Em licitações para concessões de serviços públicos, especialmente na área de saneamento básico, há diferentes critérios de julgamento capazes de influenciar profundamente a qualidade e o custo final dos serviços prestados aos cidadãos. Dentre eles, destaca-se o critério “técnica e preço”, também chamado de “técnica e valor”, que busca avaliar tanto o componente econômico quanto a capacidade técnica e a qualidade das soluções propostas pelos licitantes.
Entretanto, a aplicação do critério “técnica e preço” não está isenta de críticas. Por um lado, a subjetividade envolvida na avaliação das propostas técnicas pode ocasionar questionamentos, abalar a transparência do certame e dar margem a potenciais direcionamentos. Por outro, a parcela econômica do critério tende a sofrer menor competição, pois, para vencer a licitação, o licitante pode apresentar uma proposta de preço mais cara e ainda assim vencer o leilão por ter uma proposta técnica mais bem avaliada.
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Considerando que desde a edição do Novo Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/20), concessões de saneamento só podem ser outorgadas por meio de licitação, é relevante entender quais os melhores desenhos de concorrência para selecionar um concessionário.
Esse foi o objetivo da pesquisa “Técnica e preço em licitações de concessão de saneamento: análise das decisões dos Tribunais de Contas estaduais”, conduzida pela FGV Justiça, que pesquisou as bases de jurisprudência de 26 tribunais estaduais de contas, no período de 2010-2023, identificando 23 processos em diferentes estados que tratam do critério de seleção de licitações de concessão de água e esgoto.[1]
Desse conjunto de decisões, 15 ocorreram em São Paulo, 4 em Minas Gerais, 2 no Rio de Janeiro, 1 em Santa Catarina e 1 no Espírito Santo. A pesquisa indicou que, até 2018, todas as decisões (7) permitiam o uso do critério. Já de 2019 a 2023, são 7 decisões negativas e 9 permissivas, sendo que três das permissivas têm caráter preliminar e, portanto, podem ser revertidas.
Ou seja, houve um salto de 0%, entre 2010 e 2018, para aproximadamente 44%, entre 2019 e 2023, das decisões que recusam o uso desse critério nas concessões de saneamento básico.
Fonte: Gráfico extraído diretamente do relatório de pesquisa, disponível em https://justica.fgv.br/estudo-e-pesquisa/tecnica-e-preco-em-licitacoes-de-concessao-de-saneamento-analise-das-decisoes-dos
Além da dimensão quantitativa, a pesquisa fez uma análise qualitativa dos resultados. Em relação às ratio decidendi, percebe-se que, até 2018, os tribunais adotam a tese de que o critério “técnica e preço” é expressamente prevista pela lei de PPPs e de Concessões e, portanto, sua escolha compõe o âmbito da discricionariedade do gestor público.
As decisões permissivas posteriores a partir de 2019 repetem este argumento, mas, em alguns casos, ele é complementado com uma justificativa referente ao objeto da licitação. Ou seja, que o emprego do juízo técnico é adequado, pois, além de ser previsto em lei, o objeto possui algum tipo de especificidade técnica que justifica a apresentação de propostas técnicas pelos licitantes.
Já as decisões negativas recusam o emprego do critério pelo fato de que não há, no respectivo projeto, elemento de execução técnica diferenciada no objeto da licitação.
Ou seja, dada a excepcionalidade prevista em lei para o critério “técnica e preço” e a ausência de características técnicas excepcionais no projeto analisado, essas decisões concluem que deve ser priorizado o critério exclusivamente econômico (“Menor Preço”), por ser o que melhor preserva o princípio da modicidade tarifária e evita o aspecto inerentemente subjetivo do julgamento das propostas técnicas apresentadas pelos licitantes.
Fonte: Gráfico extraído diretamente do relatório de pesquisa, disponível em https://justica.fgv.br/estudo-e-pesquisa/tecnica-e-preco-em-licitacoes-de-concessao-de-saneamento-analise-das-decisoes-dos
Percebe-se, portanto, que os Tribunais passaram a analisar o mérito da escolha do gestor público considerando o objeto da licitação em questão e, ao fazê-lo, parte considerável das decisões recusam o emprego do critério “técnica e preço”.
Esse novo posicionamento parece estar em linha com o que pretende a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), que estabeleceu parâmetros mais rígidos para o uso do critério técnica e preço, restringindo-o a hipóteses específicas que envolvam elevada complexidade tecnológica ou alternativas de execução. De acordo com o artigo 36 da Lei, o critério “técnica e preço” só pode ser aplicado quando há um estudo técnico preliminar que justifique sua necessidade.
Não bastaria, portanto, invocar a discricionariedade: o gestor público precisaria demonstrar a real pertinência do critério técnico, sempre motivando sua escolha. Esse posicionamento dos tribunais de contas parece ser influenciado, também, pela LINDB (Lei de Introdução ao Direito Brasileiro), após sua atualização.[2]
De um lado, abandona-se uma interpretação legalista e binária da legislação, i.e. pode-se adotar determinado critério, pois há previsão legal. De outro, amplia-se a exigência de que o gestor público motive suas escolhas, com base nos fatos concretos e estudos técnicos pertinentes.
No caso do setor de água, a principal motivação trazida para justificar o abandono do critério “técnica e preço” é a maturidade técnica do setor de saneamento, que se utiliza de tecnologia de amplo domínio e conta com vários operadores capazes de prestar serviços de maneira eficiente.
Com o aumento das licitações de saneamento, o desenho de editais de concessão e dos seus critérios de seleção tende a ganhar cada vez mais relevância e importância. A pesquisa realizada teve como objetivo contribuir para a melhoria dessas concorrências e oferecer uma moldura para auxiliar na construção de boas práticas de seleção de operadores de saneamento por parte dos municípios.
[1] FERREIRA, Lívia et al. Técnica e preço em licitações de concessão de saneamento: análise das decisões dos Tribunais de Contas estaduais. Coordenação: Luis Felipe Salomão, Elton Leme, Fernando S. Marcato. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2024. ISBN 978-65-83308-09-2. Disponível em: <https://agenciainfra.com/blog/wp-content/uploads/2025/02/v5_RELATORIO_TP.pdf>. Acesso em: 6 fev. 2025.
[2] BRASIL. Lei 13.655, de 25 de abril de 2018. Altera o Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB), para incluir disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13655.htm. Acesso em: [14/02/2025]