Reparações por dano climático

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Nos últimos meses, o planeta tem experienciado as maiores temperaturas médias globais dos últimos 120 mil anos, a ponto de o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, afirmar que o aquecimento global deu lugar à era da “ebulição global”. Em um contexto de emergência climática, marcado pela intensificação de eventos extremos como ondas de calor, fortes precipitações, inundações, secas e queimadas, fica mais evidente a necessidade de responsabilizar juridicamente agentes que emitem gases de efeito estufa (GEE) em desacordo com as normas jurídicas, compelindo-os a indenizar a coletividade pelos danos climáticos correspondentes. 

Em 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução 433, publicada às vésperas da COP26, realizada em Glasgow. A norma determina que, em casos de condenação por dano ambiental, os juízes devem considerar se a conduta analisada impacta negativamente o clima. À luz de tal norma e também de interpretações sobre princípios jurídicos como o do poluidor-pagador, instituições e organizações como o Ministério Público Federal (MPF), o Ibama, a Abrampa e o Observatório do Clima, têm defendido judicialmente a possibilidade – e necessidade – de quantificação dos danos climáticos no cálculo da condenação pelo dano ambiental.  

No entanto, quantificação e valoração – ou precificação judicial – do dano climático apresenta importantes complexidades técnicas e jurídicas. 

A fim de angariar insumos para regulamentar a referida resolução, o CNJ tem promovido consultas e diálogos junto a técnicos(as), juristas, acadêmicos(as), representantes da sociedade civil e especialistas para debater como quantificar e assegurar a adequada reparação dos danos climáticos causados pela atividade humana no âmbito de ações judiciais com pedido de reparação por infrações e ilícitos ambientais. Espera-se que o CNJ venha a editar orientações para auxiliar órgãos julgadores em ações dessa natureza. 

A partir das discussões realizadas até o presente, pode-se ver que o tratamento que vem sendo dado ao tema ainda carece de segurança jurídica e de uniformidade, conforme estudo publicado pelo Grupo de Pesquisa Direito, Ambiente e Justiça no Antropoceno (JUMA), vinculado à PUC-Rio. A análise do referido grupo de pesquisa, apresentada durante audiência pública realizada pelo CNJ em julho, mostrou que as metodologias que subsidiam o cálculo do dano climático nas ações judiciais são diversas e que isso tem resultado em valores razoavelmente discrepantes das indenizações propostas nas ações. As metodologias variam, essencialmente, quanto à forma como quantificam as emissões associadas a uma determinada conduta ou atividade e ao método de valoração de tais emissões. 

Diante da diversidade de metodologias utilizadas nas ações judiciais propostas até o momento, fica evidente a necessidade de elaboração de critérios técnicos e científicos para pautar uma atuação mais segura dos magistrados ao tratar dessa questão extremamente complexa. 

Ainda que se defenda, evidentemente, a necessidade de promover, prioritariamente, a reparação do dano ambiental climático in natura, debater a sua valoração nos casos em que tal reparação revela-se incerta é fundamental. E uma das questões centrais – e mais complexas – que se coloca é, justamente, como fazer essa conversão do dano em pecúnia (precificação judicial).  

Uma primeira alternativa, e que tem sido suscitada nos debates promovidos pelo CNJ, é o uso do valor da tonelada carbono nos mercados de carbono como referência (ou proxy) para a valoração do dano climático. No entanto, vincular o cálculo de uma indenização por dano climático ao valor de mercado da tonelada de carbono pode ser desafiador, diante de uma série de fatores.  

Um deles é a lógica de formação de preços nos mercados de carbono. Em tais mercados, o valor da tonelada corresponde a um preço de transação, vinculado à interação entre oferta e demanda. Nos mercados regulados, estruturados, por exemplo, em sistemas de comércio de emissões, os créditos de carbono são gerados a partir de regulação estatal que fixa limites e direitos de emissão para setores ou fontes específicas. O volume material de toneladas de carbono disponível no mercado depende, então, das reduções verificadas e transacionáveis, que são convertidas em ativos capazes de ser adquiridos por partes que possuem emissões em excesso e devem se ajustar aos limites legais. Nesses mercados, existem mecanismos de estabilização de preços, mas ainda assim há variações significativas no custo de cada tonelada.  

Desafio adicional e contextual para associar o valor do dano climático ao valor da tonelada de carbono em mercado regulado é o fato de que ainda não há lei que estabeleça um sistema de comércio de emissões no Brasil, em que pese a tramitação de projetos sobre o assunto no Congresso Nacional. Dessa forma, até esse mercado ser estruturado no Brasil, o que pode levar anos, o cálculo do valor de emissão de cada tonelada de carbono passaria necessariamente pelo uso de valores de referência praticados em mercados regulados estrangeiros. Alternativamente, como tem sido o caso de algumas ações em curso, o valor da tonelada de CO2 pode se basear nos preços arbitrados em programas de pagamento por desempenho de redução de desmatamento, no âmbito dos programas de REDD+, como é o caso do Fundo Amazônia. 

Já nos mercados voluntários, o valor da tonelada de carbono depende, dentre outros fatores, da demanda por tais créditos, sobretudo por parte de empresas que desejem cumprir com suas metas voluntárias ou obrigatórias de redução de emissões. Pesa em desfavor do uso do valor da tonelada de carbono do mercado voluntário nas ações judiciais, dentre outros fatores, as controvérsias acerca da solidez das metodologias para certificar que os projetos tragam adicionalidade (ou seja, uma redução que não ocorreria se o projeto não existisse). O tema é complexo e não caberia tratá-lo nesta ocasião, mas basta afirmar que a maneira como um projeto do mercado voluntário é estruturado e a sua contribuição para reduções efetivas são fatores que influenciam no preço final do crédito gerado a partir de tal projeto. 

Em resumo, os preços de carbono estabelecidos em mercados de carbono regulados e voluntários são transacionais e, portanto, extremamente voláteis. Nesse sentido, além de não abarcarem a integralidade do valor econômico de bens e serviços ambientais – como a regulação climática provida por florestas tropicais – tais preços operam sob lógicas próprias, não necessariamente suficientes para abarcar a integralidade da reparação pelo dano ambiental e climático. 

Uma alternativa apresentada por especialistas que contribuíram com a audiência pública do CNJ seria uma valoração do dano climático baseada no chamado ‘preço sombra’ (shadow price). O preço sombra reflete, em linhas gerais, o custo econômico total de produtos ou serviços, isto é, o “preço real”, incluídos os fatores intangíveis, como os impactos ambientais. É utilizado em análises de custo-benefício e investimentos para avaliar o impacto global de projetos, levando em conta aspectos ambientais e sociais.  

Existem duas principais abordagens para calcular o preço sombra das atividades que impactam a mudança do clima: (i) o custo social do carbono (SCC – social cost of carbon) e (ii) a análise dirigida a objetivos (goals-driven analysis). O custo social do carbono procura quantificar o prejuízo adicional – dano marginal – provocado por cada tonelada extra de carbono emitida na atmosfera. Essa abordagem baseia-se no princípio do “poluidor-pagador” e busca fazer com que o responsável pela atividade poluidora internalize as externalidades negativas, compreendidas aqui como o custo imposto à sociedade pela emissão de gases de efeito estufa. A análise dirigida a objetivos, por sua vez, busca estabelecer um preço de carbono que seja coerente com as metas de redução de emissões acordadas internacionalmente por um país, como aquelas submetidas aos acordos climáticos globais (target-consistent pricing).  

Ainda que de difícil operacionalização e escalabilidade no curto prazo por parte dos operadores do Direito, em razão da sua complexidade, a análise dirigida a objetivos merece ser explorada mais a fundo. Em tese, ela aproxima os objetivos e metas estipulados por um país – e pela comunidade internacional – sobre a transição a uma economia neutra em carbono com o comando jurídico de que todo dano ambiental deve ser integralmente reparado. Nesse sentido, tal abordagem tem o condão de sinalizar aos agentes econômicos que a conduta ilícita e contrária aos objetivos de normas climáticas, como o Acordo de Paris e a NDC brasileira, resultarão na obrigação jurídica de compensar economicamente a emissão de GEE realizada em desconformidade com o ordenamento jurídico. 

Vale ressaltar que a quantificação e valoração do dano climático deve ser sensível às diferenças setoriais, porque as emissões associadas a determinadas atividades podem vir acompanhadas da perda de serviços ecossistêmicos. Nos casos envolvendo o desmatamento ilegal, por exemplo, a valoração do dano ambiental climático deve incluir outros elementos, como a indenização pelos danos interinos (que correspondem à perda de funções ecológicas no tempo, até que se efetive a reparação) e pelos danos residuais (aqueles irreversíveis e irreparáveis). O dano climático possui também uma dimensão social e moral, uma vez que causa danos difusos a povos e comunidades, especialmente aquelas mais vulnerabilizadas.  

A quantificação e valoração do dano climático, como visto, é matéria complexa e que é objeto atual de reflexões doutrinárias, científicas e dogmáticas. O sistema de justiça tem se mobilizado para aplicar o conceito de dano climático e destrinchar seu significado, e deve continuar nesse caminho de promover debates qualificados, a fim de que possamos avançar no atingimento das nossas metas climáticas e rumo à transição para uma economia de baixo carbono.