Sandbox regulatória: uma carta curinga do experimentalismo?

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O anglicismo sandbox, traduzido literalmente, significa caixa de areia. É um termo comum na ciência da computação e foi inspirado nos playgrounds infantis, onde as crianças podem brincar livremente, por um certo período, nos limites do parque infantil, sob a supervisão dos pais ou responsáveis.

Para os profissionais da computação, em sentido semelhante, a sandbox é um ambiente virtual, no qual é possível testar códigos, aplicativos e softwares de maneira segura, sem que a execução do novo produto apresente riscos de danos para o sistema como um todo. Dessa forma, podem-se experimentar novos programas em um espaço que simula o sistema verdadeiro, permitindo que os desenvolvedores identifiquem erros e evitem ou mitiguem problemas que, no ambiente verdadeiro, poderiam se converter em danos irreversíveis.

Influenciados por essa invenção dos programadores de softwares, a Financial Conduct Authority (FCA),[1] do Reino Unido, criou o que chamou de sandbox regulatória, definida pelo referido órgão regulador como “um espaço seguro no qual as empresas podem testar produtos, serviços, modelos de negócios e mecanismos de entrega inovadores sem incorrer imediatamente em todas as consequências regulatórias normais do envolvimento na atividade em questão”.

No Brasil, o conceito da sandbox regulatória foi abordado pelo Poder Público pela primeira vez em junho de 2019, quando Ministério da Economia, Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e Superintendência de Seguros Privados (Susep) declararam que adotariam esse modelo regulatório – como de fato o fizeram em 2020.

Com o advento da Lei Complementar 182/2021, que instituiu o Marco Legal das Startups, o legislador federal, pela primeira vez, autorizou expressamente que órgãos e entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial afastassem a incidência de normas sob sua competência em relação aos seus agentes regulados, o que denominou de ambiente regulatório experimental (ou sandbox regulatória).

Da análise das sandboxes já desenvolvidas no país, é possível observar algumas premissas inicialmente utilizadas para o desenvolvimento do instituto, como:

(i) a formalização por meio de autorização precária, com duração limitada e conferida individualmente a cada participante;
(ii) a seleção dos participantes para um determinado ciclo ou período de testes através de processo seletivo que estabeleça os termos e condições da Sandbox;
(iii) possibilidade de conceção de dispensas regulatórias aos participantes, para que possam desenvolver atividades previamente reguladas sem a necessidade de cumprimento total da regulamentação vigente;
(iv) necessidade do estabelecimento de salvaguardas pelo(s) regulador(es), para que sejam mitigados os riscos derivados da atividade inovadora;
(v) monitoramento das empresas dentro do ambiente de testes.

Esse desenho foi o utilizado por agências como, por exemplo, CVM, Banco Central e Susep. Em todas, há boas expectativas – algumas já confirmadas – de que a ferramenta contribua para o aperfeiçoamento dos respectivos setores regulados, favorecendo tanto as empresas que se dedicam à inovação, quanto os cidadãos que dela se beneficiam.

Como toda nova ferramenta, porém, a sandbox regulatória tem pontos sensíveis que demandam especial atenção do regulador para evitar o desvirtuamento do instrumento. Entre eles, pode-se destacar possível falta de transparência e de diálogo social, os riscos de instabilidade do sistema e de captura do regulador, bem como eventual incapacidade de a agência reguladora monitorar com eficácia todas as inovações testadas.[2]

Além desses desafios potenciais inerentes à sandbox regulatória, outra importante questão que vem se destacando, desde a introdução do instituto no Brasil, é como é possível realizar a ampliação do seu uso para outros processos além do regulatório.

Isso pois municípios têm adotado essa ferramenta como um meio de experimentação, criando hubs de inovação para o desenvolvimento e teste de tecnologias locais. Apesar da semelhança na nomenclatura, é essencial diferenciar as abordagens adotadas por municípios e autarquias, devido aos distintos escopos de atuação.

A sandbox regulatória, igualmente, foi adaptada como ferramenta de experimentação para contratos e parcerias público-privadas, visando modernizar as concessões e fomentar a inovação na prestação de serviços e execução de obras.[3] Além disso, nas concessões, ela tem sido utilizada para ajustar Sistemas de Mensuração de Disponibilidade e Desempenho (SMDD) em novos setores concessionários, incluindo projetos de infraestrutura social e ambiental. Essa abordagem visa calibrar os SMDD em contratos complexos, com o intuito de evitar desistências de potenciais licitantes e adaptar indicadores de desempenho e critérios de disponibilidade de vagas.[4]

Nesse cenário, é fundamental reconhecer que a sandbox regulatória é uma aliada importante da inovação. Entretanto, considerando que as decisões administrativas muitas vezes desencadeiam efeitos de natureza multilateral e multipolar, resultando em um paradoxo no qual cada solução para um problema potencialmente gera novos desafios, é de se questionar se ela é a técnica mais adequada a ser utilizada em todos os casos que se galga o experimentalismo regulatório.

Em apertada síntese, o experimentalismo é uma abordagem de governança – inspirada nos princípios do filósofo americano John Dewey – que sustenta que as políticas públicas devem ser tratadas como experimentos sujeitos a constante observação e revisão com base nas consequências observadas. As estratégias regulatórias em determinadas circunstâncias, portanto, não devem ser fixas, mas flexíveis e adaptáveis conforme seus resultados e impactos.[5]

Ao invés de definir metas específicas e rígidas, os regimes experimentalistas adotam objetivos amplos e flexíveis. Para isso, concede-se ampla liberdade aos agentes envolvidos para perseguir tais objetivos da maneira que julgarem adequada, permitindo soluções mais adaptadas às realidades locais, desde que acompanhados por mecanismos supervisão e revisão.

A sandbox, hoje, tornou-se o grande símbolo do experimentalismo regulatório, mas não é a única ferramenta existente na estrutura jurídico-econômica de um país para incentivar o desenvolvimento de produtos, serviços e modelos de negócios inovadores.

Assim sendo, certas iniciativas do Poder Público que criam hubs de inovação e aceleração para possibilitar o teste e desenvolvimento de tecnologia em determinadas regiões, mas que não contemplam todas as premissas da sandbox regulatória elencadas acima, ainda que admitam a desburocratização de processos, geram dúvidas se podem efetivamente ser consideradas uma sandbox – o que vale ressaltar que é absolutamente distinto de dizer que não são importante ferramenta de experimentalismo regulatório.

Dessa forma, é necessária a reflexão sobre o melhor uso dessa técnica e de sua nomenclatura, pois tratar a sandbox como um conceito demasiado aberto, que a transforme em uma carta curinga – um sinônimo para qualquer estratégia regulatória destinada a promover a inovação –, acaba por enfraquecê-la.

O grande desafio, portanto, é garantir que sua implementação ocorra de forma coordenada e legal, preservando as características que a fizeram tão importante mecanismo de estímulo a inovação e ao experimentalismo no Brasil.

[1] FCA. Regulatory Sandbox. Disponível em: <https://www.fca.org.uk/firms/innovation/regulatory-sandbox>. Acesso em: 12.07.2024.

[2] STANZANI, J. Regulatory Sandbox e o estímulo à concorrência. Relatório de Pesquisa. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2021.

[3]https://www.gov.br/antt/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/ambiente-regulatorio-experimental-sandbox-regulatorio/pedagio-eletronico-free-flow. Acesso em: 12.07.24.

[4] RIO GRANDE DO SUL. Concessão Administrativa Dos Serviços De Apoio À Operação, Incluindo A Construção, Equipagem E Manutenção Do Complexo Prisional De Erechim/Rs. Anexo 3 – Sistema De Mensuração De Desempenho E Disponibilidade. Disponível em: https://parcerias.rs.gov.br/presidio-erechim. Acesso em 12.07.24.

[5] SABEL, Charles F.; SIMON, William H. Minimalism and experimentalism in the administrative state. Geo. LJ, v. 100, p. 53, 2011.