Um dia, em algum momento não muito distante da história deste país, boa parte da comunidade jurídica parecia não ter disposição para se “meter” com os assuntos e as ilegalidades perpetradas no âmbito da denominada Operação Lava Jato. Algumas poucas vozes corajosas se levantaram. Hoje, parece consenso entre os juristas brasileiros que ilegalidades e arbitrariedades foram cometidas e que estávamos diante de algo que iria marcar negativamente e para sempre a história do país, no campo jurídico e político.
O tema agora não é Direito Penal, mas Direito do Trabalho. As circunstâncias, todavia, em muito se assemelham. Ninguém quer colocar a mão e é quase um tabu no Brasil discutir a natureza da relação jurídica que se estabelece entre as empresas que prestam serviço de entrega de mercadorias e os trabalhadores que realizam essas entregas. Na melhor das hipóteses, aceita-se discutir a necessidade de regulamentação na seara do Direito Previdenciário, o que, sem dúvida, é insuficiente neste cenário cujo caos e injustiça social se aprofundam a cada dia.
Está na pauta desta quinta-feira (8) no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento da Reclamação Constitucional 64018, proposta pela Rappi Brasil. Na origem, a Justiça do Trabalho reconheceu o vínculo de emprego entre a plataforma e o trabalhador. Na prática, o que está em jogo é basicamente se manteremos a abissal concentração de renda que marca o capitalismo mundial deste tempo brutal, que abrevia a vida dos trabalhadores, adoece, mutila e mata, porque não conhece limites para explorar. Ou se haverá um pouco mais de distribuição de renda e seguiremos com um projeto de Brasil que mira o escopo de justiça social, na linha do que perseguiu o constitucionalismo social e humanista de que trata a Constituição Federal de 1988.
Mas o argumento até agora utilizado pode ser acusado de extrajurídico. Vamos ao técnico, então. No caso concreto, a Justiça do Trabalho entendeu que restou configurada a relação de emprego, porque presentes os seus elementos caracterizadores constantes nos artigos 2º e 3º da CLT. Não são poucos os Judiciários de países europeus que, civilizadamente, vêm reconhecendo uma relação de subordinação entre entregadores e motoristas e as plataformas, com destaques para decisões da Suíça e da França. Na Espanha, na Itália e na Holanda, o reconhecimento está ocorrendo para entregadores e as plataformas, e na Alemanha, para trabalhadores de microtarefas[1].
Há uma tendência, portanto, de decisões recentes dos países europeus, em última instância, de reconhecimento do vínculo de emprego e de contrariedade ao enquadramento destes trabalhadores como autônomos. É imperioso dizer, para além disso, que os artigos 2º e 3º da CLT não foram revogados pela reforma trabalhista. Talvez o mercado, que historicamente se reinventa para o maior lucro com o menor custo possível, assim desejasse, mas felizmente e para o bem da nação, isso não ocorreu.
O princípio da primazia da realidade, princípio fundante do Direito do Trabalho, nos ensina que é necessário que prevaleçam os fatos, o que ordinariamente acontece na realidade fática sobre o conteúdo dos documentos formais. Os fatos mostram trabalhadores sob gestão algorítmica, submetidos ao poder de comando de uma empresa por meio de tecnologia, que dirige a prestação do trabalho e tem pleno controle sobre a forma como este trabalho se desenvolve e é prestado. Por meio da programação algorítmica, a empresa estabelece unilateralmente todas as condições de prestação do trabalho, clientela, preço, destino, avaliação de resultado e controle de qualidade.
Os trabalhadores estão sujeitos à dispensa a qualquer tempo, a uma enorme insegurança e a uma jornada muitas vezes exaustiva, sem qualquer garantia de um salário-mínimo hora ou mensal. Há pouca transparência em relação aos dados e ausência de fiscalização do Estado via inspeção do trabalho acerca dessa relação jurídica.
Cumpre recordar que a intermitência ou a descontinuidade da prestação do trabalho não descaracteriza a subordinação jurídica. É dizer, o fato do trabalhador escolher o horário em que quer trabalhar não descaracteriza a subordinação, elemento configurador da relação de emprego. Exemplo típico é o trabalho intermitente previsto no art. 443, § 3° da CLT, que é trabalho subordinado.
É essa relação que envolve transporte de mercadorias, sob condições que a empresa estipula unilateralmente, que se quer isentar da incidência do direito do trabalho.
Reclamação Constitucional, já disse incessantemente o Supremo Tribunal Federal, não é sucedâneo recursal. E, consabidamente, a Suprema Corte também não reexamina fatos e provas. E como julgar procedente esta reclamação contra decisão da Justiça do Trabalho que reconhece presentes no campo fático os elementos da relação de emprego, se não pode o STF reexaminar fatos e provas, em sede de reclamação constitucional?
E onde está o precedente vinculante do STF desrespeitado, que autorizou a fraude, a prática da ilegalidade no âmbito das relações empregatícias, e declarou a inconstitucionalidade do art. 9º da CLT? São questões que a Suprema Corte brasileira certamente haverá de responder durante o julgamento, caso se incline pela procedência da reclamação constitucional.
Há mais um ponto relevante. O que subjaz esse debate certamente é a discussão sobre a competência da Justiça do Trabalho ou da Justiça Comum para julgar demandas dessa natureza. Sempre aprendi que a competência se estabelece pelo pedido e pela causa de pedir. O pedido é de reconhecimento de vínculo de emprego. Neste caso, temo que estejamos diante de uma tragédia dentro da organização do Judiciário brasileiro, com graves consequências para o bom funcionamento do Estado democrático de Direito. Aqui, que se atentem os defensores da democracia.
É possível extinguir a Justiça do Trabalho por uma emenda constitucional? Entendo que não, pois seria inconstitucional. Mas é possível matá-la de outra forma, de inanição, de desidratação, usurpando o que tem de mais caro: sua competência. O efeito será idêntico para os trabalhadores, destinatários que são da Justiça Social.
Urge o envio de projeto de lei para o Congresso Nacional, independentemente da decisão que for tomada pelo STF neste caso que tem sido tão veiculado na mídia brasileira. A CLT não parece estar resolvendo a questão e é preciso assegurar, no mínimo, os direitos do art. 7º da Constituição Federal a estes trabalhadores, as regras pertinentes à saúde e segurança do trabalho, a competência da Justiça do Trabalho para julgar essas demandas, a fiscalização desta relação pelo Ministério Público do Trabalho por meio da inspeção do trabalho, e a proteção previdenciária. É civilizatório que assim o seja.
Vale lembrar que o trabalhador avulso nos portos possui todos os direitos acima elencados, trabalha por demanda e é regido por lei específica, e não pela CLT. O trabalhador avulso pode ou não ter vínculo de emprego com o operador portuário, e a competência para julgar a matéria é da Justiça do Trabalho. A relação tem suas peculiaridades, mas a ideia comporta o exemplo. Basta que os direitos fundamentais estejam garantidos. Para isso há algumas saídas. Uma não é válida e nem civilizatória: a que pretende reduzir o trabalhador a uma condição de mercadoria descartável no balcão do adoecimento, da ausência de direitos e no terreno do curto prazo.
A história vai cobrar essa conta. Há um arcabouço jurídico trabalhista construído ao longo de décadas que, não sem o esforço histórico da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, das organizações sindicais, dos movimentos sociais e da sociedade civil, resiste, persiste e se mantém de pé. O mundo civilizado nos cobrará respeito à Constituição e coerência política.
[1] HIESSL, Christina. Jurisprudence of nacional Courts confronted with cases of alleged misclassification of platforms workers: comparative analysis and tentative conclusions. Bruxelas, 2022a.
HIESSL, Christina. The legal status of plataform workers: regulatory approaches and prospects of a European solution. Italian Labour Law e-Journal, vol 15. N. 1, 2022b.