Repristinação do adicional de Cofins-Importação deve se sujeitar à anterioridade

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No atual cenário brasileiro, todos os olhares parecem estar voltados à reforma tributária, especialmente neste momento de elaboração dos projetos de lei complementar que regulamentarão o texto constitucional já aprovado. Contudo, não se pode permitir que a preponderância das discussões em torno do sistema tributário em construção deixe de lado alguns contornos controversos da tributação atual.

A recente edição da MP 1208/2024, responsável pelo restabelecimento do adicional de 1% de Cofins-Importação no período de 1º/4/2024 a 31/12/2027, merece destaque, não somente pelos inquestionáveis impactos na carga tributária suportada por milhares de importadores, mas, sobretudo, em virtude do procedimento adotado para viabilizar o “retorno” da cobrança, que em tudo se identifica com uma majoração de alíquota.

Isso porque, quando confrontada à luz dos princípios que regem o sistema constitucional tributário, a utilização da medida provisória enquanto instrumento normativo para restabelecer o adicional de alíquota soa como uma tentativa de suprimir, ou ao menos de contornar, as balizas impostas pela regra da anterioridade, ao alvedrio da representatividade de lei aprovada pelo Congresso Nacional.

Como é sabido, a regra da anterioridade configura uma das mais relevantes prerrogativas constitucionais detidas pelos contribuintes, uma vez que lhes garante a possibilidade de planejamento fiscal, orçamentário e, em última análise, a adoção de práticas que maximizam a governança corporativa.

Por isso, ao instituir a regra da anterioridade, o constituinte vedou a cobrança de tributos no exercício financeiro em que haja sido publicada a norma que os aumentou, bem como estipula a necessidade de observância do prazo de 90 dias para que os contribuintes possam adaptar seus respectivos planejamentos à nova carga tributária. Tais prerrogativas se justificam, importante pontuar, em prestígio aos princípios da segurança jurídica, da não-surpresa e da proteção da confiança legítima – verdadeiras bases do estado democrático de direito.

A lógica da qual a referida regra se reveste não é apenas clara, como é lógica: o administrado, em legítima confiança nos atos governamentais, elabora um planejamento para que possa alocar da forma mais eficiente seus recursos financeiros. Nessa perspectiva, não é demais concluir que qualquer ato que altere a esfera jurídica na qual ele se insere demandará tempo para que os contribuintes adaptem suas estratégias – empresarial ou individual – às novas obrigações.

Ocorre que, em que pese os limites da regra da anterioridade se façam claros quando estamos tratando de ônus tributários, a nebulosidade da extensão de sua incidência sobre as medidas provisórias tem dado espaço para o surgimento de amplo debate, que deve ser levantado a partir do método recentemente utilizado para o restabelecimento do adicional de 1% da Cofins-Importação.

Em texto publicado neste JOTA, destacamos a astuta estratégia do governo federal de utilizar medidas provisórias – instrumentos hábeis à majoração de tributos – para mitigar os efeitos da regra da anterioridade. Em resumo, ciente de que os efeitos tributários da majoração decorrente de lei somente começarão 90 dias após a publicação da medida provisória, o governo inteligentemente se vale da ferramenta para “antecipar” o decurso do prazo da anterioridade, que teoricamente não seria aplicado quando da conversão da medida em lei pelo Congresso Nacional.

Na ocasião mais recente, observamos o seguinte cenário: a MP 1208/24 revogou em parte a MP 1202/23, a qual, por sua vez, havia revogado o adicional da Cofins-Importação antes previsto no § 21 do artigo 8º da Lei 10.865/04, na redação conferida pelo artigo 3º da Lei 14.784/23.

A problemática foi levada ao extremo com a MP 1208/24 e seus efeitos repristinatórios: o artigo 6º, II, “b”, da MP 1202/23 (que revogou o adicional), com efeitos a partir de 1º/4/24, foi revogada por outra MP, cujos efeitos também se iniciaram em 1º/4/24, e apenas “ressucitaram” uma norma vigente até menos de seis meses atrás – e, pasmem, não há qualquer garantia que a MP 1208/24 não será futuramente revogada ou até mesmo ratificada pelo Congresso Nacional.

Note-se que, embora a regra da anterioridade pareça ser formalmente respeitada, há inequívoca violação material aos corolários e à ideia de estabilidade que a fundamentam.

E não se venha argumentar que a anterioridade não deveria ser aplicada, vez que a revogação do adicional de Cofins-Importação sequer chegou a produzir efeitos práticos, já que a “revogação da revogação” ocorreu antes da data em que os contribuintes teriam que deixar de pagar a exação – isto é, o adicional apenas deixaria de ser devido em 1º/4/24 e, no dia 28/2/24, quando publicada a MP 1208/24, houve revogação da previsão de extinção do adicional.

É que, durante toda a vigência do artigo 6º, II, “b”, da MP 1202/23, os contribuintes tiveram a legítima expectativa de que o adicional da Cofins-Importação não seria devido a partir de 1º/4/24. Ou seja, durante os três primeiros meses do ano de 2024, quando, em regra, o planejamento financeiro para o restante do exercício é formulado, contribuintes importadores se planejaram para recolher a Cofins sob uma determinada alíquota, a qual não contava com o adicional de 1%.

Com isso, não poderia o governo federal, de forma súbita, contrariar tal expectativa e, com apenas um mês de antecedência, determinar que o adicional de Cofins-Importação voltasse a ser devido. Veja-se que, na prática, os importadores tiveram apenas um mês para programar o recolhimento do adicional – seja, entre a data da publicação da MP 1208/24 (28/2/24) e a sua entrada em vigor (1º/4/24).

Ora, se a regra da anterioridade existe com os objetivos de evitar que o contribuinte seja surpreendido e de conter a arbitrariedade da administração, não se mostra razoável que a instituição do mesmo ônus, por uma medida provisória – ato transitório e precário –, represente uma espécie de atalho ao processo legislativo e de catalisador para a majoração de tributos.

Não ignoramos, é claro, a legitimidade da medida provisória para criação e majoração de tributos, afinal, o texto constitucional é claro nesse ponto. O que se pretende discutir é a facilidade com que tais atos têm se mostrado suficientes para usurpar a regra da anterioridade e afastá-la por completo após sua conversão formal em lei pelo Poder Legislativo (que notadamente suprime a precariedade e a ausência de representatividade da MP).

Os impasses decorrentes da “zona de penumbra” em que se encontra a regra da anterioridade aplicada às medidas provisórias já foram, inclusive, alvo de debate recente pelo STF. No julgamento da ADI 7375, examinando cenário envolvendo a majoração de tributo pela via da MP, a Corte compreendeu que “a medida provisória a qual implicasse instituição ou majoração de impostos só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte ao de sua edição, caso seja devidamente convertida em lei até o último dia do ano fiscal em que foi editada”.

Nessa lógica, em atenção à regra da anterioridade, entendemos que o design normativo mais adequado seria aquele que determinasse a inauguração de um novo marco de contagem de anterioridade após a publicação da lei resultante da conversão da medida provisória, vez que a contagem do prazo apenas a partir da edição da MP não é capaz de garantir ao contribuinte a segurança jurídica e a possibilidade de planejamento pretendidas pelo texto constitucional.