Relatórios finais de CPIs: autoexecutoriedade, efeitos e alcance

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O noticiário da semana passada foi dominado por matérias sobre a aprovação do relatório final da CPI dos Atos de 8 de Janeiro, no último dia 18 de outubro. Essa é uma boa oportunidade para recordar as características do relatório final das CPIs, que é o documento que conclui e encerra os seus trabalhos. A esse tema se dedica a coluna de hoje.

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O art. 58, § 3º, da CF, já indica que o relatório final da CPI não possui autoexecutoriedade ao assentar que “(…) sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”. Ou seja, a CPI apenas investiga, não julga (não tem poder jurisdicional), de forma que não é possível que o relatório final assuma a forma de uma sentença judicial ou denúncia do Ministério Público.

Precisamente porque o relatório final não é peça acusatória, só pode sugerir indiciamento, pois só o delegado de polícia pode indiciar. Nos termos da Lei nº 12.830/2013, art. 2º, § 6º, “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”. Como declaração formal que aponta determinada pessoa como autora de um delito, o indiciamento só pode ser realizado por autoridades do aparato policial de investigação e judiciárias.

Esse detalhe é importante porque eventual sugestão de indiciamento de quem quer que seja no âmbito de uma CPI não tem o condão de gerar um dos principais efeitos do indiciamento: a inclusão do registro na folha de antecedentes do indiciado. Disso, extrai-se que as conclusões da CPI podem acabar assumindo uma conotação mais política do que propriamente jurídica.

Mas isso não quer dizer que os relatórios finais das CPIs possam “falsear a realidade dos fatos” (como já explicado em coluna passada sobre o sentido objetivo da imparcialidade que se exige parlamentares na condução dos trabalhos das CPIs) ou estejam fadados à inutilidade.

A função de investigação das CPIs se presta a, não somente exercer o controle sobre a Administração Pública, os serviços públicos, e apurar as responsabilidades sobre os fatos que tenham relação direta ou indireta com o objeto da investigação, mas também a fornecer as informações e os subsídios para o desempenho da função legislativa de elaborar e aprimorar atos normativos. Essa função das CPIs com frequência é esquecida pelos comentários mais gerais.

Inclusive, vale historiar que o próprio surgimento do poder de investigar das Casas Legislativas (que, como quase tudo que envolve o direito parlamentar, tem raiz nas práticas da Câmara dos Comuns na Inglaterra) veio nesse contexto: como corolário da função legislativa, como passo necessário com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de regência do assunto objeto da investigação.

Precisamente por isso, os regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal preveem que o relatório final das CPIs podem oferecer, conforme o caso, projeto de lei, de decreto legislativo, de resolução ou outro ato normativo (RICD, art. 37, inciso I; e do RISF, art. 150, § 1º). Assim, é salutar que os relatórios finais das CPIs abram um capítulo para tratar desse ponto: propostas de atos normativos com vistas ao aperfeiçoamento das leis.

A propósito, vale registrar que importantes modificações na legislação tiveram origem em recomendações lavradas por CPIs no passado. A aprovação da Lei nº 13.104/2015, que inseriu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, é fruto de uma das recomendações do relatório final da CPMI da Violência contra a Mulher (à página 1.002).

Esse tipo de impacto de CPIs não é um caso isolado. No mesmo sentido, recorde-se, por exemplo, da extinção da figura do juiz classista na Justiça do Trabalho, com a aprovação da EC nº 24/1999.

Tal sugestão veio no relatório final da CPI do Poder Judiciário, destinada a apurar irregularidades praticadas por integrantes de Tribunais Superiores, de TRFs, e de TJs, entre as quais denúncia sobre o desvio de R$ 169 milhões das obras de construção do TRT-SP. Entre os documentos levantados pela CPI, estava a gravação de conversa entre duas juízas de representação classista do TRT do Rio de Janeiro admitindo a comercialização de votos e decisões.

Outros desdobramentos dessa CPI foram a posterior condenação criminal do juiz Nicolau dos Santos Neto e a cassação do mandato do então senador Luiz Estevão.

Como se vê, parte do êxito das CPIs vem do que será feito a partir do relatório final, e não só pelo que está consignado no seu texto.

De acordo com a Lei nº 10.001/2000, os presidentes da Câmara, do Senado ou do Congresso Nacional encaminharão o relatório da CPI respectiva, e a resolução que o aprovar, aos chefes do Ministério Público da União ou dos Estados, ou ainda às autoridades administrativas ou judiciais com poder de decisão, conforme o caso, para a prática de atos de sua competência (art. 1º).

Tal previsão, combinada com o art. 5º da Lei nº 1.579/1952, poderia gerar a compreensão no sentido de que os plenários das Casas Legislativas teriam que votar o relatório final da CPI.

No entanto, o art. 6º-A da mesma lei, incluído pela Lei nº 13.367/2016, determina que é a própria CPI quem deve encaminhar o relatório circunstanciado, com suas conclusões, para as devidas providências, entre outros órgãos, ao MP ou à AGU, com cópia da documentação, para que promovam a responsabilidade civil ou criminal por infrações apuradas e adotem outras medidas decorrentes de suas funções institucionais.

De fato, como instrumento contra-majoritário que é, não faria qualquer sentido submeter o relatório final à votação dos plenários, sob pena de contrariar a ratio do que restou decidido no MS nº 26.441 (já comentado aqui) impetrado por ocasião da CPI do Apagão Aéreo, em que se reconheceu que as CPIs são “direito público subjetivo das minorias parlamentares”.

O próprio STF também já reconheceu no MS nº 34.864-AgR que nenhum outro órgão da Casa Legislativa tem poderes para desconstituir deliberações emanadas das CPIs. O caso concreto envolvia, precisamente, a remessa, pela CPI da Funai e Incra 2, de cópia de seu relatório final (devidamente aprovado pelo colegiado) ao MP, AGU e à Polícia Federal. Restou afastada a possibilidade de o presidente da Casa Legislativa negar eficácia ou anular atos das CPIs (acrescenta-se aqui, sempre e quando respaldados na juridicidade).

Pois bem. O processo ou procedimento, administrativo ou judicial, instaurado em decorrência de conclusões de CPIs tem prioridade sobre qualquer outro, exceto sobre aquele relativo a pedido de habeas corpus, habeas data e mandado de segurança. Tal previsão do art. 3º da Lei nº 10.001/2000 foi declarada constitucional no âmbito da ADI nº 5.351, muito embora a cominação de sanções administrativas, civis e penais às autoridades que a descumpram (art. 4º) tenha sido declarada inconstitucional por vício de iniciativa na mesma ação direta.

Para que o relatório final tenha tais andamentos, é essencial que ocorra a sua aprovação pelo colegiado da CPI (tal votação deve ocorrer antes do fim do seu prazo de funcionamento), com a assinatura dos membros e publicação no diário da Casa Legislativa.

Ocorre que nem todas as CPIs chegam a concluir seus trabalhos com a aprovação de um relatório final. Às vezes, disputas em torno dos termos do relatório acabam travando os trabalhos e os próprios parlamentares podem usar táticas (como o pedido de vista) para impedir a votação do texto. Isso acaba de acontecer recentemente com a CPI do MST, por exemplo.

Também pode ocorrer de um relatório paralelo ser aprovado no lugar do relatório elaborado pelo relator da CPI. Ou seja, por conta de uma articulação dentro do próprio colegiado, o relatório do relator é rejeitado e um documento alternativo, que pode ser apresentado por qualquer membro da comissão, é aprovado para ser o relatório da CPI. Foi o que houve na CPMI do Cachoeira.

Nem sempre tais relatórios paralelos chegam a ser votados e/ou obtêm a aprovação do colegiado. Fica só a guerra de narrativas entre diferentes versões de relatórios. Por exemplo, no último dia 9 de outubro, a CPI das Pirâmides aprovou seu relatório final por unanimidade, mas isso não impediu o surgimento de um relatório paralelo (sugerindo o indiciamento dos acionistas majoritários das Americanas S.A.: Beto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles) que circulou, mas não chegou a ser votado (e o relatório final foi aprovado com 45 nomes, incluindo o do ex-jogador Ronaldinho Gaúcho, mas sem aqueles que figuraram no relatório paralelo).

E aqui se abre um parêntese: o relatório final da CPI das Pirâmides Financeiras é um bom exemplo do que se afirmava há pouco quanto às sugestões de aperfeiçoamento de atos normativos, pois tece diversas recomendações (a partir da página 449) dirigidas à esfera administrativa (Receita Federal, Banco Central, CVM, Senacon, ANPD, CADE, COAF), bem como minutas de projetos de leis para aprimorar a legislação sobre a atuação dos prestadores de serviços de ativos virtuais.

Voltando aos relatórios paralelos, tratam-se de peças que servem sobretudo para marcar posição política. Foi o que aconteceu com a CMPI da Pandemia, que contou com 6 relatórios paralelos. Mesmo quando não obtêm aprovação, esses documentos ficam registrados nos arquivos da CPI.

Além de relatórios paralelos, os parlamentares do colegiado também podem encaminhar individualmente “complementações” ao relatório final. A diferença em relação aos paralelos está em que os relatórios complementares não se contrapõem ao relatório oficial, limitando-se a fazer recomendações adicionais, que, por não constar do relatório final aprovado, não têm a mesma força dele. Tais complementações sequer chegam a ser votadas e, mais uma vez, o propósito de fazer uma sinalização mais de cunho político.

O relatório final, assim como todas as demais decisões de uma CPI, segue a lógica da colegialidade, o que pressupõe sua articulação entre os membros que compõem a CPI, necessariamente a partir do princípio da proporcionalidade. Assim, aquilo que não obtém acordo para constar do relatório final (aprovado pela maioria dos membros da CPI) é o que costuma ser objeto dos relatórios paralelos e complementares. A presença desses documentos não é um sinônimo de fracasso da CPI, sendo um costume parlamentar que reflete a posição de minorias vencidas inclusive dentro do colegiado.

Como se comentou no início, foi o próprio constituinte quem conferiu os contornos jurídicos e respectivos efeitos dos relatórios finais das CPIs. E, por tudo o que se expôs acima, só o tempo poderá dizer se a CPI dos Atos de 8 de Janeiro terá impacto (e resultados jurídicos concretos) ou não.