A recente proposta de reforma tributária, a ser regulamentada no PLP 68/2024, introduz novos elementos na discussão sobre a responsabilidade tributária, especialmente no que diz respeito às plataformas digitais.
O artigo 23 do PLP 68 estabelece a sujeição passiva dessas plataformas nas situações elencadas nos incisos, ampliando sua responsabilidade no recolhimento de tributos como o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Entretanto, essa ampliação levanta questões sobre sua compatibilidade com princípios constitucionais, particularmente no que tange à capacidade contributiva e à segurança jurídica, uma vez que envolve a delimitação do vínculo com o fato gerador.
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A sujeição passiva na relação jurídico-tributária pode ser atribuída tanto ao contribuinte, que realiza o fato gerador, quanto ao responsável, que, sem realizar o fato, é legalmente incumbido de cumprir a obrigação tributária. A definição do sujeito passivo, conforme o artigo 121 do Código Tributário Nacional (CTN), exige uma relação direta com o fato gerador ou uma imputação legal que demanda cautela.
Assim, o legislador não pode atribuir responsabilidade tributária a quem bem entender, sob pena de incorrer em errônea interpretação do artigo 128 do CTN, levando à violação do princípio do não confisco. Portanto, mesmo diante da definição de um terceiro como sujeito passivo da obrigação tributária (responsável lato sensu), a identificação do contribuinte continua a ser relevante, uma vez que a obrigação tributária e sua quantificação estão frequentemente conectadas às características pessoais do contribuinte.[1]
No contexto das plataformas digitais, a legislação proposta atribui a elas uma responsabilidade lato sensu. Quando atuam na intermediação de operações não presenciais e controlam elementos essenciais à transação, como a cobrança ou o pagamento, elas são responsáveis pelo recolhimento do IBS e da CBS em diferentes modalidades: (i) substituição do contribuinte, quando este for residente no exterior; ou (ii) responsabilidade solidária, quando o contribuinte nacional não emitir documento fiscal eletrônico.
Se o contribuinte for residente ou domiciliado no exterior, a plataforma digital será responsável, na acepção lato sensu, por substituição do contribuinte, configurando-se como sujeito passivo de uma possível obrigação tributária. Nesse sentido, cabe destacar que a sujeição passiva já nasce atribuída a uma terceira pessoa vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação.[2]
Por outro lado, quando o contribuinte é domiciliado no país e não registra a operação em documento fiscal eletrônico, a plataforma digital será responsável solidária em relação à obrigação tributária do contribuinte, de modo que ambas as partes são consideradas sujeitos passivos. Essas condições demonstram que a sujeição passiva continua a estar atrelada ao contribuinte, cuja responsabilidade pode ser afetada por sua residência e pelo cumprimento das formalidades fiscais.
Além disso, as previsões contidas no PLP 68 suscitam preocupações em relação à capacidade das plataformas de reter o tributo ou de ressarcirem-se do montante devido. Conforme o artigo 124, parágrafo único, do CTN, a responsabilidade solidária não comporta benefício de ordem, o que significa que as plataformas podem ser obrigadas a recolher o tributo integralmente, independentemente da existência de medidas contra os contribuintes (fornecedores). Essa situação pode resultar em um ônus desproporcional às plataformas, especialmente na ausência de mecanismos claros para o ressarcimento.
Outro ponto relevante diz respeito à compatibilização dessa responsabilidade com o princípio da capacidade contributiva. A Constituição, até a Emenda Constitucional 132/2023, limitava a responsabilidade tributária à existência de uma “ligação estrita” com o fato gerador, o que incluía o direito de retenção do valor correspondente ao tributo.[3]
No caso das plataformas digitais, o PLP 68 admite a hipótese de responsabilidade solidária por mera intermediação, definindo, em seu § 1º do artigo 24, plataforma digital como aquela que “atua como intermediária entre fornecedores e adquirentes nas operações realizadas de forma não presencial ou por meio eletrônico” e que “controla um ou mais dos seguintes elementos essenciais à operação: a) cobrança; b) pagamento; c) definição dos termos e condições; ou d) entrega”.
Nesse sentido, ao se supor que uma empresa, ao negociar com seu cliente, obtenha o pagamento pelo bem comercializado por meio de um método diferente do disponibilizado na plataforma de marketplace, realizando apenas a entrega do bem, surge o questionamento sobre a responsabilidade solidária da plataforma. Nesse caso, a plataforma não estará no mesmo polo da empresa contribuinte e não poderá reter o valor da operação correspondente ao objeto da prestação tributária.
Diante das considerações expostas, fica evidente que a proposta de reforma tributária apresentada no PLP 68 traz à tona uma série de reflexões sobre a responsabilidade tributária das plataformas digitais. A ampliação da sujeição passiva pode ser vista como uma tentativa de adaptar a legislação às novas realidades do comércio eletrônico, mas é imprescindível que essa responsabilidade seja estabelecida de forma que respeite os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da segurança jurídica.
A falta de clareza sobre as condições de responsabilidade e a eventual imposição de um ônus desproporcional às plataformas digitais podem gerar insegurança jurídica. Portanto, é fundamental que a regulamentação a ser adotada considere esses aspectos, a fim de garantir um sistema tributário mais justo e equilibrado.
[1] SCHOUERI, Luís E. Direito tributário. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9788553620586. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553620586/. Acesso em: 13 set. 2024. p. 622.
[2] SCHOUERI, Luís E. Direito tributário. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9788553620586. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553620586/. Acesso em: 13 set. 2024. p. 635.
[3] BARRETO, Paulo Ayres. Limites Normativos à Responsabilidade Tributária das Operadoras de Marketplace. Revista Direito Tributário Atual, n. 45, São Paulo: IBDT, 2º semestre 2020, p. 625-650 (628-629).