O tema da responsabilização civil da indústria do tabaco não é novo. Em todos os continentes discute-se, em maior ou menor medida e em diferentes instâncias, a responsabilidade das empresas fabricantes de produtos de tabaco pelos custos sociais dos danos (individuais e coletivos) causados pelo consumo – direto e indireto – desses produtos.
Especialmente porque tais danos já não são mais controversos, tampouco negados pela própria indústria, mesmo que o atraso em reconhecê-los seja um comportamento reiterado ao longo de sua história.
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Por que a questão da responsabilização da indústria do tabaco deve estar na pauta de nossas preocupações em 2025, então? Essa pergunta pode ser respondida com, pelo menos, dois importantes argumentos.
O primeiro deles diz respeito ao perigo que ronda a saúde de adolescentes e jovens adultos no país, em razão do fortíssimo lobby da indústria do tabaco para liberação da produção e venda dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), como os cigarros eletrônicos e os produtos de tabaco aquecido.
Sobre eles, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) já afirmou tratar-se de um “estratagema” empregado pela indústria de tabaco e afins para comercializar esses produtos como se oferecessem um risco reduzido aos seus usuários, ou como – por mais absurdo que isso soe – uma forma de auxiliar quem quer deixar de fumar cigarros tradicionais. Na realidade, cigarros eletrônicos e vapes visam perpetuar a epidemia de tabaco e atrair novos usuários – jovens, principalmente – para manter seus mercados[1].
O segundo argumento diz respeito ao objetivo central deste texto: à Ação Civil Pública 5030568-38.2019.4.04.7100, que tramita na 1ª Vara da Seção Judiciária de Porto Alegre, e que, à diferença de outras ações em curso no país nas últimas décadas, não trata do dano desses produtos sob uma perspectiva individual.
A ação tem por objeto a proteção do direito fundamental à saúde pública por meio do ressarcimento dos danos, passados e presentes, causados pelo consumo de cigarro ao Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo tratamento de 27 doenças comprovadamente atribuíveis ao consumo de cigarros.
Os fundamentos de ordem processual e material debatidos na referida ação encontram-se resumidos em site disponibilizado pela ONG ACT Promoção da Saúde, para dar visibilidade ao processo e facilitar o debate público sobre essa importante iniciativa da Advocacia-Geral da União, voltada à responsabilização das maiores fabricantes de cigarros do país pelos danos causados pelo seu negócio à saúde pública.
Considerando a extensão do processo, que já conta com mais de 20 mil páginas, com dezenas de pareceres técnicos de ambos os lados, a iniciativa é um alento e fôlego adicional para quem busca participar do debate coletivo de tema urgente e atual.
Além de danos materiais causados ao SUS, a ação também busca o pagamento de danos morais coletivos sofridos pela sociedade e pelo Estado brasileiro, com intuito tanto compensatório, quanto pedagógico, e tem como fundamento premissas como: o significativo gasto com tratamentos caros que acabam por dificultar o financiamento e o atendimento para demandas de saúde diversas (como vimos ocorrer, aliás, durante a pandemia de Covid-19); o nexo causal epidemiológico, calculável por variados métodos quantitativos cientificamente consagrados, já aplicados em demandas similares em foros internacionais; e o reconhecimento inquestionável de que mesmo atividades lícitas podem gerar danos e, por conseguinte, o dever de indenizar.
Além disso, a ação civil pública proposta pela União ressalta o fato de o Brasil ter assumido o compromisso internacional de “promover” suas leis para buscar a responsabilização civil das empresas fabricantes de cigarros, visando inclusive a compensação pelos danos, o que constitui um aspecto importante da eficácia das normas jurídicas.
Não se trata, aqui, de editar novas leis (porquanto já existentes à suficiência), mas sim de viabilizar o direito que delas decorre. É o que está presente no artigo 19 da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), compromisso assumido pelo país e que teve seu ingresso no âmbito normativo formalizado por meio do Decreto 5.658/06.
Hoje, quem paga a conta do cigarro é o Estado (o SUS), a sociedade, fumantes adoecidos e seus familiares. Com as empresas, ficam só os lucros exorbitantes do negócio. Mas há de chegar o dia em que a conta do cigarro será paga pelas grandes corporações multinacionais de tabaco. E 2025 pode ser o ano em que uma sentença – que certamente se tornará uma das mais importantes da história do país – promoverá a responsabilização da indústria do tabaco no Brasil.
[1] Relatório sobre o Controle do Tabaco na Região das Américas 2022. Resumo executivo. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/56264/OPSNMHRF220023_por.pdf?sequence=7&isAllowed=y.