Eu poderia começar este texto afirmando que farei uma análise meramente processual da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no último dia 6, em que se decidiu cancelar a repercussão geral que havia sido reconhecida em 2014 no Recurso Extraordinário 845779. Mas isso seria impossível. Se tudo é política, talvez possamos dizer que até mesmo numa decisão que nega seguimento a um Recurso Extraordinário há política – em especial quando fundado em questões tão sensíveis.
Mas sim, tentarei fazer uma análise processual – ao menos na maior parte do tempo – dessa decisão que acaba por surpreender, quase 10 anos depois, aqueles que contavam com uma decisão da Corte Constitucional para resolver questão tão relevante para a sociedade.
Essa análise abordará, em síntese, duas questões: a) a existência de repercussão geral da questão constitucional discutida no RE; e b) a inaplicabilidade da súmula 279/STF ao caso.
A repercussão geral do Recurso Extraordinário em questão foi reconhecida em 31.10.2014, momento em que o Plenário do STF afastou expressamente a súmula 279/STF, e considerou que “constitui questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade”. Reconheceu-se, assim, a “repercussão geral configurada, por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias – uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas –, bem como por não se tratar de caso isolado”.
Em linhas gerais, essa questão se resumia a, como bem explicou o relator, Ministro Barroso, na sessão, “saber se uma pessoa trans tem o direito de usar banheiro público que corresponda à sua identidade de gênero.”
A recorrente – uma mulher trans – foi retirada de dentro do banheiro de um shopping center em Florianópolis e orientada a utilizar o banheiro masculino. Para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), o acontecimento, “embora lamentável”, não daria ensejo a indenização, “porquanto o dano moral indenizável é aquele que corresponde a lesão a direito da personalidade que repercute sobremaneira no psiquismo do lesado”, e o que teria ocorrido seria um “mero incômodo ou aborrecimento.”
O julgamento teve início em 19.11.2015, quando o relator, ministro Barroso, proferiu seu voto pelo provimento do recurso, no que foi acompanhado pelo ministro Edson Fachin. O julgamento foi suspenso pelo pedido de vista formulado na mesma data pelo ministro Luiz Fux que, somente agora, trouxe um voto divergente, cancelando a repercussão geral reconhecida e negando seguimento ao recurso extraordinário, porque se trataria de questão fática.
A questão – que para a maioria da Corte seria meramente processual – está, portanto, naquilo que se compreende como papel da Corte Constitucional, que não seria o de analisar casos concretos, em especial quando se tratar de discussão sobre indenização por dano moral.
Sob esta perspectiva, além de esbarrar na súmula 279/STF, a questão não teria repercussão geral. A divergência foi fundamentada em alguns precedentes da Corte. No ARE 739.382, por exemplo, citado no voto divergente, entendeu-se que a discussão sobre o direito à indenização de um jornalista em razão do conteúdo de um folheto divulgado por um sindicato seria meramente fática. E realmente o era: a leitura do acórdão do caso revela que foi o conteúdo do folheto que embasou o pedido indenizatório, e não o exercício em si da garantia da liberdade de expressão.
Algo muito diferente aconteceu no RE 845779. No caso, o acórdão do TJSC que deu ensejo ao recurso é muito claro ao considerar, de forma inequívoca, que a recorrente, mulher trans, foi orientada pela vigilante do shopping a se retirar do banheiro feminino e utilizar o banheiro masculino. Para aquele tribunal, essa conduta não seria suficiente a caracterizar dano moral. Afinal, “embora lamentável”, se trataria de “mero aborrecimento”.
A questão que se colocou para julgamento no STF pela via do Recurso Extraordinário consistia simplesmente em se verificar se essa conduta – a de se proibir uma pessoa de utilizar o banheiro que corresponda à sua identidade de gênero – é inconstitucional.
Ao criar o requisito da repercussão geral, a EC 45 nada mais fez do que se preocupar com uma “técnica que propicia a abertura do sistema recursal para que a Suprema Corte contribua, efetivamente, para a melhor distribuição de justiça, abrindo espaço em sua pauta para a tutela dos direitos fundamentais e para o desenvolvimento do Estado de Direito Democrático brasileiro”. É por isso que “a mais importante finalidade da repercussão geral seria a de possibilitar uma apreciação detalhada das questões que têm maior relevância para o país, que podem irradiar efeitos para todos ou para determinados estamentos sociais.”[1]
“O importante”, afirmou o ministro Barroso na sessão, “é se o fato tem natureza constitucional, e não a invocação de um determinado dispositivo. E a discriminação contra uma pessoa transexual é evidentemente um fato constitucional. Aliás, é um fato inconstitucional.”
Ao assim se posicionar – no que foi acompanhado pelo ministro Edson Fachin e pela ministra Cármen Lúcia – o presidente do Supremo nada mais fez do que, como fez questão de destacar mais de uma vez na sessão, exaltar a função primordial do STF na defesa dos grupos mais vulnerabilizados.
Em suma, a grave violação ao direito fundamental de uma pessoa trans – representado, neste caso, pela autorização para uso de banheiro que corresponda à sua identidade de gênero – é questão relevante do ponto de vista social e jurídico, ultrapassando os interesses subjetivos da causa, como exige a Lei 11.418/2006, que regulamentou o instituto da repercussão geral no plano infraconstitucional.
E essa análise prescinde, absolutamente, do reexame de fatos, ao contrário do que acabou por considerar a maioria do plenário. O único raciocínio que o STF deveria realizar no caso seria o de verificar se a proibição do uso do banheiro feminino por uma mulher trans – mais do que isso, a retirada dessa mulher de dentro do banheiro feminino, fato incontroverso no acórdão do TJSC – caracterizaria uma conduta discriminatória. Foi esta a tese de repercussão geral afetada em 2014.
Para isso, bastaria “a revaloração da prova e o reenquadramento jurídico dos fatos”, admitida de forma pacífica pela jurisprudência do STF, e que não se confunde “com o revolvimento de suporte fático-probatório”,[2] sendo autorizada no âmbito do Recurso Extraordinário.[3]
Acerca da questão, o ministro Fachin, na sessão, fez a importante diferenciação entre “juízo de valor sobre uma conduta”, que pode “sim ser examinado pelo Supremo Tribunal Federal”, e um “juízo de realidade”, que esbarraria na incidência da súmula 279/STF. Assim, e como bem destacou o ministro, há no caso, e isso se extrai o Acórdão recorrido, “fatos suficientes a demonstrar que houve uma conduta, o autor se identifica como uma pessoa trans, e desafia esse juízo de valor como afrontoso à sua própria identidade pessoal”.
A partir disso, como destacou o relator, bastava à Corte fazer o “enquadramento jurídico do fato: retirar a pessoa do banheiro é dano moral ou mero incomodo?” Questão claramente de direito, com imensa repercussão geral.
Afinal, a simples proibição imposta à pessoa trans representaria uma violação aos seus direitos da personalidade e ao seu direito de existir em sua plenitude. Sobretudo após o precedente firmado pelo próprio STF na ADI 4275, julgada em 01.03.2018, que assegurou aos transgêneros o direito à substituição do prenome e sexo diretamente no registro civil, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização, ou de tratamentos hormonais ou patologizantes. Os fundamentos foram a dignidade da pessoa humana, o direito à identidade, à não discriminação e à felicidade. Todos eles absolutamente ignorados na decisão atual.
Mesmo sob a perspectiva do dano moral, o RE poderia ser conhecido. Para além de se tratar de questão com assento constitucional – como destacou o ministro Fachin –, o fundamento do dano moral é justamente o ato discriminatório, que é inequívoco no acórdão recorrido.
Quem atua ou já atuou nas Cortes Superiores sabe que, em muitos casos, STJ e STF tendem a relativizar requisitos processuais quando identificam que o caso merece ser conhecido para, com isso, proporcionar uma proteção adequada aos direitos, desde que possível o controle de legalidade (STJ) ou de constitucionalidade (STF). Como se viu, nem mesmo esse esforço seria necessário no caso. O RE teria plenas condições de ser conhecido no mérito, sem que para isso se fizessem grandes ilações.
Sob a escusa de se aplicar uma questão meramente processual, o processo civil acabou mais uma vez sendo utilizado indevidamente para a reiteração de violências e a perpetuação da ofensa a direitos fundamentais. Tratar o processo civil como direito adjetivo é, afinal, uma decisão política.
[1] COSTA, Susana Henriques da; NORONHA, Lara Lago. A litigância repetitiva como importante fator para o reconhecimento de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. In Processualistas (org.). Recursos no CPC/2015. Perspectivas, críticas e desafios. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 429.
[2] RE 820433 AgR; Tribunal Pleno; rel. min. Dias Toffoli; j. 17.03.2016; DJe 30.05.2016.
[3] No mesmo sentido: “A mera revaloração jurídica dos fatos, a partir do acervo colhido nas instâncias ordinárias, distingue-se do revolvimento do conjunto fático e probatório dos autos” (HC 192115 ED; 1ª turma; rel. min. Rosa Weber; j. 08.02.2021; DJe 17.02.2021). Ver, ainda: ARE 1347443 AgR; 2ª turma; rel. min. Gilmar Mendes; j. 29.05.2023; DJe 18.07.2023.