Ainda não se ultimara a contabilização dos votos dados pelos franceses nas eleições parlamentares europeias quando o presidente Emmanuel Macron surgiu em rede nacional para sua Adresse aux Français: “j’ai dissous l’Assemblé nationale”.
Fora de França, a medida foi recebida com perplexidade. Por que convocar eleições legislativas após um recado contundente de que a perda da maioria parlamentar é provável?
Diversamente do que ocorre com a sistemática parlamentar britânica ou com o mirabolante sistema eleitoral norte-americano, as dinâmicas únicas de funcionamento do regime francês ainda são pouco conhecidas ao redor do mundo.
No Brasil, contudo, a jabuticaba francesa nunca esteve tão em moda. Uma reforma política pela via do semipresidencialismo é advogada por deputados federais, senadores, ex-presidentes da República e ministros do Supremo Tribunal Federal.
O semipresidencialismo francês não pode ser resumido a uma engenhosidade feita às coxas. Ele também não partiu de uma teorização apriorística, mas de uma construção paulatina e plebiscitária.
Em 1958, a falência da Quarta República Francesa (1946-1958) levou o país à beira da guerra civil. De Gaulle, último resquício de unidade e pacificação nacional, seria convidado para formar um governo, o que foi aceito sob a condição de que uma nova Constituição seria submetida a referendo popular. O general seria, assim, o último primeiro-ministro da Quarta República e o primeiro presidente da Quinta República Francesa.
A defesa gaulliana[1] do semipresidencialismo remetia aos “discursos de Bayeux”, de junho de 1946, em que o líder da França Livre denunciava os vícios do Parlamento e enaltecia as virtudes de uma liderança forte na chefia de Estado.
A Constituição de 1958, aprovada em referendo por quatro quintos dos franceses, entabulou uma chefia de Estado “menos bagunçada”[2]. Contudo, as reformas constitucionais empreendidas durante a presidência de De Gaulle (1959-1969) é que institucionalizariam o poder de fato exercido pela figura presidencial sobre o Governo e o Parlamento.
Foi paradigmática a aprovação, também por referendo, da Lei Constitucional 1292, de 1962, que estabeleceu o voto direto e universal para presidente. Imbuiu-se o posto, historicamente decorativo nos regimes parlamentares, de uma legitimidade popular inédita.
Se o cargo de presidente era forte devido ao magnetismo da figura de De Gaulle, após a reforma de 1962 a Presidência se afirmou enquanto a instituição central da política francesa, e a eleição do chefe de Estado como ápice da experiência democrática do país[3].
O semipresidencialismo – expressão popularizada na obra de Maurice Duverger[4] – é caracterizado por uma diarquia hierárquica, em que o chefe de Estado e o chefe de Governo são obrigados a exercer conjuntamente as funções executivas.
No modelo francês, o presidente partilha uma gama de poderes com o primeiro-ministro (pouvoirs partagées), que lhe demandam uma participação ativa nas questões de Governo.
As matérias circunscritas aos pouvoirs partagées dependem do contreseing, isto é, assinatura conjunta dos atos pelo presidente e pelo primeiro-ministro. São exemplos: a nomeação de todos os membros do Conselho de Ministros e de funcionários públicos do alto escalão e a sanção ou veto às proposições legislativas.
A Constituição reserva, contudo, poderes próprios (pouvoirs propres) ao presidente da República, que não dependem do contreseing. Dentre esses, estão a nomeação do primeiro-ministro, a dissolução da Assembleia Nacional, a indicação de membros do Conselho Constitucional e a decretação do estado de exceção (art. 16).
A indicação do primeiro-ministro não precisa recair sobre um membro do Parlamento. Não há sequer imposição constitucional para que o gabinete por ele formado reflitam as maiorias legislativas.
No peculiar sistema francês, não há simetria entre a nomeação e a demissão do primeiro-ministro. Se a investidura do chefe de Governo é uma prerrogativa do chefe de Estado, a demissão do primeiro-ministro só pode resultar de uma renúncia voluntária (art. 8º da Constituição) ou da aprovação de uma moção de censura pela Assembleia Nacional (art. 49).
Logo, embora a Assembleia Nacional não possa exercer um controle prévio sobre a nomeação do primeiro-ministro, apenas ela pode demiti-lo. A possibilidade de que a Assembleia Nacional derrube um primeiro-ministro escolhido obriga um presidente sem maioria parlamentar a escolher um chefe de Governo hostil a seu projeto político, sob pena de paralisia completa do Poder Executivo.
Nesse contexto, define-se coabitação como “a conjuntura política em que o presidente da República e a maioria dos deputados pertencem a tendências políticas opostas”.
A Quinta República testemunhou três períodos de coabitação: Mitterrand-Chirac (1986-1988), Mitterrand-Balladur (1993-1995) e Chirac-Jospin (1997-2002). Os dois primeiros resultaram do descompasso entre o mandato presidencial e as eleições legislativas intercaladas, enquanto a terceira coabitação se deu a reboque da dissolução da Assembleia Nacional.
A crise da coabitação Chirac-Jospin (1997-2002) motivou a realização de reformas que, no início dos anos 2000, acentuaram a “presidencialização” do regime. Com a redução do mandato presidencial de sete para cinco anos, este passou a coincidir com as eleições legislativas, e as chances de coabitação são reduzidas a duas hipóteses: a remota eleição de um presidente da República sem maioria parlamentar ou a perda desta em virtude da convocação excepcional de eleições legislativas após a dissolução do Parlamento.
Desde então, não houve coabitação. Até agora.
Há muitas teorias que buscam explicar a dissolução da Assembleia Nacional por Macron. As eleições europeias não têm o condão de paralisar um governo. Tudo indica que o cálculo político visa 2027 e o próprio futuro da França diante das ameaças civilizatórias pelo avanço da extrema direita.
Macron – desgastado nas políticas interna e externa – quer antecipar uma provável perda da maioria parlamentar em 2027. Trazendo a extrema direita desde já para a chefia de Governo, aposta no desgaste que três anos de coabitação podem causar à imagem e à popularidade do RN e de Marine Le Pen.
Apenas uma configuração semipresidencialista permite esse tipo de cálculo. Se o que vale é a diarquia, Macron prefere sacrificar metade do Poder Executivo por três anos do que perdê-lo inteiramente em 2027, na hipótese de o RN conseguir fazer tanto a maioria parlamentar quanto a Presidência da República.
Uma nova coabitação – a primeira deste século e a primeira após as reformas constitucionais dos anos 2000 – é bastante provável.
Embora complexo, o semipresidencialismo francês revelou-se engenhoso para a acomodação da tensão alternante entre as necessidades de estabilidade e legitimidade, que, no fundo, compõem o núcleo do embate entre presidencialismo e parlamentarismo.
Se a aposta macronista se concretizar, será possível drenar a potencial instabilidade institucional oriunda de uma vitória ampla da extrema direita em 2027. A engenhoca francesa é, assim, um dos únicos sistemas de governo capaz de colocar, em tubos de ensaio, crises políticas contingenciadas.
[1] DE GAULLE, Charles. Memórias de Esperança. Trad. Renato Bittencourt. Rio de Janeiro: Edições MM, 1971, p. 4.
[2] TAVARES, M. L. Semipresidencialismo francês: a relação entre o “rei” e o “pequeno príncipe”. Revista de Informação Legislativa, a. 55, n. 217, jan./mar. 2018, pp. 65-83.
[3] ELGIE, R. France in Semi-presidentialism in Europe. Oxford: OUP, 1999, pp. 67-86.
[4] DUVERGER, M. Introducción a la política. 11ª ed. Barcelona: Ariel, 1997.