Há poucos dias, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, tornou pública a estratégia daquele país para a internet e a inteligência artificial por meio do United States International Cyberspace & Digital Policy Strategy – Towards an Innovative, Secure, and Rights-Respecting Digital Future[1].
De forma clara e transparente, o curto documento traça o diagnóstico, elenca propostas de ação e deixa claro quem são os aliados preferenciais e, como consequência, os adversários, na visão do país onde surgiu a rede mundial de computadores. Mais do que isso, o Departamento de Estado (DoS) aponta para onde entende que deva ir a governança global da internet 55 anos depois de sua criação. A agenda é tão impactante que a vale a pena destrinchá-la e tecer alguns comentários que possam ajudar o Brasil a navegar por águas que se tornam cada vez mais turvas dada a guerra geopolítica que se estabeleceu no campo de batalha do digital nas últimas duas décadas.
A estratégia coloca um conceito basilar pouco usual para fundamentar todo o restante de seu conteúdo: a solidariedade digital. Trata-se da disposição dos EUA de trabalharem juntos com seus aliados em objetivos comuns, ajudando parceiros a desenvolver capacidades e proporcionando suporte mútuo. Esta solidariedade: reconhece que o uso de tecnologias digitais de maneira respeitosa aos direitos resulta em maior segurança, resiliência, autodeterminação e prosperidade; inclui apoiar aliados, especialmente economias emergentes, a aproveitar novas tecnologias e alcançar metas econômicas e de desenvolvimento; envolve alinhamento com parceiros internacionais em governança tecnológica, parcerias fortes com sociedade civil e setor privado, e resiliência cibernética; e visa promover esforços cooperativos para defender direitos humanos e construir capacidade digital, garantindo um ecossistema digital defensável e resiliente.
Retórica universal, agenda nacional
Indo além do conceito inicial, o país repete inúmeras vezes no documento que pretende trabalhar com aliados, parceiros e partes interessadas globais para moldar o design, desenvolvimento, governança e uso do ciberespaço e tecnologias digitais. Segundo a argumentação, que vem da linguagem diplomática, isso visaria avançar a prosperidade econômica e de inclusão, melhorar a segurança e combater o cibercrime, promover e proteger os direitos humanos, democracia e o estado de direito, e enfrentar desafios transnacionais.
Um parágrafo específico, porém, deixa claro os benefícios para os EUA e o status quo que precisa ser preservado para alcançá-los:
Os atores do governo e do setor privado dos EUA buscam aproveitar os dados e a economia digital para obter benefícios econômicos e sociais positivos: preservar a abertura e, ao mesmo tempo, proteger a privacidade, promover a segurança e reduzir os danos. O Departamento de Estado, trabalhando com outras agências, procura moldar os mercados e proteger a inovação contra excessos regulatórios. Embora alguns países estejam cada vez mais dispostos a adotar narrativas de soberania digital e protecionismo, bloqueando o acesso a seus mercados, impedindo indevidamente os fluxos de dados transfronteiriços e dando preferência a fabricantes e provedores de serviços nacionais, continuamos com o engajamento internacional para aprimorar a interoperabilidade, a segurança e o acesso ao mercado.
E a estratégia se propõe a fazer isso por meio de três princípios e quatro áreas de ação.
Princípios:
Visão afirmativa para o ciberespaço e tecnologias digitais: Focada nos benefícios da tecnologia e fundamentada em compromissos internacionais e leis de direitos humanos.
Integração de cibersegurança, desenvolvimento sustentável e inovação tecnológica: A segurança cibernética é essencial para o crescimento econômico e a proteção dos direitos dos cidadãos.
Abordagem política abrangente: Utilizando ferramentas diplomáticas e de política internacional em todo o ecossistema digital.
Áreas de ação:
Promover e manter um ecossistema digital aberto, inclusivo, seguro e resiliente.
Alinhar abordagens de governança digital e de dados respeitando os direitos humanos com parceiros internacionais.
Avançar o comportamento responsável dos estados no ciberespaço e combater ameaças cibernéticas e infraestruturas críticas.
Fortalecer e construir a capacidade digital e cibernética dos parceiros internacionais.
Mostrando alinhamento com a doutrina de Blinken, na semana passada a secretária de Comércio, Gina Raimondo, disse que os EUA estão buscando aliados para criar uma rede global que busque aumentar a segurança em relação aos impactos negativos e riscos representados pelos sistemas de inteligência artificial. E os alvos deste apoio seriam os parceiros de quase sempre: Canadá, Japão, Reino Unido e Austrália. Mas o movimento estaria aberto a outros países.
E como mostra a revista Wired[2], mais uma vez a dirigente se vale da retórica universal mirando a agenda nacional do país, que tem o objetivo de manter a dianteira no mercado global de IA:
“Os recentes avanços em IA trazem um potencial empolgante e transformador para nossa sociedade, mas somente se fizermos o trabalho árduo para mitigar os perigos muito reais”, disse a secretária Raimondo em um comunicado divulgado antes do anúncio. “É fundamental que façamos isso direito e que o façamos em conjunto com nossos parceiros em todo o mundo para garantir que as regras do caminho na IA sejam escritas por sociedades que defendam os direitos humanos, a segurança e a confiança.”
Segurança cibernética e parceiros preferenciais
De saída, além da escolha das palavras, duas coisas chamam a atenção nestas manifestações. Primeiro, o documento do Departamento de Estado quase que integralmente mantém um forte vínculo entre as questões cruciais para o futuro do digital e a defesa cibernética da internet, prometendo amplo apoio e suporte às nações amigas para construir capacidades internas que as ajudem a enfrentar as oportunidades e ameaças colocadas para o futuro do ciberespaço. Em segundo lugar, foco determinado nos parceiros prioritários: a sociedade civil e o setor privado.
O apelo à cibersegurança, presente também na iniciativa de Raimondo, se dá pela clara revelação do principal desafio para a chamada comunidade global da rede das redes criada e mantida pelos próprios Estados Unidos por meio do que chamo de a armadilha do consenso[3]. Trata-se das ameaças de estados autoritários – Rússia e China, nominados de forma cabal no documento – que estariam ameaçando os valores caros à democracia ocidental e que teriam sustentado até hoje a atual conformação da internet: um ambiente aberto, inclusivo, seguro e resiliente.
Historicamente, estas quatro características podem ser encontradas em diversos documentos principiológicos de países que adotaram este corolário liberal para reproduzir em solo nacional o que advém de uma só fonte. Mais uma vez, o Departamento de Estado se vale de uma retórica universal – a democracia e a liberdade – para defender seus interesses globais.
Mantras que já não se sustentam no contexto atual. Cada vez mais, a internet tem se fechado e é pouco inclusiva seja em sua camada de aplicações, por meio de concentração de mercado em cinco conglomerados globais com sede nos EUA, seja em suas camadas lógica e de infraestrutura, por meio de padrões proprietários que dificultam a entrada de novos atores em qualquer um destes ambientes.
Diversos vazamentos e ações de espionagem nos últimos anos, além de manipulação de dados pessoais, corporativos e públicos, têm demonstrado também que não estamos conectados a um ambiente seguro. Por fim, a resiliência tem sido posta à prova com alguns ataques cibernéticos a suas infraestruturas críticas experimentados por nações de todos os espectros políticos.
Um segundo conteúdo digno de nota é a recorrência no texto em identificar seus parceiros de primeira ordem. Além dos tradicionais aliados, como Austrália e Japão, os EUA reivindicam manter a integração com a sociedade civil, o setor privado e a chamada comunidade técnica da internet, três bases do chamado multissetorialismo da governança global até hoje. O artigo citado acima mostra que este é o último bastião a que esses países podem se agarrar.
Como já sustentei neste JOTA[4], isso ocorre justamente quando seus posicionamentos sobre o digital estão sendo questionados tanto na Organização Mundial do Comércio (OMC) quanto nas Organizações das Nações Unidas (ONU). Neste último organismo, o secretário-geral, António Guterres, vem propondo aumentar a participação dos Estados Nacionais na governança da rede e da inteligência artificial, está a nova fronteira de disputa da geopolítica e da geoeconomia mundiais que carrega também a guerra pelo controle da produção de semicondutores.
Além disso, a atuação das empresas-plataformas monopolistas norte-americanas, por conta dos impactos negativos gerados por seus modelos de negócios, está sendo posta à prova por meio de diversos remédios regulatórios, de caráter econômico ou social, discutidos ou implementados nos mais diversos países, inclusive no Brasil. Este cenário torna natural a oposição dos EUA a tudo que gravite em torno do conceito de “soberania digital” ou “excessos regulatórios”.
Para seus eleitos como parceiros prioritários, e em uma clara demonstração de força contra Guterres, a Casa Branca propõe fortalecer e dar continuidade ao Internet Governance Forum (IGF), instância de discussões não deliberativas que vem mantendo a comunidade global que partilha destes ideais amalgamada no conceito de multissetorialismo e nos valores liberais citados acima.
Este caldo de cultura vem gerando, nos últimos anos, um efeito colateral que esse polo do debate convencionou chamar de fragmentação da internet. Natural para um mundo fraturado em vários sentidos, a expressão atribui a causa destas diversas fissuras, e a consequente busca por um protecionismo por parte de todas as nações que desejam fortalecer seus ecossistemas e mercados digitais, aos denominados “estados autoritários”, nas palavras da Estratégia.
Na verdade, além de Rússia e China, países como Coreia do Sul, Índia, África do Sul, Indonesia e a própria União Europeia, com suas regulações pesadas a atores estrangeiros, estão questionando este predomínio histórico no ciberespaço enquanto criam campões nacionais que chegam a superar as cinco grandes plataformas dos EUA em termos de usuários locais. Aqui, a fragmentação também pode ser vista como mais uma expressão do processo de contínuas reorganizações dos fatores de poder geopolítico, o que explica a movimentação dos EUA nessa arena.
Esta realidade exige dos EUA a construção de um círculo maior de influência em um escopo que agora, com o advento de IA, amplia a necessidade de acesso a mercados, passando a incluir a ainda mais complexa governança de dados em sua área de interesse para o digital:
Para enfrentar esses e outros desafios em evolução, o Departamento de Estado continuará a ampliar o contato com uma ampla gama de atores da sociedade civil e do setor privado e a solicitar a contribuição deles. Além disso, os Estados Unidos continuarão a trabalhar com aliados e parceiros para promover uma abordagem multissetorial para a governança digital e de dados.
Caminhos para o Brasil
Estas mudanças estruturais na geopolítica da agenda digital que estão em curso exigem uma abordagem pelos estados nacionais que não pode ser limitada a iniciativas dispersas e desconectadas de uma estratégia que olhe o nacional sem perder de vista os movimentos globais. E se torna ainda mais delicada quando a corrida eleitoral pela Casa Branca torna o futuro mais incerto e esta agenda de Blinken pode não sair do papel.
A administração Biden percebeu, tardiamente, que ao longo de meia década o país pecou ao sustentar a retórica e pagar a conta da expansão da internet e do Vale do Silício mas ter deixado de lado políticas para orientar a atuação e o desenvolvimento destes conglomerados. A estratégia, agora, tenta transformar a fraqueza em virtude, mas acaba não passando do campo da retórica porque faltam meios e tempo para uma mudança estrutural.
No Brasil, isso se torna ainda mais sério quando hoje percebemos que uma abordagem técnica tem preponderado sobre questões políticas nos níveis regulatório, tecnológico e de infraestrutura. Trata-se de uma pauta complexa e interconectada que exige decisões mais sistêmicas, estratégicas e transdisciplinares para que os países, principalmente os do Sul Global, saiam de uma postura reativa e de proteção de direitos, que ataca os efeitos mas não as causas do problema, para incorporar iniciativas que ajudem a organizar mercados, culturas e sociedades preservando os interesses nacionais envolvidos.
Seguramente, em breve nosso país terá que tomar posição no tabuleiro deste jogo. Seja aceitando a agenda posta por Blinken, beneficiando-se da “proteção” da nação amiga, que não tem a praxe de transferência de tecnologia em seus acordos bilaterais, seja criando seu próprio caminho e apostando em um plano estratégico que fortaleça sua economia digital, corrija abusos políticos e econômicos já estabelecidos em seu próprio território e exerça um papel de maior protagonismo para atuar no conturbado palco global.
Entre os cenários possíveis, pode-se destacar pelo menos três. Adotar a alternativa colocada pelo Departamento de Estado é mais fácil e conveniente para uma política internacional que busque um alinhamento automático ao status quo que nos trouxe aqui.
A mesma agenda que contribuiu para impedir o Brasil de desenvolver sua própria indústria digital e que criou obstáculos à democracia e à saúde pública que estamos tendo que enfrentar por conta da disseminação de desinformação por intermédio de plataformas não reguladas. Neste caso o país poderia levantar a bandeira da internet livre, aberta e outros adjetivos que permitiram que o controle direto e indireto da rede por uma única força hegemônica se desenvolvesse ao longo das últimas cinco décadas.
Construir a segunda opção exige mais recursos, tempo, mobilização e concertação nacionais. Mas ao invés de “fechar” nossa internet, estaríamos criando musculatura para ter mais relevância e controle sobre nosso próprio mercado e infraestruturas digitais nacionais, bem como podendo expandi-los regionalmente.
Mas também existe um caminho complementar ao segundo que poderia ser o mais adequado para o Brasil. Manter a busca por uma maior autonomia comercial e industrial do Brasil preservando os alicerces da agenda digital ocidental, como a defesa do estado democrático de direito, a liberdade de expressão, a proteção de direitos e a promoção da concorrência. Isso poderia nos dar autoridade suficiente para apoiar as estruturas que o secretário-geral da ONU pretende construir, preservando instâncias multissetoriais, sem sermos acusados de querermos fragmentar e censurar a internet ou impedir o desenvolvimento tecnológico da humanidade.
O fato é que uma escolha precisa ser feita. Ela pode ser soberana sem fomentar a polarização. Assegurar o livre fluxo de dados sem renunciar à defesa comercial. Ser aberta sem comprometer a segurança nacional. Usar a regulação para proteger cidadãos e empresas nacionais sem matar a inovação. Criar e manter este equilíbrio não é um objetivo fácil de ser alcançado. Mas é o caminho que resta para quem acredita que a internet é um bem da humanidade a ser preservado sem que isso signifique exclusão de qualquer uma das partes da equação.
[1] Disponível em: https://www.state.gov/united-states-international-cyberspace-and-digital-policy-strategy/#Note2
[2] Declaração publicizada em Seul durante a AI Safety Summit 2024, que contou com a participação de 28 países, incluindo a China. Disponível em https://www.wired.com/story/us-forming-global-ai-safety-network-key-allies/
[3] Disponível em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/a-internet-e-a-armadilha-do-consenso/
[4] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-nobel-contra-as-big-techs-27032024?non-beta=1