia ter autorizado, muito antes de 8 de janeiro de 2023, mediante ordem judicial, a utilização de agentes infiltrados, interceptações telefônicas e monitoramentos dentro do acampamento pela Polícia Federal, com potencial de extrema eficácia.

Porém, nada disso se consubstancia na individualização da conduta do acusado e, ao que tudo indica, nem mesmo se materializa nas denúncias promovidas contra outros acusados em condições análogas, igualmente presos tão somente por estarem acampados nas proximidades ao Supremo Tribunal Federal.

Outra fundamentação descontextualizada do acórdão ora examinado refere-se a trecho extraído de outro processo, qual seja, a Ação Penal 1.060/DF, julgada em 10 de maio de 2023, sob relatoria da eminente ministra Rosa Weber, e reproduzido pelo eminente relator, ministro Moraes, para respaldar a condenação do réu Joel Muru Chagas Machado, cuja conduta foi simplesmente estar presente no acampamento nos dias 8 e 9 de janeiro de 2023.

Não obstante, ao fundamentar a condenação, o ministro Moraes reportou-se ao julgamento da ministra Rosa Weber, no qual se emitiu decreto condenatório contra outro acusado, mencionando a existência de agrupamento humano armado, estável e permanente, articulado previamente em redes sociais para a prática de crimes indeterminados, materializados em ataques ao patrimônio da União, a bens tombados e para a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, restringindo o exercício dos poderes constitucionais e buscando depor o governo legitimamente constituído.

De fato, a referência feita na fundamentação ao acórdão proferido na Ação Penal 1.060/DF, relatada pela ministra Rosa Weber, mostrou-se descontextualizada e desconectada da realidade do acusado Joel Muru Chagas Machado, pois a individualização de sua conduta não revela qualquer premeditação de ataque às instituições do Estado Democrático de Direito, muito menos indica articulação em redes sociais com esse propósito, tampouco qualquer comportamento voltado a restringir o exercício dos poderes constitucionais ou a depor o governo legitimamente constituído.

Ao contrário, a única conduta atribuída ao réu pelo acórdão condenatório foi a de estar presente no acampamento e, a partir dessa mera circunstância, presumiu-se sua participação em crime multitudinário com base em precedentes jurisprudenciais que jamais autorizariam tal presunção para fins condenatórios.

Não se pode negar que estamos diante de precedente absolutamente inovador em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro

Não houve apuração, repita-se, acerca do eventual modus operandi de recrutamento do réu, de seus discursos no acampamento ou de sua interação subjetiva com terceiros. Tampouco foram apreendidas armas em seu poder, nem mesmo investigadas suas redes sociais. Se esse foi o modelo padrão utilizado para embasar condenações, e tais condenações em massa replicaram esse padrão, está caracterizado um grave déficit investigativo do poder público. Todavia, não é possível, nem juridicamente admissível, que o Poder Judiciário supra tais lacunas mediante a abolição de direitos fundamentais dos acusados.

Outrossim, o ministro Nunes Marques, em voto vencido, destacou com acerto a heterogeneidade do acampamento, circunstância consignada, inclusive, nas próprias denúncias do Ministério Público Federal. Veja-se que as denúncias narraram que o acampamento “já funcionava como uma espécie de vila, com local para refeições, feira, transporte, atendimento médico, sala para teatro de fantoches”.

A forma como foi realizada a prisão das pessoas no acampamento também é digna de registro e foi objeto da atenção do ministro Nunes Marques em seu voto, ao ressaltar que, na manhã de 9 de janeiro de 2023, a Polícia Militar apenas solicitou que os acampados recolhessem seus pertences e embarcassem em um ônibus, sem prévia ciência de que seriam presos, situação em que todos obedeceram às determinações da autoridade policial.

Não se sabe, em realidade, se as prisões decretadas das pessoas acampadas, em situação análoga à de Joel Muru Chagas, foram em decorrência de ordem judicial por suposta prisão em flagrante delito, e qual seria o delito em flagrância.

Nessa perspectiva, cabe recordar que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça têm reiteradamente decidido que a individualização da conduta constitui requisito indispensável à validade da acusação e da condenação em matéria penal. A responsabilidade criminal, em um Estado Democrático de Direito, deve ser sempre subjetiva, jamais objetiva, especialmente em crimes graves como corrupção ou lavagem de dinheiro.

Nesse sentido, o STF já reconheceu a inépcia de denúncias genéricas por ausência de descrição concreta da conduta atribuída ao acusado, afirmando que a mera imputação coletiva viola o contraditório e o direito de defesa. Na mesma linha, o STJ tem assentado que peças acusatórias que não individualizam a conduta, imputando genericamente crimes como corrupção ou lavagem a diversos acusados, devem ser trancadas por inépcia.

Tais precedentes confirmam que não se pode legitimar condenações lastreadas apenas na presença física do acusado em um determinado contexto coletivo, sem descrição fática mínima de sua atuação concreta. Ao contrário, a jurisprudência constitucional e infraconstitucional brasileira reforça a exigência de um liame subjetivo demonstrado de forma clara e individualizada, de modo a evitar a aplicação de uma responsabilidade penal objetiva, expressamente repudiada pela Constituição e pelo sistema interamericano de direitos humanos.

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Nessa linha, a mera imputação genérica de crimes, desacompanhada da descrição mínima de atos concretos atribuíveis ao acusado, não atende às exigências constitucionais e convencionais do devido processo legal. A individualização da conduta constitui requisito indispensável para a validade da persecução penal, sendo a sua ausência causa de inépcia da denúncia e de nulidade de eventual condenação.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm reiteradamente afirmado que imputações genéricas não viabilizam o exercício pleno da ampla defesa e, por isso, devem ser trancadas em habeas corpus ou recursos correlatos[4]. Ao admitir condenações baseadas apenas em presunções derivadas da presença física do acusado em determinado contexto coletivo, o acórdão da AP 1.666/DF incorre na adoção de responsabilidade penal objetiva, em frontal violação ao princípio da culpabilidade e ao postulado da responsabilidade subjetiva, pilares estruturantes do direito penal democrático.

A impossibilidade de utilização das confissões do ANPP como prova condenatória

No voto condenatório da AP 1.666/DF, o ministro Moraes utilizou como elemento de reforço as confissões prestadas por corréus em acordos de não persecução penal (ANPP), para concluir que Joel Muru Chagas Machado estaria em situação análoga. Ocorre que essa fundamentação não encontra respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

O STF já assentou que “o ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia”[5]. Ou seja, a confissão prestada nesse contexto não se destina à formação da culpa, mas apenas ao preenchimento de requisito formal para viabilizar a celebração do acordo.

No mesmo sentido, o STJ consolidou entendimento de que “a assunção extrajudicial de culpa no ANPP é similar ao conteúdo de confissão da prática da infração penal perante autoridade policial ou ministerial, somente tendo valor probatório como dado extrajudicial, e somente podendo ser utilizada para subsidiar a denúncia caso exista descumprimento do acordo, levando o Ministério Público a oferecer denúncia”[6].

Ainda, mais recentemente, o STF reconheceu que “no ANPP, a confissão não se destina à formação da culpa”[7], reforçando que a sua utilização como prova condenatória viola o devido processo legal.

Verifica-se, portanto, que a função da confissão em ANPP não é servir como elemento probatório em juízo, mas apenas como requisito extrajudicial, de natureza formal, para a celebração do acordo. A jurisprudência do STF e do STJ é firme em reconhecer que essa confissão se esgota na etapa pré-processual, não sendo admitida sequer no mesmo processo como prova de responsabilidade penal.

Assim, ao se apoiar em confissões de corréus colhidas em sede de ANPP, sem individualização concreta da conduta do réu Joel Muru Chagas Machado, o voto vencedor incorreu em flagrante contradição com a jurisprudência consolidada das Cortes Superiores, tratando um dado pré-processual como prova judicial idônea. Tal prática resulta em desvirtuamento da finalidade do acordo e em violação ao princípio da responsabilidade penal subjetiva[8].

A distorção do conceito de ‘crime multitudinário’ e o erro da aplicação dos precedentes do STF

No voto proferido, o ministro Moraes invocou a noção de crime multitudinário para sustentar a condenação, citando precedentes da década de 1990 (HC 71.899/RJ, HC 73.638/GO e HC 75.868/DF, relatados pelo Ministro Maurício Corrêa). Tais precedentes, contudo, limitavam-se a admitir a denúncia genérica em hipóteses de crimes multitudinários, sempre condicionando a condenação à imputação individualizada e à demonstração de prova concreta da participação do acusado.

Na Ação Penal 1.666/DF, entretanto, esse critério, originalmente restrito à fase de admissibilidade, foi deslocado para o julgamento de mérito, de modo que a mera presença no acampamento passou a ser considerada suficiente para embasar condenação.

Assim, o voto vencedor incorreu em manifesta deturpação dos precedentes citados, ampliando indevidamente sua ratio decidendi e fragilizando a dogmática penal brasileira, ao admitir responsabilização criminal sem individualização da conduta.

A deficiência da investigação e da instrução criminal

A condenação de Joel Muru Chagas Machado decorreu de um déficit evidente tanto na investigação quanto na instrução processual. Não foram identificados atos concretos que lhe pudessem ser atribuídos a título de incitação ou de associação criminosa. Tampouco se apurou de que forma ocorreu seu ingresso no acampamento, se houve eventual recrutamento, vínculos associativos ou logística específica relacionada à sua presença no local.

A instrução criminal não produziu testemunhos ou registros capazes de comprovar participação ativa do réu nos fatos narrados. Ademais, o exercício do direito ao silêncio foi interpretado de forma enviesada, em manifesto prejuízo ao acusado.

Assim, a condenação apoiou-se em presunções genéricas, em afronta direta ao princípio da culpabilidade e às garantias fundamentais do devido processo legal.

O déficit investigativo, o risco da responsabilidade penal objetiva e os efeitos corrosivos de um precedente na democracia

A ausência de investigação consistente sobre financiamento, logística ou vínculos associativos transformou a simples presença no acampamento em indício suficiente de culpabilidade. Esse déficit investigativo resultou, na prática, na adoção de uma forma de responsabilidade penal objetiva, em afronta direta ao art. 5º, incisos XLV e XLVI, da Constituição Federal de 1988, bem como à jurisprudência consolidada no caso Baena Ricardo y otros vs. Panamá, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em que se assentou a necessidade de responsabilidade subjetiva e de individualização das condutas como condição indispensável para a validade de sanções penais ou administrativas[9].

Mais grave ainda, esse padrão de imputação deficiente, segundo o próprio relator, foi reproduzido em 1.557 decisões seriadas, consolidando um precedente corrosivo para a democracia ao normalizar condenações sem individualização de condutas. Ao legitimar violações a garantias constitucionais e convencionais, o precedente compromete a integridade do sistema de justiça, pois, segundo o relator, “a competência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL para as ações penais referentes aos gravíssimos crimes praticados no dia 8 de janeiro foi analisada e reconhecida pelo Plenário da CORTE em 1.557 (mil, quinhentas e cinquenta e sete) decisões”.

Esse alinhamento automático compromete a coerência do processo constitucional e atinge, ao menos, todos os indivíduos que estavam acampados nas proximidades do Supremo Tribunal Federal — cuja quantidade sequer foi devidamente apurada.

Observe-se que, ademais, se o acampamento fosse de fato uma estrutura golpista e as pessoas ali assentadas estivessem todas organizadas de modo associativo para um golpe de estado premeditado, seria de se esperar que já estivessem no radar investigativo da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, na medida em que a investigação criminal quanto aos atos antidemocráticos e quanto à tentativa de golpe de Estado já estava em curso.

Nesse contexto, não se compreende por qual razão, pelo menos na etapa investigatória, aquele grupo não tenha sido enquadrado na Lei 12.850/2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal. Em tal cenário, poderiam a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, mediante ordens judiciais, utilizar agentes infiltrados no acampamento, escutas ambientais, interceptações telefônicas e outras ferramentas investigativas aptas a individualizar a conduta de cada um dos envolvidos.

Em realidade, ainda que se tenha admitido a denúncia sem a adequada individualização das condutas, com fundamento nos precedentes HC 71.899/RJ, HC 73.638/GO e HC 75.868/DF, relatados pelo ministro Maurício Corrêa, o certo é que tais decisões jamais poderiam ter sido utilizadas para autorizar a condenação do réu Joel Muru Chagas Machado.

Se esse mesmo padrão decisório vem sendo reproduzido em casos análogos, impõe-se sua urgente revisão, seja pelo Supremo Tribunal Federal, seja pelo Congresso Nacional ou pelo Presidente da República, cada qual no exercício de suas competências próprias, de modo a delimitar com precisão a abrangência desses casos.

Conclusão

A análise da AP 1.666/DF revela déficits investigativos, adoção de responsabilidade penal objetiva e grave irregularidade na distribuição do feito. O direcionamento da relatoria do Inquérito 4.781 ao ministro Alexandre de Moraes, sem sorteio, viola o princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, CF/88) e o art. 8º, 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Esse vício, somado à fragilidade probatória e à aplicação distorcida do conceito de crime multitudinário, comprometeu direitos fundamentais e produziu efeitos corrosivos sobre a democracia brasileira.

Diante das graves violações às garantias constitucionais e convencionais constatadas, a correção desse quadro pode se dar por três vias institucionais legítimas. Compete ao Supremo Tribunal Federal a análise, em sede de revisão criminal, da validade das condenações proferidas à margem das exigências do devido processo legal e da individualização da conduta. Já ao Congresso Nacional cabe a prerrogativa política de deliberar sobre a concessão de anistia, instituto expressamente previsto no art. 48, VIII, da Constituição Federal.

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Não há vedação constitucional à anistia para os crimes de associação criminosa (art. 288 do Código Penal) e de incitação à animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes da República (art. 286, parágrafo único, do Código Penal). A Constituição, no art. 5º, XLIII, limita a anistia apenas em relação a crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo, o que não se aplica aos delitos em questão.

Portanto, condenações já transitadas em julgado, assim como os acordos de não persecução penal celebrados por centenas de pessoas em decorrência dos eventos de 8 de janeiro de 2023, podem ser abrangidos por anistia legislativa, apagando seus efeitos penais e restaurando a coerência do sistema constitucional.

Por sua vez, ao presidente da República incumbe a competência constitucional para conceder indulto e comutação de penas (art. 84, XII, CF/88). Entre as modalidades possíveis, destaca-se o indulto humanitário, destinado a resguardar a dignidade da pessoa diante de condenações desproporcionais ou em situações de manifesta fragilidade social, pessoal ou processual.

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em precedentes como a ADI 5.874/DF (Rel. Min. Alexandre de Moraes), a constitucionalidade dessa medida, afirmando a ampla margem de conformação política do chefe do Executivo. Nesse contexto, o indulto humanitário surge como instrumento legítimo de clemência soberana, apto a corrigir distorções punitivas e a assegurar que o direito penal não seja convertido em instrumento de opressão.


[1] No sentido do exercício da liberdade de cátedra e de crítica às decisões, confiram-se os seguintes precedentes: ADPF 548, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 15-05-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-142  DIVULG 08-06-2020  PUBLIC 09-06-2020; ADPF 187, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 15-06-2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-102  DIVULG 28-05-2014  PUBLIC 29-05-2014 RTJ VOL-00228-01 PP-00041; e RE 631053 RG, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 15-06-2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014.

Já quanto à liberdade de expressão e de crítica defendidas pelo STF, observem-se os seguintes precedentes: STF – ADPF: 130 DF, Relator.: Min. CARLOS BRITTO, Data de Julgamento: 30/04/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-01 PP-00001; STF – Rcl: 65017 AM, Relator.: Min . DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 12/08/2024, Segunda Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-08-2024 PUBLIC 28-08-2024 STF – Rcl: 62174 MG, Relator.: Min. FLÁVIO DINO, Data de Julgamento: 09/04/2024, Primeira Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 22-04-2024 PUBLIC 23-04-2024; e STF – Rcl: 23899 PR, Relator.: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 02/10/2023, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-10-2023 PUBLIC 30-10-2023.

[2] Note-se, outrossim, que no julgamento da Ação Penal nº 1.670/DF, na qual o réu Ademir Domingos Pinto da Silva foi condenado à pena de 1 (um) ano de reclusão, substituída por restritivas de direitos, além de 20 (vinte) dias-multa e da fixação solidária de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) a título de reparação por danos morais coletivos, pela prática dos crimes de associação criminosa (art. 288, caput, do Código Penal) e incitação à animosidade das Forças Armadas contra os Poderes da República (art. 286, parágrafo único, do Código Penal), consta descrição análoga de conduta e de modelo de responsabilidade penal pela mera presença no acampamento, tal como detalhado neste ensaio.

[3] Nesse sentido, verificam-se relevantes precedentes do Supremo Tribunal Federal que demonstram que essa Corte tem reafirmado que a confissão prestada no âmbito do acordo de não persecução penal possui natureza meramente formal e não pode ser utilizada como elemento de prova condenatória, sob pena de violação ao devido processo legal e ao princípio da culpabilidade. Veja-se, a propósito, os precedentes: STF, HC 218798/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 15.8.2022, Decisão Monocrática, DJe 17.8.2022; e STF, RHC 214146/SP, Rel. Min. André Mendonça, j. 4.3.2024, Segunda Turma, DJe 23.4.2024.

[4] Nesse sentido, observa-se precedente paradigmático do Supremo Tribunal Federal que tratou da inépcia da denúncia e da vedação à responsabilidade penal objetiva em razão da ausência de individualização da conduta, em que a Corte, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, examinou o caso em que o paciente, ex-servidor público, foi denunciado por suposta participação em esquema de corrupção e lavagem de dinheiro vinculado à chamada Operação Zelotes, sem que a denúncia descrevesse qualquer ato concreto de solicitação, recebimento ou ocultação de vantagem indevida. A acusação limitava-se a narrar, de forma genérica, a existência de um grupo voltado à prática de crimes contra a administração pública, sem apontar a atuação individual do acusado ou elementos subjetivos de autoria e dolo. Reconheceu o STF que tal imputação genérica afronta o art. 41 do Código de Processo Penal, o devido processo legal e o art. 8.2.b da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por não permitir o exercício da ampla defesa nem a subsunção da conduta ao tipo penal. O Tribunal, assim, concedeu a ordem para trancar a ação penal, reafirmando que a responsabilidade penal deve ser subjetiva e individualizada, jamais presumida a partir de contextos coletivos ou associações abstratas. Veja-se esse relevante precedente: STF, HC 182.458/DF, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 27/09/2021, DJe 08/11/2021.

[5] STF, HC 218798/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 15.8.2022, Decisão Monocrática, DJe 17.8.2022.

[6] STF, HC 756907/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, Decisão Monocrática, DJe 19.7.2022.

[7] STF, RHC 214146/SP, Rel. Min. André Mendonça, j. 4.3.2024, Segunda Turma, DJe 23.4.2024.

[8] A Corte Interamericana de Direitos Humanos, como se sabe, veda a aplicação da responsabilidade objetiva, e não apenas na seara penal, mas também no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, inclusive em casos envolvendo ilícitos multitudinários. No Caso Baena Ricardo y Otros vs. Panamá (2001), o Presidente da República daquele país determinou a demissão de diversos servidores públicos sob a alegação de que haveria uma ligação entre a paralisação de suas atividades e o movimento liderado pelo coronel Eduardo Herrera-Hassan, presumindo-se, assim, a culpa dos trabalhadores. A Corte Interamericana entendeu que essa atuação estatal, ao presumir a culpabilidade sem um processo formal e sem prova adequada, configurou forma de responsabilidade objetiva em matéria sancionatória. Decidiu, então, que os princípios da culpabilidade e do devido processo legal devem ser observados em toda atuação punitiva do Estado, ainda que administrativa, vedando-se a imputação de responsabilidade sem demonstração de dolo ou culpa individual. Veja-se o caso: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baena Ricardo y otros vs. Panamá. Sentença de 2 de fevereiro de 2001. Série C, nº 72. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_72_ing.pdf.

[9] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baena Ricardo y otros vs. Panamá. Sentença de 2 de fevereiro de 2001. Série C, nº 72. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_72_ing.pdf.