Reversão de bens públicos em saneamento: prestação do serviço em primeiro lugar

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A reversão de bens públicos ao término de contratos de concessão representa um desafio complexo e sensível, mas que não é maior do que a carência da população em algumas áreas, como, por exemplo, no que diz respeito ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário.

Frequentemente, discussões acerca da reversão dos bens públicos vinculados à prestação dos serviços prejudica os usuários. E, quase sempre, os debates decorrem da falta de clareza dos instrumentos contratuais afetos à concessão, ou de resistência da concessionária que será substituída, na tentativa de condicionar a devolução dos bens à prévia compensação financeira.

Ocorre que, embora a pretensão indenizatória possa ser em tese legítima, ela não justifica a criação de entraves à devolução dos bens reversíveis, e certamente não é pretexto para a ampliação do contrato de concessão em curso.

A oposição à devolução dos bens reversíveis será tanto mais lesiva quanto maior for a essencialidade dos serviços e a complexidade dos bens a serem retornados. Nesse sentido, a situação dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário é emblemática.

Primeiro, porque são serviços essenciais à saúde da população. Quanto mais remota a localidade, menor é o índice de coleta, tratamento de esgoto, bem como abastecimento de água potável. Segundo os dados do Instituto Trata Brasil[1], o tratamento de esgoto no Brasil não chega a 60% da população e, em 2021, houve no país mais de 130 mil internações por doenças de veiculação hídrica.

Segundo, porque há a necessidade de que a nova concessionária assuma e opere com brevidade bens reversíveis complexos, que envolvem infraestruturas hidráulicas, tais como tubulações, reservatórios, estações de tratamento de água, estações de bombeamento, adutoras, e infraestruturas de esgotamento sanitário, compreendendo redes coletoras de esgoto, estações de tratamento, emissários, elevatórias, e estruturas de tratamento e disposição final dos esgotos.

Além disso, são considerados bens reversíveis ao poder público os equipamentos, máquinas, veículos e ferramentas de manutenção, softwares e sistemas de gestão responsáveis pelo controle de toda a operação, além de toda a documentação técnica, que inclui manuais, projetos, planos operacionais e outros documentos fundamentais para a gestão do sistema.

Com efeito, os parágrafos §2º e 3º, do artigo 35, Lei 8.987/95 (Lei de Concessões), determinam que, uma vez extinta a concessão, “haverá a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários”, bem como que, a “…assunção do serviço autoriza a ocupação das instalações e a utilização, pelo poder concedente, de todos os bens reversíveis”.

Regras de indenização

Especificamente nos casos de extinção da concessão por advento do termo final de vigência do contrato (art. 35, I) e por encampação (art. 35, II), a Lei de Concessões ainda determina que o poder concedente se antecipe ao final da concessão e proceda aos levantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida à concessionária (art. 35, § 4º).

Na mesma linha, a Lei 11.445/2007, Marco Legal do Saneamento, prevê que a transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, nos termos da Lei de Concessões, sendo facultado ao titular (não é, portanto, obrigatório) atribuir ao prestador que assumirá o serviço a responsabilidade por seu pagamento.

O art. 42, § 5º do Marco Legal do Saneamento, que trata destas regras de indenização nas hipóteses de transferência de serviços de um prestador para outro, teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento conjunto de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (6.492/DF, 6.536/DF, 6.583/DF e 6.882/DF), em 2021.

Tais dispositivos da Lei de Concessões e do Marco Legal do Saneamento resguardam a pretensão indenizatória por investimentos ainda não amortizados e por bens ainda não depreciados ao final da concessão, o que é razoável, afinal, sem direito à indenização, nenhum concessionário investiria nos ativos necessários à boa prestação dos serviços públicos nos anos finais dos contratos de concessão.

Entretanto, a legislação não determina o pagamento prévio das indenizações e os bens reversíveis não devem constituir ferramenta de barganha no momento da transição. A insegurança jurídica acerca da imediata devolução dos bens reversíveis para o poder público compromete a ampliação do número de interessados em assumir novas concessões, em especial, no caso de serviços complexos como aqueles afetos ao saneamento básico.

Há precedentes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (por exemplo, em relação ao Recurso Especial 1.059.137-SC, julgado improvido pelo ministro Francisco Falcão) no sentido de que a transição dos serviços públicos, ativos, bens e informações, não se condiciona à prévia indenização ao concessionário, sob pena de prejudicar a continuidade da prestação dos serviços públicos.

Também no julgamento das ADIs, em 2021, o STF não se debruçou sobre a necessidade de prévia indenização ao concessionário como condição para a transferência dos serviços públicos.

E, ainda, em dezembro de 2023, ao apreciar demanda envolvendo reversão de públicos afeto a concessão no município paulista de Salto (Reclamação 64.128, STF), o ministro André Ramos Tavares ponderou, em decisão monocrática, que “não é possível depreender desse conjunto de normas – e tampouco do julgado apontado como paradigma – que a ocupação deva ser necessariamente precedida de indenização. Embora a indenização seja devida, cumpre lembrar que, por se tratar de serviço essencial, revela-se imperativa a imediata assunção do serviço pela Administração, sem solução de continuidade no seu fornecimento aos usuários”.

Tal entendimento deixa claro que a indenização prévia dos bens reversíveis não deve obstaculizar, em qualquer medida ou sentido, a transferência dos serviços públicos de saneamento básico. As indenizações, quando devidas, devem ser discutidas em processos administrativos e, no limite, na via arbitral ou no Poder Judiciário, conforme previsão da cláusula de solução de conflitos dos respectivos contratos de concessão.

É fundamental que esse entendimento seja desde logo aplicado pelos tribunais estaduais, evitando que discussões indenizatórias inviabilizem a assunção dos serviços de saneamento pelos novos concessionários. Sem isso, no caso do abastecimento de água e do esgotamento sanitário, seguramente haverá mais atraso na universalização dos serviços preconizada pelo Marco Legal do Saneamento.

[1] (Instituto Trata Brasil, acesso em 09/04/2024).

Ementas das decisões do STJ analisadas para a elaboração deste artigo:

STJ. AgRg no REsp 1.139.802/SC, Min. Rel.  HAMILTON CARVALHIDO, 1ª Turma, J. em 12.04.2011;

STJ, AgRg no AREsp 481.094/RJ, Min. Rel. MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª Turma, J. em 15.05.2014;

STJ, AgRg na SLS n.º 1.406/RS, Min. Rel. ARI PARGENDLER, Corte Especial, J. em 13.08.2011;

STJ, EDcl no REsp nº 1.059.137-SC, Min. Rel. FRANCISCO FALCÃO, 1ª Turma, J. em 02.12.2008.

Ementa do acórdão paradigma do STF analisado para a elaboração deste artigo:

Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.492, 6.536, 6.583 e 6.882

Lei 14.026/2020

Lei 9.984/2000

Lei 10.768/2003

Lei 11.107/2005

Lei dos Consórcios Públicos

Lei 11.445/2007

Adi 6492, relator(a): luiz fux, tribunal pleno, julgado em 02-12-2021

Processo eletrônico dje-100 divulgada em 24-05-2022, publicada em 25-05-2022