No dia 18 de outubro de 2023, o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos atos de 8 de janeiro de 2023 foi aprovado com 20 votos favoráveis, 11 contra e uma abstenção. O relatório conta com 1.775 páginas e apresenta um compilado de documentos sobre o que ocorreu na investida golpista, além de realizar um balanço sobre quais fatos e medidas da gestão presidencial anterior de Jair Bolsonaro teriam levado ao atos daquele dia.
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A comissão fora criada com o objetivo de “investigar os atos de ação e omissão ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023 nas sedes dos Três Poderes da República”. Seu funcionamento se deu de 18 de maio de 2023 até 18 de outubro de 2023, data do término da leitura do relatório final. A criação da comissão foi requerida pela oposição do atual governo e aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro. O intuito era de controlar a narrativa no espaço parlamentar a fim de levar ao desgaste da gestão do presidente Lula. Havia uma tentativa de transferência de responsabilidade sobre os atos antidemocráticos. O presidente Lula e seus aliados tentaram desarticular a criação da CPMI, afirmando que o Estado brasileiro já apresentava recursos investigatórios suficientes para compreensão do que de fato teria ocorrido. Apesar da articulação não ter sido exitosa, a condução da CPMI não atingiu os objetivos da ala conservadora. Isso porque o relatório final apontou a responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores. O documento pede o indiciamento não só de Bolsonaro, mas de uma gama de agentes políticos, parlamentares, membros das Forças Armadas e servidores da segurança pública por diversos tipos penais, que vão desde incitação ao crime até aos ilícitos contra o Estado Democrático de Direito, como a tentativa de golpe de estado.
Didaticamente o relatório da CPMI pode ser dividido em quatro frentes: i) medidas da gestão de Bolsonaro que fomentaram o 8 de janeiro; ii) ensaios para o golpe de Estado; iii) o próprio ato do 8 de janeiro de 2023; iv) indiciamentos e recomendações.
A primeira seção do relatório realiza um resgate da literatura sobre as crises democráticas no contexto global e de que forma o Brasil se insere em tal dinâmica por meio do movimento que ficou conhecido como bolsonarismo. Essa parte do relatório apresenta os mecanismos de corrosão das instituições empregados pela gestão do ex-presidente. Tais elementos são relevantes para compreensão do 8 de janeiro por representarem uma espécie de preparação. No entanto, essa primeira parte do relatório acaba sendo dominada por certa ausência de objetividade. O documento se perde em definições da literatura que, ainda que importantes, acabam por mesclar conceitos e autores, o que evita conclusões claras para um relatório institucional.
Assim, a apresentação do perfil dos manifestantes os coloca em uma posição pouco ativa em relação ao projeto de poder representado pelo bolsonarismo. Isto acaba por representar uma contradição lógica na própria composição e construção do relatório. Esse raciocínio também é aplicável à forma como se deu a cooptação das forças de segurança pública (capítulo 4.3). Em ambos os casos, o relatório diz estar presente o fenômeno da “banalidade do mal” de Hannah Arendt, o que acaba por eximir uma parcela de responsabilidade (p. 76-78; 139; 330), sendo que o próprio relatório afasta a aplicação de efeitos de “multidão psicológica” ao reiterar que cada ator antidemocrático queria deixar sua selfie (p. 79-81).
Apesar das críticas aqui expostas, o relatório é exitoso ao demonstrar como a gestão Bolsonaro conseguiu instrumentalizar determinados setores do Estado brasileiro por meio da atuação de milícias digitais, da cooptação das forças de segurança pública, da militarização do Estado, do uso de narrativas conspiratórias, do desvirtuamento e informatização distorciva dos órgãos de inteligência do Brasil e da flexibilização das medidas de controle de armas.
A segunda parte do relatório revela um verdadeiro ensaio de golpe de estado. O relatório demonstra que Bolsonaro passou a atacar o sistema eleitoral de forma sistemática e até chegou a mencionar a ideia de um golpe preventivo. Segundo o relatório, esse ensaio fazia parte de uma estratégia para um golpe de estado híbrido por meio da “dismorfia institucional” (p. 68-73), principalmente por intermédio da violência política, do assédio eleitoral e da própria operação da Polícia Rodoviária Federal, já cooptada por Bolsonaro, no segundo turno, assim como das diversas tentativas de anulação das eleições que se seguiram – incluindo aqui a redação da minuta de golpe encontrada na residência do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres (p. 452-497).
Somente no que aqui chamamos de terceira parte (capítulos 5.6, 5.7 e 5.8) é que efetivamente há uma apresentação do 8 de janeiro. O relatório aponta para a radicalização do movimento e comprova que diversos alertas foram promovidos pela Agência Brasileira de Inteligência. Indica também a clara leniência das forças de segurança pública, como, por exemplo, a não adequação ao Protocolo de Ações Integradas, a ausência de resposta aos alertas e a não execução adequada do Plano Escudo, entre outros fatos que reiteram a omissão premeditada dos agentes (p. 712-775).
A quarta parte apresenta os indiciamentos de sessenta e uma pessoas, entre eles parlamentares e agentes de segurança, por diversos crimes, em grande parte aqueles descritos no art. 359-M do Código Penal. Outros elementos encontrados pela CPMI são apontados pelo relatório, mas podem ter discutida sua relação com o objeto de análise do 8 de janeiro, ainda que guardem relação com a gestão de Bolsonaro. Além disso, são apresentadas recomendações como forma de aperfeiçoamento institucional e legislativo sobre a proteção das instituições democráticas no Brasil. É notável que as provas apresentadas no relatório indicaram elementos contundentes sobre o atentado de 8 de janeiro na sua definição como tentativa de golpe.
Sobre esse ponto, é importante trazer o conceito de golpe de estado apresentado por Newton Bignotto. Para ele, apesar das diversas camadas do conceito ao longo da modernidade, três elementos conceituais são conservados no estudo sobre a tomada de poder: os atos preparatórios, a execução e a conservação do poder. Dentro dessa lógica, o golpe de Estado pode ser um movimento de conquista, mas também um movimento de conservação. O que é essencial para o Bignotto é a análise conjuntural dos atentados de tomada de poder em que há a presença dos três elementos conceituais. Com o relatório da CPMI, fica claro que os atores envolvidos articulam atos conspiratórios a partir do momento em que os executaram, mas não conseguiram concluir o projeto de tomada de poder. Esse é o momento mais perigoso para os golpistas, por representar a fase que as instituições ainda podem responder e desarticular o golpe. Na perspectiva apresentada, isso aconteceu no Brasil. O interessante é que a obra de Bignotto, publicada em 2021, reitera que Bolsonaro e seus apoiadores poderiam usar da força para atentar contra as liberdades democráticas e promover eventual ruptura institucional.
Destacamos que o relatório da CPMI está em consonância com os julgamentos das ações penais pelo Supremo Tribunal Federal sobre o mesmo 8 de janeiro. Como se pode observar, o relator, ministro Alexandre de Moraes, responsável pelos inquéritos sobre os atos, além de diversos outros objetos, têm condenado os agentes antidemocráticos pelas normas penais sugeridas e levantadas no relatório final (em especial no capítulo 6.2). Em geral, o relator tem sido acompanhado pelos outros ministros, apesar das divergências levantadas pelos ministros Nunes Marques e André Mendonça.
Em seus votos, Moraes cita documentos que foram utilizados na construção do relatório final do inquérito parlamentar. Recentemente, o ministro anexou o relatório final aos inquéritos em curso. Tais fatos demonstram uma certa convergência entre o STF e o Congresso Nacional na interpretação do 8 de janeiro. Isso não é pouco: revela uma institucionalidade mais organizada e capaz de refletir a resiliência da Constituição de 1988 a uma violenta tentativa de golpe de Estado.
Se a resposta das instituições diante da tentativa do golpe é animadora, a politização acrítica do STF deve ser observada com cautela. O acúmulo de poder e competências que vêm se construindo no entorno das funções exercidas pelo ministro Alexandre de Moraes não pode deixar de ser verificada. O 8 de janeiro e seus desdobramentos continuam demandando observação crítica, porém é seguro afirmar que o relatório apresenta uma solidez retratando atos preparatórios e tentativa frustrada de golpe.