Segurança pública: até quando vamos legislar às cegas?

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Ninguém em sã consciência ousaria negar: o Brasil vive uma crise profunda de segurança pública. Seja no que diz respeito à criminalidade organizada, hoje e sempre em destaque pela articulação do Primeiro Comando da Capital (PCC), seja na criminalidade cotidiana, com o número crescente de homicídios, latrocínios, roubos e furtos de bens de pequeno valor. É um problema de primeira ordem e, sim, precisa ser enfrentado.

O Poder Executivo sabe disso. Por meio do Ministério da Justiça, apresentou a chamada PEC da Segurança Pública, elaborada sob a liderança do ministro Ricardo Lewandowski. A ideia é uma reforma de base. A PEC constitucionaliza o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), amplia as competências da Polícia Federal (PF) e transforma a atual PRF em Polícia Viária Federal, com atuação ostensiva em rodovias, ferrovias e hidrovias.

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Além disso, as guardas municipais passam a integrar o rol dos órgãos de segurança pública, podendo exercer policiamento ostensivo e comunitário, sob controle externo do Ministério Público. Em suma, a PEC desenha uma arquitetura de integração, tentando aproximar o que sempre foi fragmentado[1].

Ao chegar para avaliação na Câmara dos Deputados, o relator, deputado Mendonça Filho (União-PE), apresentou sugestões substanciais de alteração no texto. Segundo ele, “o texto proposto é absolutamente insuficiente. Ele está muito distante daquilo que espera a sociedade brasileira[2]”.

Entre as mudanças sugeridas estão: (i) a permissão para que a Polícia Militar realize investigações preliminares; (ii) a possibilidade de execução de pena de prisão antes do trânsito em julgado; (iii) a definição de critérios para que a guarda municipal exerça atribuições de segurança urbana; (iv) o endurecimento da progressão de regime para líderes de organizações criminosas; e (v) a criação de normas mínimas para o uso diferenciado da força policial na retomada de territórios ocupados por facções.

Paralelamente, a Câmara, sob a liderança de Hugo Motta (Republicanos-PB), acelera um pacote de projetos de apelo imediato, também marcado por um punitivismo simbólico[3].

A reboque, há ainda o projeto antimáfia, que ganhou força após os recentes episódios de violência explícita atribuídos, ao menos em tese, ao PCC, como a execução à luz do dia no aeroporto de Guarulhos, a operação Carbono Oculto na Faria Lima e o assassinato de um delegado aposentado em Praia Grande.

Na versão inicial, chegou-se a cogitar a criação de um novo órgão voltado ao enfrentamento da criminalidade organizada, proposta que acabou sendo descartada após resistência da própria Polícia Federal, contrária à sobreposição de competências[4].

Há, portanto, muitos caminhos em aberto.

Não estou aqui para apontar, com pretensa clareza ou certeza, qual caminho é o mais adequado, nem para rotular esta ou aquela proposta como inconstitucional. Esse tipo de debate já se mostrou anacrônico e estéril no contexto legislativo.

Quero apenas destacar que faltam dados concretos para sabermos qual direção seguir. Estamos, por assim dizer, em um veleiro sem bússola.

Persiste no Brasil uma tendência crônica de legislar às cegas, sem qualquer estudo de impacto que antecipe os efeitos reais de cada PEC ou projeto de lei na seara criminal. As normas continuam sendo construídas sob o calor de narrativas de urgência, como se bastasse reagir a um crime ou tragédia com o velho expediente do aumento de penas.

Com toda a humildade, isso é lançar soluções simplistas para problemas complexos. É como tentar resolver um código-fonte de última geração, na era da inteligência artificial, com um computador rodando Windows 95 e sem placa de vídeo. É arcaico.

Que precisamos de um novo caminho para a segurança pública, disso ninguém duvida. Mas, como lembra Rafael Strano em sua tese de doutoramento na Universidade de São Paulo, política criminal é, antes de tudo, política pública[5].

E, como tal, deve ser precedida de estudos concretos de impacto e orientada por dados, assim como já ocorre em áreas como saúde e educação.

Se o debate atual sobre a PEC, o projeto antimáfia ou qualquer outra proposta de reforma não for acompanhado de uma avaliação empírica real, estaremos diante de políticas meramente simbólicas: medidas sem benefício tangível, sustentadas em uma linguagem de efeito, como a “luta contra o crime”, mas desprovidas de instrumentos concretos para chegar a esse objetivo[6].

Aliás, sem um estudo de impacto concreto sobre tudo o que está em jogo na segurança pública, continuaremos reféns de discursos políticos e eleitoreiros diante de problemas complexos, que exigem muito mais do que a minha, a sua ou a opinião do colega deputado.

E não se trata aqui de inventar a roda, tampouco de pleitear algo inédito. A realização de estudos de impacto prévios a reformas dessa magnitude é prática consolidada em diversos países, justamente para evitar que políticas criminais se transformem em instrumentos simbólicos de retórica penal.

Basta pensar que toda reforma precedida de um estudo empírico sobre a viabilidade e a efetividade de suas medidas no âmbito da segurança pública teria muito mais legitimidade basta pensar que toda reforma precedida de um estudo empírico sobre a viabilidade e a efetividade de suas medidas no âmbito da segurança pública teria muito mais legitimidade e sustentabilidade institucional. Sem essa de discordar de fulano apenas porque ele pertence ao partido da oposição ou porque o debate foi capturado por paixões ideológicas.

Para dar concretude ao que estou dizendo, basta olharmos para a PEC da Segurança Pública e fazermos duas perguntas simples.

Primeiro: sabemos se a estrutura atual da Polícia Rodoviária Federal tem condições materiais, humanas e logísticas de absorver o novo papel de Polícia Viária Federal, ampliando sua atuação para ferrovias e hidrovias sem comprometer as atribuições originais?

Segundo: alguém avaliou empiricamente o impacto que essa centralização de competências na União pode gerar sobre a autonomia e o financiamento das polícias estaduais e municipais, especialmente em estados que já operam no limite orçamentário?

Se alguém souber essas respostas, por favor, me informem. Eu sinceramente, não sei.

Agora, sobre o projeto antimáfia. Primeiro: alguém avaliou se o endurecimento generalizado das penas e a criação de tipos penais qualificados terão algum impacto real na desarticulação das facções, ou se apenas ampliarão o encarceramento sem inteligência investigativa correspondente?

Segundo: existe algum estudo que comprove que a simples majoração punitiva e a inversão do ônus da prova (sic!) serão eficazes no enfrentamento do crime organizado?

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Ah, e aqui é preciso fazer um alerta. Há um enorme risco de esvaziamento conceitual do que efetivamente se entende por “máfia” e por “organização criminosa”. Temo que estejamos caminhando para a mesma confusão já consolidada entre o que é concurso de pessoas e o que é, de fato, uma organização criminosa. É preciso muito cuidado para que, em nome do enfrentamento do crime, tudo não passe a ser rotulado como máfia.

Enfim, precisamos de uma solução para a segurança pública. Mas ela não virá do aplauso fácil nem das manchetes inflamadas. Virá, se vier, do dia em que o país decidir trocar o improviso pela evidência. E a retórica pela razão.


[1] Proposta do governo muda estrutura da segurança pública em busca de maior integração na área

Fonte: Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1153668-proposta-do-governo-muda-estrutura-da-seguranca-publica-em-busca-de-maior-integracao-na-area. Acesso em 07 de outubro de 2025.

[2] Relator da PEC da Segurança Pública apresenta sugestões de mudança no texto

Fonte: Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1200601-RELATOR-DA-PEC-DA-SEGURANCA-PUBLICA-APRESENTA-SUGESTOES-DE-MUDANCA-NO-TEXTO. Acesso em 07 de outubro de 2025.

[3] Queremos aprovar PEC da Segurança Pública até o fim do ano, diz Hugo à CNN. Disponível em:

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/queremos-aprovar-pec-da-seguranca-publica-ate-o-fim-do-ano-diz-hugo-a-cnn/. Acesso em: 07 de outubro de 2025.

[4] Criação de agência deve ficar fora de versão final de projeto de lei antimáfia. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/08/criacao-de-agencia-deve-ficar-fora-de-versao-final-de-projeto-de-lei-antimafia.shtml. Acesso em 07 de outubro de 2025.

[5] STRANO, Rafael Folador. Política criminal e política pública. 2021. Tese (Doutorado em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. Orientador: Sérgio Salomão Shecaira. DOI: https://doi.org/10.11606/T.2.2021.tde-19082022-170231

[6] MARION, Nancy E; OLIVER, Willard M. The public policy of crime and criminal justice. Person Prentice, Hall, 2006. P. 89/90.