Com o restabelecimento do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), passam a surgir interpretações restritivas que buscam reduzir os benefícios concedidos aos contribuintes. Nesse sentido, em artigo publicado no Valor Econômico, procurador da Fazenda Nacional argumenta que a exclusão de multas e o cancelamento da representação fiscal para fins penais, na forma do art. 25, § 9º-A, do Decreto 70.235/1972, só teria aplicabilidade quando a decisão tomada por voto de qualidade pró-Fazenda tratasse do mérito da exigência tributária, e não quando dissesse respeito a matérias preliminares.
Por sua vez, como noticiado pelo JOTA, em sessão de julgamento ocorrida no mesmo dia, a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) concluiu, por maioria, que o voto de qualidade proferido quando do julgamento em Turma Ordinária não autoriza a aplicação do referido dispositivo na eventualidade de o contribuinte recorrer e ter seu recurso desprovido por unanimidade ou maioria. Essas interpretações estão dissociadas do texto da Lei, e merecem reparo.
Em sua tese, o PFN sustenta que decisões relativas a matérias “puramente” processuais, como a conversão do julgamento em diligência ou o conhecimento de recurso, e relativas a preliminares, não atrairiam a regra exonerativa mencionada, pois não diriam respeito ao crédito tributário em si, sobre o qual incide a multa.
Desse modo, sendo o recurso especial do contribuinte não conhecido pelo voto de qualidade ante ausência de similitude fática entre acórdão recorrido e paradigma ou sendo rejeitada ou determinada a conversão em diligência pelo voto de qualidade, não seria possível afastar as multas exigidas. Da mesma forma, sendo rejeitada a prejudicial de decadência ou sendo reconhecida a responsabilidade solidária pelo voto de qualidade, com a manutenção do crédito por maioria ou unanimidade, não se aplicaria a regra exonerativa, de acordo com o racional desenvolvido no artigo.
De fato, não são todas as decisões tomadas pelo voto de qualidade que atrairão a regra comentada. A conversão de julgamento em diligência é um exemplo. Não há em tal hipótese efetivo julgamento do processo administrativo. Na realidade, o julgamento é interrompido e convertido em diligência para que se produza prova identificada como necessária (art. 938, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Civil). O julgamento ocorrerá num segundo momento. No entanto, o mesmo não ocorre com os demais exemplos elencados no artigo comentado.
O § 9º-A do art. 25 do Decreto 70.235/1972 não exige que a decisão tomada pelo voto de qualidade pró-Fazenda tenha apreciado “o crédito tributário em si”. A exclusão da penalidade decorre simplesmente do julgamento do processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade. Nesse sentido, a decisão tomada pelo voto de qualidade relacionada a questões preliminares, como o não-conhecimento do recurso especial do contribuinte, terá sido determinante para resolver o processo de forma favorável à Fazenda e manter o crédito tributário. Não há espaço, portanto, para interpretação tendente a restringir a aplicação do dispositivo.
Ademais, muito embora as matérias preliminares digam respeito a defesas indiretas, que não atacam propriamente o direito material em discussão, referem-se em última análise à própria exigência fiscal tanto quanto as matérias de mérito. Afinal, o acolhimento de preliminar de nulidade do lançamento levará à desconstituição do próprio crédito tributário controvertido. Por sua vez, acolhimento de prejudicial de decadência levará, igualmente, à desconstituição do crédito tributário controvertido e faria, ainda, no Judiciário, coisa julgada material (art. 487 do Código de Processo Civil).
Aliás, mesmo a criticada Portaria ME 260/2020, que regulamentou e restringiu a aplicação do desempate pró-contribuinte da Lei 13.988/2020, dispunha que o empate no julgamento de preliminares ou questões prejudiciais com conteúdo de mérito, tais como decadência ou ilegitimidade passiva do contribuinte, seria resolvido favoravelmente ao contribuinte. Isso apesar de a referida lei ter comando mais restrito: a resolução do processo seria favorável ao contribuinte quando houvesse “empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”.
Vale lembrar que, com frequência, questões relacionadas às condições da ação, tal qual a legitimidade passiva, dependem do exame de provas. Nessa hipótese, segundo a teoria da asserção[1], adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), essas questões são julgadas no mérito, e não preliminarmente. Portanto, discussões sobre responsabilidade solidária, quando demandarem o exame de provas, são julgadas em decisões de mérito. Como tal, seria inquestionável a aplicação do art. 25, § 9º-A, do Decreto 70.235/1972, às referidas questões processuais.
Já a tese que prevaleceu na 1ª Turma da CSRF está fundamentada no argumento de que a lei teria a redução da litigiosidade como um de seus objetivos. Desse modo, havendo insistência do contribuinte no contencioso, ele estaria colocando em dúvida o que foi resolvido pelo voto de qualidade em momento anterior.
Presumivelmente, a tese se sustenta também no argumento jurídico de que apenas o voto de qualidade que “resolva” o processo em benefício da União é que atrairia a aplicação do art. 25, § 9º-A, do Decreto 70.235/1972. Se referida decisão é substituída por nova tomada por maioria, por exemplo, não estaria mais o voto de qualidade “resolvendo” o processo.
Há relevante problema com essa interpretação. O comentado § 9º-A dispõe que as penalidades são excluídas “na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”. Diferentemente do que ocorre com os juros de mora – em que o processo deve ser “resolvido definitivamente” pelo voto de qualidade –, o dispositivo relativo às penalidades não exige que o julgamento decidido por voto de qualidade tenha sido o último (i.e. que este tenha posto fim ao processo administrativo). Partindo da premissa de que a lei não contém palavras inúteis, o legislador claramente optou por permitir a exclusão das multas ainda que o voto de qualidade tenha sido proferido no âmbito de Turma Ordinária.
Como afirmado no artigo do PFN, são muitos os pontos que dependem de regulamentação. Exemplo disso é a necessária prescrição dos efeitos da dispensa de garantia para discussão judicial dos créditos resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade, abordada em artigo de nossa autoria intitulado “A inefetividade da dispensa de garantia na lei do Carf”. Essa indispensável regulamentação não deve ser utilizada, contudo, para subverter o propósito da norma, que buscou trazer equilíbrio entre os litigantes na solução de temas controvertidos.
[1] “Esta Corte Superior entende que, ‘À luz da teoria da asserção, o exame aprofundado das circunstâncias da causa, a fim de verificar a ilegitimidade da parte, constitui julgamento de mérito’.” (AgInt no AREsp n. 2.094.650/PR, relator Ministro Raul Araújo, 4ª Turma, DJe de 24/2/2023)