A chamada autonomia das pessoas jurídicas diante de seus controladores, administradores e sócios tem sido um princípio reiteradamente prestigiado no direito brasileiro. Não é sem razão que a Lei de Liberdade Econômica introduziu no Código Civil o art. 49-A, segundo o qual “[a] pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.”
Entretanto, se o mencionado princípio pode fazer bastante sentido na órbita privada, notadamente para efeitos da atribuição das responsabilidades diretas e indiretas das pessoas jurídicas, pode causar vários problemas na seara punitiva, aí incluídos tanto o Direito Penal como também o Direito Administrativo Sancionador.
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Com efeito, já tive a oportunidade de mostrar, em trabalhos anteriores, como os critérios de imputação da responsabilidade punitiva das pessoas jurídicas precisariam ser adaptados aos propósitos do sancionamento de entes coletivos[1], assim como a circunstância de que a alienação compulsória de controle pode ser medida mais adequada do que a aplicação de punições a pessoas jurídicas, solução esta que, em muitos casos, trará consequências nefastas para diversas pessoas que se beneficiam da atividade empresarial – como trabalhadores – e não necessariamente repercutirá sobre as pessoas naturais que efetivamente participaram do ilícito[2].
Não obstante, o direito brasileiro, na seara punitiva de pessoas jurídicas, vem caminhando de forma lenta e um tanto quanto trôpega, o que vem impedindo avanços significativos. Não é raro que se tente aplicar, no âmbito da responsabilidade punitiva, premissas e princípios da responsabilidade civil ou de imputação no direito privado, desconsiderando as peculiaridades do Direito Punitivo.
Entretanto, recente leading case do TCU pode representar um divisor de águas nesse sentido, tornando a responsabilidade administrativa de pessoas jurídicas mais racional e efetiva, atenta às peculiaridades dos entes coletivos e às necessárias adaptações que precisam ser feitas para que o Direito Administrativo Sancionador possa ser cumprir bem o seu papel nesse domínio.
Com efeito, em junho deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU), no âmbito do TC 021.656/2019-3, decidiu não aplicar a sanção – no caso, a declaração de inidoneidade – a uma das pessoas jurídicas licitantes em razão da alteração do controle acionário realizada de boa-fé antes mesmo da instauração do feito.
Em seu voto condutor, o relator, ministro Benjamin Zymler, fez questão de ressaltar a boa-fé da nova controladora, o que poderia ser atestado por diversos meios, incluindo o fato de que, antes da operação societária, houve um adequado processo de due diligence, que não permitiu a identificação do ilícito que posteriormente justificaria a abertura do processo administrativo.
Assim, o ministro Zymler procurou diferenciar o caso sob questão de outros casos nos quais o Tribunal, constatando que a operação societária seria uma fraude ou um subterfúgio doloso para que a pessoa jurídica se esquivasse das sanções administrativas, manteve a aplicação da sanção.
Ponto interessante do voto é aquele em que o ministro Zymler reconhece o quanto o processo de due diligence pode ser falho mas, mesmo assim, considera ser razoável a adoção da premissa de boa-fé dos novos controladores, sob o fundamento de que “esta Corte de Contas deve sopesar que há uma razoável possibilidade de os novos acionistas controladores serem terceiros de boa-fé, cujo ordenamento jurídico pátrio confere diversas proteções.”
Adotada a premissa de boa-fé dos novos controladores, o voto do ministro Zymler invoca as necessárias consequências da aplicação ou não da sanção no caso concreto, com base no art. 20 da LINDB. Nesse sentido, conclui que, enquanto os antigos controladores alienaram sua parcela do capital social sem que o valor da operação fosse impactado pelos ilícitos em apuração – os quais eram desconhecidos pelos adquirentes no momento da alienação de controle – os adquirentes, que não apenas não participaram dos ilícitos como adotaram as cautelas necessárias para a celebração do negócio, se veriam surpreendidos com a com a declaração de inidoneidade da sociedade adquirida, “em evidente prejuízo ao princípio da segurança jurídica.”
Para além da discussão sobre segurança jurídica, entendeu o ministro Zymler que “[a] finalidade última da pena prevista no art. 46 da Lei Orgânica do TCU é evitar que o Poder Público continue contratando com empresas controladas por pessoas que não reúnam o requisito moral necessário.” Consequentemente, “a sanção de inidoneidade, caso seja aplicada, repercutirá exclusivamente sobre os novos sócios-controladores, que não participaram das irregularidades em apreciação.”
Observe-se que, por trás do raciocínio, há também uma discussão que é claramente de justiça: o reconhecimento de que a sanção, ainda que aplicada à pessoa jurídica, prejudicaria diretamente seus novos controladores – que não agiram ilicitamente – enquanto nada impactaria naqueles que agiram ilicitamente, ou seja, nos antigos controladores.
Como se pode observar, em se tratando da esfera punitiva, pode não fazer sentido a autonomia absoluta da pessoa jurídica, uma vez que a sanção, em razão do princípio da proporcionalidade e da reprovabilidade, precisa, de alguma maneira, estar conectada às pessoas naturais que praticaram o ilícito, seja para efeitos da imputação[3], seja para efeitos da avaliação da necessidade da sanção ou mesmo da dosimetria da pena. Esta relação de pertinência tem muito a ver com as próprias finalidades das sanções, especialmente no caso da declaração de inidoneidade.
No caso concreto, como bem apontou o relator, a aplicação da sanção não faria sentido, uma vez que os novos controladores não teriam participado do ilícito e a pessoa jurídica ainda havia sido contratada para diversos empreendimentos importantes do setor público.
Nesse sentido, o ministro Zymler teve a oportunidade de lembrar de proposta legislativa no sentido de que os donos de empresas envolvidas em desvios de recursos públicos sejam obrigados a vender todas as suas ações em um prazo de dois anos, explicando que “[o] dispositivo foi construído exatamente para ajudar a resolver o relevante dilema sobre a punição a pessoas jurídicas, pois a principal sanção prevista para empresas, a declaração de inidoneidade, possui efeitos econômicos e sociais adversos, já que acaba atingindo mais os trabalhadores das empresas ou o próprio governo (contratante das empresas) do que seus acionistas, normalmente responsáveis pelos atos ilícitos.’’
Daí por que, diante de alienação de controle realizada de boa-fé e antes da abertura do processo administrativo, não se justificaria a aplicação da sanção à pessoa jurídica, até porque a troca de comando societário já teria propiciado a solução de mercado para o problema, trazendo os mesmos efeitos da proposta legislativa mencionada.
É interessante notar que a argumentação do ministro Zymler foi igualmente apoiada pelo parecer do Ministério Público, que também considerou que a sanção, no caso concreto, afetaria pessoa jurídica “que passou por significativa alteração societária e que é atualmente controlada e administrada por pessoas não envolvidas com os ilícitos que se pretende sancionar”.
Mais do que isso, o parecer também menciona o fato de que o objetivo almejado pela aplicação da sanção de declaração de inidoneidade, que é afastar o agente delitivo do mercado de contratações custeadas com recursos federais, não seria atendido quando se pune pessoa jurídica controlada por quem não participou do ilícito.
Todas as considerações trazidas no julgamento sob exame são de extrema importância para que se possa repensar o princípio da autonomia da pessoa jurídica à luz do Direito Administrativo Sancionador, inclusive para os fins das necessárias adaptações.
Em se tratando da responsabilidade punitiva das pessoas jurídicas, é fundamental estar atento para as finalidades das sanções e as consequências práticas da sua aplicação, razão pela qual a repercussão da pena sobre controladores ou administradores que estiveram pessoalmente envolvidos nos ilícitos precisa ser considerada com a devida atenção.
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[1] Ver FRAZÃO, Ana. Responsabilidade de pessoas jurídicas por atos de corrupção: reflexão sobre os critérios de imputação. In: FORTINI, Cristiana (Org.). Corrupção e seus múltiplos enfoques jurídicos. Belo Horizonte: Forum, 2018; FRAZÃO, Ana. Programas de compliance e critérios de responsabilização de pessoas jurídicas por ilícitos administrativos. In: ROSETTI, Maristela; PITTA, André (Org.). Governança Corporativa. Avanços e Retrocessos. São Paulo: Quartier Latin, 2017.
[2] Ver FRAZÃO, Ana. Os complexos impasses dos acordos de leniência. Está mais do que na hora de incluir a questão da troca de controle nas “empresas delinquentes”. Valor Econômico. Edição de 09.08.2017.
[3] É por essas razões que a autora sustentou, nos trabalhos mencionados na nota de rodapé n. 1, que a melhor teoria para a imputação de pessoas jurídicas na órbita punitiva seria a do defeito de organização.