Repensando a licença-paternidade no Brasil

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Em dezembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela omissão do Congresso Nacional na regulamentação da licença-paternidade no Brasil, com prazo de 18 meses para sanar a omissão legislativa1. Essa decisão representou um marco na busca pela equidade de gênero no mercado de trabalho no país, e este artigo busca esclarecer como chegamos até aqui e quais são os próximos passos para finalmente termos uma licença-paternidade adequada às necessidades atuais da sociedade brasileira.

A introdução da licença-paternidade no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 19882 representou um avanço fundamental no reconhecimento da importância do papel do pai na chegada de um bebê. No entanto, ao longo dos últimos 35 anos, essa conquista constitucional nunca foi devidamente regulamentada, resultando em uma lacuna legal que, até hoje, proporciona apenas cinco dias de afastamento aos pais3.

Diante da necessidade premente de regulamentação da licença-paternidade e a sua extensão, foi criado um Grupo de Trabalho no âmbito da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados4 sobre o tema, que resultou no Projeto de Lei 6.216/20235, que prevê a ampliação do prazo inicial da licença-paternidade para 30 dias, e que gradualmente chegará a 60 dias, com direito à remuneração integral similar ao previsto na licença-maternidade. A aprovação de um projeto de lei que amplie a licença-paternidade no Brasil pelo Congresso Nacional é uma política pública essencial para a equidade de gênero no mercado de trabalho brasileiro.

Diversos estudos comprovam o impacto da maternidade no mercado de trabalho, e a licença-paternidade ampliada contribuirá para a diminuição da diferença salarial entre homens e mulheres e para a redução da possibilidade de que elas percam os seus trabalhos após terem filhos.

Claudia Goldin, vencedora do prêmio Nobel de Economia de 2023, demonstrou em seus estudos6 que a diferença salarial entre homens e mulheres normalmente ocorre com o nascimento do primeiro filho, um fenômeno que ela intitulou de “Penalidade da Maternidade”.

Parte da explicação é o fato de as mulheres, ao se tornarem mães, serem mais propensas do que os homens a se afastarem do mercado de trabalho, ou a reduzirem as suas horas de atuação profissional, devido às responsabilidades de prestação de cuidados. De acordo com relatório do Fórum Econômico Mundial7, as mulheres no Brasil têm rendimentos 27% inferiores aos dos homens.

Nesse sentido, estudo realizado pela FGV corrobora com a vencedora do prêmio Nobel ao revelar que, quase 50% das mulheres estão fora do mercado de trabalho formal após 24 meses do nascimento do bebê, um padrão que se perpetua inclusive até quase quatro anos após a licença-maternidade, sendo que a maior parte das saídas do mercado de trabalho se dá sem justa causa e por iniciativa do empregador, e não por decisão das mães8.

Além disso, a licença-paternidade ampliada terá o benefício social de diminuição da sobrecarga das mulheres. Existem estudos que mostram um aumento na participação do homem nas atividades domésticas após usufruir do benefício da licença-paternidade, especialmente se ele tirar um tempo de licença não concomitante ao da licença-maternidade9. A divisão do cuidado entre homens e mulheres proporcionará mais tempo às mães, que poderão se dedicar a posições de liderança nas empresas, que geralmente demandam mais horas de dedicação ao trabalho.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)10, os cargos gerenciais eram ocupados 62,6% por homens e apenas 37,4% por mulheres em 2019. Ainda, conforme demonstrado por uma pesquisa global com a participação de mais de vinte mil empresas em 91 países11, ficou comprovado que a licença parental (que também é usufruída pelos pais) é mais efetiva para aumentar a participação das mulheres em cargos de chefia do que a criação de cotas para mulheres.

Considerando a urgência do tema, a Coalizão Licença Paternidade (CoPai)12 foi criada para colaborar com a regulamentação para a ampliação da licença-paternidade, destacando os benefícios sociais e econômicos dessa mudança. A Copai atua junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e contribui para o debate público trazendo dados científicos e experiências de licenças e parentalidade no Brasil e no mundo.

A CoPai é um exemplo de como a sociedade civil pode se organizar e promover mudanças positivas nesse cenário. A participação ativa da sociedade brasileira será essencial para a aprovação de um projeto de lei de licença-paternidade estendida pelo Congresso Nacional que contribua para a equidade de gênero no mercado de trabalho, dentro do prazo estipulado pelo Supremo Tribunal Federal.

[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=522497&ori=1. Acesso em 10/01/2024

[2] A licença-paternidade no Brasil está prevista no §1o do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 10/01/2024

[3] Além da licença-paternidade de 5 dias prevista na Constituição Federal, o Governo Federal instituiu o Programa Empresa Cidadã em 2008, com o objetivo de estender o período das licenças maternidade e paternidade por meio da adesão voluntária de empresas optantes pela tributação no regime de lucro real (Lei 11.770/08, regulamentada pelo Decreto 10.854/21). Neste caso, a licença-paternidade é prorrogada para 20 dias, mas são raras as empresas participantes do programa (aproximadamente 1% do total de empresas brasileiras). https://primeirainfancia.org.br/noticias/rnpi-debate-praticas-de-responsabilidade-social-empresarial-voltadas-a-primeira-infancia Acesso em 10/01/2024

[4] O Grupo de Trabalho pela regulamentação da licença-paternidade no Brasil é uma iniciativa da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados que visa reduzir desigualdades de gênero e promover o envolvimento dos pais nos cuidados com os filhos. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/noticias/grupo-de-trabalho-pela-regulame ntacao-licenca-paternidade-no-brasil-publica-relatorio-preliminar. Acesso em 09/01/2024.

[5] O Projeto de Lei 6216/2023 está disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2416586. Acesso em 10/01/2024

[6] Diversos estudos de Claudia Goldin sobre a “Penalidade da Maternidade” estão disponíveis em https://scholar.harvard.edu/goldin/publications. Acesso em 10/01/2024

[7] World Economic Forum. Global Gender Gap Report 2023. June 2023. Disponível em: https://www.weforum.org/publications/global-gender-gap-report-2023/ Acesso em 10/01/2024

[8] https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos. Acesso em 10/01/2023

[9] Buenning, Mareike. (2015). What Happens after the ‘Daddy Months’? Fathers’ Involvement in Paid Work, Childcare, and Housework after Taking Parental Leave in Germany. European Sociological Review. Disponível em https://academic.oup.com/esr/article-abstract/31/6/738/2404349. Acesso em 10/01/2024

[10] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019.

[11] Disponível em: “Is Gender Diversity Profitable? Evidence from a Global Survey”. NOLAND, Marcus; MORAN, Tyler; KOTSCHWAR, Barbara. https://www.piie.com/publications/working-papers/gender-diversity-profitable-evidence-global-survey. Acesso em: 09/01/2024.

[12] Para saber mais sobre a Copai: https://www.coalizaolicencapaternidade.com.br/about.