Regulações da UE e o conflito entre proteção ambiental e acesso a mercados

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As recentes propostas da União Europeia de regulações ambientais sobre produtos evidenciam a crescente interseção entre o direito ambiental e o direito do comércio internacional.

Três regulações são notáveis nesse sentido: a Green Claims Directive (GCD), proposta de diretiva para regulamentar alegações de sustentabilidade de produtos, visando combater o greenwashing; a Deforestation Regulation (EUDR), regulação aprovada em 2023 com o objetivo de garantir que certas commodities e seus produtos derivados fornecidos ao mercado europeu comprovem sua sustentabilidade; e o Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM), política que visa garantir que produtos importados (a começar por cimento, ferro e aço, alumínio, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio, que têm alta pegada de carbono) estejam sujeitos à mesma tarifa de carbono que aqueles produzidos na União Europeia.

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Embora as intenções de combater o greenwashing e promover práticas sustentáveis sejam louváveis, essas regulações têm gerado preocupações quanto à compatibilidade com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao impacto desproporcional sobre países em desenvolvimento, como o Brasil.

A GCD, por exemplo, impõe requisitos rigorosos de verificação e rastreabilidade ambiental, exigindo que empresas comprovem, por meio de certificações robustas e auditorias independentes, as credenciais ecológicas de seus produtos. Essa exigência, por si só, não seria problemática se estivesse inserida em um contexto de padronização global, baseado em princípios multilaterais e com mecanismos de apoio técnico e financeiro às economias em desenvolvimento.

No entanto, a GCD ignora especificidades ambientais, sociais e produtivas de países tropicais e exportadores agrícolas como o Brasil, impondo custos regulatórios que, na prática, podem acabar por funcionar como barreiras não tarifárias.

Enquanto empresas europeias contam com infraestrutura institucional e acesso facilitado a selos de certificação, produtores brasileiros — especialmente os pequenos e médios — enfrentam altos custos e dificuldades práticas para adequar suas cadeias produtivas à nova norma. Essa disparidade pode até resultar na exclusão de produtos sustentáveis de mercados internacionais, contrariando os objetivos de promoção da sustentabilidade.

Os mesmos problemas são apontados em relação à EUDR. Há críticas sobre o impacto da regulação sobre importantes exportações brasileiras (carne, soja, café e cacau) não só pelo aumento de custos para acessar o mercado europeu, mas também em relação à insensibilidade da norma ao contexto local, colocando em xeque sua capacidade de alcançar os objetivos declarados.

Por exemplo, a EUDR não considera como “floresta” (portanto exclui do escopo de aplicação) importantes biomas brasileiros, como o Cerrado e a Caatinga, que também são palco de expansão agropecuária e desmatamento. Esse ponto cego pode gerar o efeito colateral de incentivar a expansão para essas áreas não consideradas florestais ao invés de incentivar o registro e documentação sobre produção agropecuária na Amazônia e outras áreas incluídas na EUDR, com impacto negativo sobre os biomas brasileiros.

O CBAM também é objeto de críticas de países emergentes. A política tem o objetivo de combater o “carbon leakage”, fenômeno em que indústrias intensivas em carbono migrariam sua produção para países com regulação ambiental menos rigorosa do que a União Europeia.

A China já pautou esse tema no Comitê de Acesso a Mercados da OMC, argumentando que o CBAM seria uma medida unilateral discriminatória nos termos do direito do comércio internacional e incompatível com o princípio de responsabilidades comuns mas diferenciadas do Acordo de Paris, além de desconsiderar as diferenças nas fases de desenvolvimento e as responsabilidades históricas de emissão de carbono dos diferentes países. Em relação ao Brasil, observa-se novamente a insensibilidade ao contexto local na medida em que o método padronizado de cálculo de emissões previstos no CBAM não favorece a contabilização da matriz energética local que, no caso do Brasil, é predominantemente limpa.

Do ponto de vista jurídico, esses casos ilustram uma colisão entre dois regimes de governança global: o ambiental (emergente e baseado em soft law e pactos multilaterais, como o Acordo de Paris) e o comercial (mais consolidado e normativamente estruturado em torno da OMC). Conforme o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio e o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, medidas regulatórias devem: (i) ser necessárias e proporcionais ao objetivo ambiental que pretendem alcançar; (ii) se basear em evidência científica, de forma a evitar discricionariedade excessiva; (iii) não ser discriminatórias, diretas ou indiretamente, em relação à origem do produto; e (iv) evitar obstáculos injustificados ao comércio internacional.

Nesse sentido, as regulações mencionadas podem ser alvo de questionamentos no âmbito da OMC, especialmente se continuarem a desconsiderar métricas alternativas de sustentabilidade, como a matriz energética brasileira — composta por mais de 80% de fontes renováveis. Ignorar tal realidade significa aplicar critérios homogêneos a realidades heterogêneas. Ao não reconhecer biomas como o Cerrado e a Caatinga, ou ao desconsiderar a matriz energética limpa brasileira, a União Europeia aplica critérios que distorcem a realidade ecológica de países tropicais.

É inegável que combater o greenwashing, o desmatamento e o “carbon leakage” é uma prioridade legítima, assim como é legítima a preocupação com a celeridade e efetividade de medidas multilaterais para combater um problema urgente como as mudanças climática em um contexto de esgotamento do multilateralismo. No entanto, ações regulatórias ambientalmente válidas e que se valem do poder do mercado consumidor europeu no cenário internacional podem produzir efeitos prejudiciais se não forem calibradas com sensibilidade socioeconômica.

O paradoxo é evidente: em nome da proteção ambiental, corre-se o risco de excluir produtores sustentáveis de mercados internacionais — especialmente aqueles sem recursos para demonstrar sua sustentabilidade nos moldes exigidos.

Para que as regulações ambientais da União Europeia não se transformem em uma ferramenta de exclusão comercial com roupagem de virtude regulatória, é preciso um diálogo multilateral estruturado sobre padrões de sustentabilidade, respeitando o princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas, o que pode incluir:

  • Reconhecimento explícito de métricas regionais de sustentabilidade (como o uso de energias renováveis no Brasil);
  • Flexibilização regulatória para PMEs e produtores familiares, com transições estendidas e mecanismos de leniência;
  • Estímulo à cooperação tecnológica e científica entre União Europeia e países exportadores para facilitar a adoção de soluções de compliance ambiental;
  • Implementação de avaliações de impacto regulatório em países terceiros antes da entrada em vigor das regras;
  • Submissão prévia de normas como a GCD ao Comitê de Barreiras Técnicas da OMC, buscando soluções consensuais e preventivas a disputas.

Alguns ajustes são reconhecidos pela União Europeia, por exemplo ao adiar a entrada em vigor da EUDR para micro e pequenas empresas. No entanto, são necessárias adaptações mais profundas para que medidas ambientais unilaterais não reproduzam assimetrias históricas e ampliem desigualdades ambientais e comerciais.

A sustentabilidade, para ser real, precisa ser também equitativa e dialogar com as realidades locais — caso contrário, servirá apenas como instrumento de exclusão e desequilíbrio global.

O Brasil, por sua vez, não pode se limitar a uma postura reativa às regulações estrangeiras que impactam suas exportações. É necessário assumir papel ativo nos fóruns internacionais, defendendo padrões sustentáveis que reflitam sua realidade, ao mesmo tempo em que deve apoiar seus pequenos produtores no acesso a mercados verdes.