Revisão de tese constitucional vinculante

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O controle de constitucionalidade brasileiro, originalmente assentado na dúplice perspectiva concentrada e incidental, sofreu radical transformação com a Emenda Constitucional 45, de 2004, que criou os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, ambos com a finalidade de aproximar os controles incidental e concentrado, de forma a dar unicidade e vinculatividade a toda decisão de (in)constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal no exercício da sua competência precípua de guarda da Constituição, seja por intermédio das ações do controle concentrado (ADI, ADPF, ADC ou ADO) seja via controle incidental (recurso extraordinário com repercussão geral, reconhecida ou não).

O modelo de sindicância constitucional inaugurado pela EC 45/04 assentou-se em tríplice solução vinculante: decisões em ações do controle concentrado, teses de repercussão geral e sumulas vinculantes. Contudo, o desenvolvimento desse modelo concebido pela reforma do Poder Judiciário de 2004 deu prevalência à dinamicidade do controle incidental, decorrente da forte demanda de acessos, com o massivo número de recursos extraordinários que diuturnamente acedem ao Supremo Tribunal Federal.

Com isso, apesar de o número de ações do controle concentrado de constitucionalidade ter se mantido proporcionalmente estável e terem sido editadas 59 súmulas vinculantes, em dez anos, temos hoje fixadas 1.287 teses de repercussão geral[1]. Portanto, os dados de acesso e decisões do STF indicam que a fixação de tese de repercussão geral vem sendo a modalidade de controle de constitucionalidade mais acionada a partir da EC 45/04.

A interpretação e aplicação da tese de constitucionalidade firmada pelo Supremo Tribunal Federal, na sistemática incidental e vinculante da repercussão geral, enfrenta desafios e suscita controvérsias imanentes do diálogo entre facticidade e direito, sobretudo no âmbito jurisprudencial dos demais tribunais, que detêm a dúplice e desafiadora função de, ao mesmo tempo, exercer também a sindicância constitucional sem se afastarem dos cânones fixados na tese e nos precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, o procedimento de revisão de tese de repercussão geral surge como elemento fundamental para garantir a própria higidez do sistema, assegurando ao mesmo tempo a perenidade do verbete e sua adaptabilidade às mudanças fácticas e circunstanciais que sobrevierem após a sua edição.

Precisamos fixar de antemão a baliza de que a revisão de tese, independentemente da via eleita, pressupõe a introdução de novos elementos fáticos ou jurídicos a corroborar eventual revisitação do tema já apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, bem como a demonstração de controvérsia atualizada sobre a matéria objeto da tese de repercussão geral, perante órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, de forma a acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.

Especificamente no tocante à revisão de tese de repercussão geral, a alínea ‘c’ do inc. V do art. 1030 e o caput e § 1º do art. 1041, ambos do Código de Processo Civil de 2015, dispõem:

“Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá: (…)

V – realizar o juízo de admissibilidade e, se positivo, remeter o feito ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, desde que: (…)

c) o tribunal recorrido tenha refutado o juízo de retratação. (…)

Art. 1.041. Mantido o acórdão divergente pelo tribunal de origem, o recurso especial ou extraordinário será remetido ao respectivo tribunal superior, na forma do art. 1.036, § 1º.

1º Realizado o juízo de retratação, com alteração do acórdão divergente, o tribunal de origem, se for o caso, decidirá as demais questões ainda não decididas cujo enfrentamento se tornou necessário em decorrência da alteração”.

O CPC de 2015 não soluciona a questão no tocante do instrumento vocacionado para a revisão de tese jurídica formada em sede de repercussão geral. Entretanto, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) prevê expressamente a possibilidade dessa revisão, nos termos de seus art. 103 e caput do 327, verbis:

“Art. 103. Qualquer dos Ministros pode propor a revisão da jurisprudência assentada em matéria constitucional e da compendiada na Súmula, procedendo-se ao sobrestamento do feito, se necessário. (…)

Art. 327. A Presidência do Tribunal recusará recursos que não apresentem preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, bem como aqueles cuja matéria carecer de repercussão geral, segundo precedente do Tribunal, salvo se a tese tiver sido revista ou estiver em procedimento de revisão”.

Ocorre que o RISTF, ao prever que o ministro pode propor a revisão de tese, seja em face de entendimento sumulado ou de repercussão geral, não fixa qual procedimento processual específico para atacar a tese jurídica firmada em sede de repercussão geral.

Diante da omissão na legislação sobre a via eleita ou procedimento a ser seguido, o Supremo Tribunal Federal tem determinado a subida de recursos extraordinários em reclamação constitucional, com o escopo de rediscutir as premissas fixadas no paradigma[2].

Se é certo que, nas três modalidades decisórias vinculantes do subsistema de controle de constitucionalidade (concentrado, incidental na sistemática de repercussão geral e súmulas vinculantes), a constituição elegeu a reclamação constitucional como via para fazer valer a autoridade da decisão do STF, é também certo que o crescente manejo da reclamação constitucional, seja para a preservação da autoridade das teses fixadas na sistemática da repercussão geral, seja para a preservação das decisões de (in)constitucionalidade do controle concentrado, tem gerado gargalos e patologias decorrentes do excessivo alargamento dessa via de acesso.

A realidade decorrente dos desafios na interpretação e aplicação das teses de repercussão geral, por todos os múltiplos atores constitucionais, somada à lacuna normativa do tocante ao procedimento específico para a revisão, sugerem que exploremos alternativas para a atualização das teses fixadas na sistemática da repercussão geral, dentre as quais assume relevo o Procedimento de Revisão de Súmula Vinculante (PSV) previsto na Lei 11.417/06 e no art. 354-B do Regimento Interno do STF, conforme passaremos a expor.

Para além da Lei 11.417/06, a proposta de edição, revisão e cancelamento de súmulas vinculante está disciplinada nos art. 354, de A a G, do Regimento Interno do STF, introduzidos pela Emenda Regimental 46/11.

Dentre as condições formais para a instauração de procedimento de revisão de súmula vinculante, hipótese pertinente à presente análise, destacam-se: a) o rol estrito dos ativamente legitimados, fixado no art. 3º da Lei 11.417/06[3]; e, b) a demonstração de que a interpretação do enunciado vinculante (in casu da tese de repercussão geral) vem sendo objeto de controvérsia atual perante órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, de forma a acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão (§ 1º do art. 2º da Lei 11.417/06[4]).

Desde a EC 45/04, em duas décadas, para a efetiva edição das 59 súmulas vinculantes, foram oferecidas 146 Propostas de Súmulas Vinculantes, dentre as quais apenas 10 tiveram como objeto a revisão de verbete sumular vinculante[5].

Esse quadro denota que a Proposta de Súmula Vinculante (PSV) tem sido pouco explorada (quer seja para edição, revisão ou cancelamento de verbetes vinculantes), revelando a aptidão do procedimento, em sua modalidade revisional, para a atualização das teses de repercussão geral, também vinculantes, de forma dar concretude ao pleno potencial do instrumento, aperfeiçoando-se, dessa forma, o sistema de controle de constitucionalidade.

Nesse sentido, vale destacar que o STF assentou a unicidade axiológica do subsistema de controle de constitucionalidade, ao decidir que o julgamento de recursos extraordinários sob a sistemática de repercussão geral seria regido pelas leis do controle concentrado de constitucionalidade, afastando-se a incidência do Código de Processo Civil, para efeitos de reconhecimento da legitimidade do amicus curiae para a oposição de embargos de declaração[6].

A própria disciplina procedimental da proposta de súmula vinculante (PSV) interconecta as sistemáticas de controle de constitucionalidade, ao prever que a fixação de tese de repercussão geral poderá dar origem a súmula vinculante mediante iniciativa do relator, nos termos da literalidade do art. 354-E que prevê: “a proposta de edição, revisão ou cancelamento de Súmula Vinculante poderá versar sobre questão com repercussão geral reconhecida, caso em que poderá ser apresentada por qualquer ministro logo após o julgamento de mérito do processo, para deliberação imediata do Tribunal Pleno na mesma sessão”.

Ora, essa reconhecida unicidade autoriza a intercambialidade da proposta de revisão de sumulas, originalmente concebida para a atualização de sumulas vinculantes, para a revisão de teses de repercussão geral, também vinculante, em uma desejável fungibilidade dos mecanismos de revisão. Com isso, evita-se um alargamento ainda maior da via reclamatória, privilegia-se o acesso qualificado do rol estrito dos legitimados e, por fim, mas não menos importante, dá-se plena concretude ao procedimento revisional previsto na Lei 11.417/06 e nos art. 354-A a 354-G do RISTF.

Conclui-se que, diante da ausência de instrumento especificamente vocacionado para a revisão de tese firmada em sede de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal tem acolhido o manejo de reclamação constitucional com o objeto específico de rediscutir as premissas fixadas no paradigma.

Entretanto, o crescente manejo da reclamação constitucional tem acarretado gargalos decorrentes do alargamento de sua via de acesso, a sugerir alternativas para a atualização das teses fixadas na sistemática da repercussão geral, dentre as quais assume relevo o procedimento de revisão de súmula vinculante, previsto na Lei 11.417/06 e nos art. 354-A a G do Regimento Interno do STF.

Desde a EC 45/04, em duas décadas, para a efetiva edição das 59 súmulas vinculantes, foram oferecidas 146 Propostas de Súmulas Vinculantes (PSV), dentre as quais apenas 10 tiveram como objeto a revisão de verbete sumular vinculante, quadro que denota a aptidão do procedimento, em sua modalidade revisional, para a atualização das teses de repercussão geral, também vinculantes, de forma dar concretude ao pleno potencial do instrumento, aperfeiçoando-se, dessa forma, o sistema de controle de constitucionalidade.

Para tanto, deverão ser observadas as condições formais, dentre as quais destacam-se o rol estrito de legitimados e a demonstração de controvérsia atualizada sobre a matéria objeto da tese de repercussão geral, perante órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, de forma a acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.

[1] Dados disponíveis em <https://portal.stf.jus.br/hotsites/corteaberta/>, acesso de 20/05/2024.

[2] Nesse sentido os seguintes precedentes: Rcl 4.374, Rel. Min. Gilmar Mendes, e as Rcl 25.236-MC e Rcl 25.433-MC, ambas da relatoria do Min. Roberto Barroso, Pet 10.230-AgR, da Rel da Min. Presidente Rosa Weber, Plenário, de 18/03/2023 (no mesmo sentido a Pet. 1738-AgR).

[3] A saber as entidades legitimadas a ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103 da CF), além do Defensor Público-Geral Federal, dos Tribunais Superiores, dos Tribunais de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais, do Trabalho e Eleitorais, dos Tribunais Militares e dos Municípios, estes últimos apenas incidentalmente nos processos em que sejam partes.

[4] Lei nº 11.417/06: Art. 2º. (…) § 1º O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.

[5] Dados disponíveis em <https://portal.stf.jus.br/hotsites/corteaberta/>, acesso de 20/05/2024.

[6] STF – RE 949.297 e RE 955.227.