“Many people, especially Americans, have come to expect corporations to demonstrate mercenary behaviors. It’s in the corporations’ DNA. We don’t expect mercenary scientists.” [1]
Em tempos em que tanto se fala de regulação por evidências, é fundamental perquirir sobre o que pode ser considerado conhecimento válido, do que decorrem preocupações com a própria produção do conhecimento. Para tal reflexão, considero indispensável a crítica proposta por David Michaels em seu livro “Triumph of Doubt. Dark Money and the Science of Deception”[2].
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O argumento central de Michaels não é propriamente novo, uma vez que a ideia de uma ciência comprada para gerar intencionalmente dúvidas sobre assuntos em relação aos quais já haveria um número consistente de evidências científicas já havia sido abordada no igualmente excelente livro “Merchants of Doubt”, de Naomi Oreskes e Eric Conway[3]. Entretanto, impressiona a quantidade de casos descritos por Michaels, assim como os argumentos e provocações que ele nos coloca.
Para o autor, a grande verdade é que os CEOs das grandes empresas não estão interessados nem na ciência, nem em contratar os melhores cientistas. De forma contrária, as evidências apontam para a circunstância de que, diante dos riscos gerados por suas atividades, os CEOs se valem de uma verdadeira defesa dos seus produtos a qualquer preço, mesmo que por meio da negação da ciência.
Segundo Michaels, a indústria da defesa do produto é constituída por um conjunto de iniciativas e práticas tais como negar alegações de risco em relação aos produtos, defender o produto a todo custo e atacar todas as preocupações científicas em sentido contrário, e por uma série de profissionais – cientistas, relações públicas, advogados e lobistas, que se guiam pela valorização dos lucros acima da saúde ou do bem estar de empregados e consumidores, assim como do meio ambiente.
Portanto, as corporações estão acompanhadas de um verdadeiro exército de profissionais que são contratados para minar evidências, moldar opinião pública, retardar regulação protetiva e derrotar litigantes que procurem alegar algum tipo de dano.
Daí por que a ciência produzida nesse contexto, que tem por objetivo produzir o resultado que os seus financiadores desejam, não é propriamente ciência, mas sim relações públicas ou o que Michaels chama de “má ciência”. Sob essa perspectiva, nunca há evidências científicas suficientes para inibir os propósitos corporativos e, para isso, cria-se igualmente uma indústria da dúvida, que tem por propósito questionar as melhores evidências a qualquer preço.
É importante ressaltar que, assim como o anterior livro de Oreskes e Conway, a obra de Michaels não parte de meras conjecturas, mas apresenta importantes estudos de caso, em diferentes mercados, para mostrar como essa indústria de defesa dos produtos funciona em diversos segmentos: tabaco, asbestos, poluição industrial, químicos, opioides, clima, entre outros. Dentre os exemplos descritos, o caso Volkswagem (Dieselgate) é especialmente interessante.
Apesar das diferenças entre os casos, as estratégias costumam ser comuns, envolvendo normalmente as seguintes condutas, muitas vezes implementadas de forma cronológica, conforme o aumento das evidências que apontam para os riscos respectivos: (i) negação/omissão dos riscos, (ii) distorção dos riscos, e (iii) desvios de atenção, o que normalmente ocorre a fim de afastar o nexo de causalidade entre o produto/atividade e o resultado danoso.
O que todos esses casos mostram é que, para a indústria, debater a ciência costuma ser mais fácil e efetivo do que propriamente debater as políticas regulatórias. A criação intencional da dúvida costuma ser suficiente para retardar ou mesmo obstruir proteções em favor da saúde ou do meio ambiente, ou apenas convencer alguns jurados e juízes de que a ciência não é forte o suficiente para considerar um produto como responsável por uma terrível doença.
Um dos primeiros problemas desse ecossistema é o próprio fato de a ciência ser paga por financiadores interessados em determinados resultados. Michaels lembra uma famosa citação do escritor americano Upton Sinclair no sentido de que é difícil convencer um homem de algo quando o seu salário depende de não acreditar nisso.
Para Michaels, tal circunstância independe da má-fé ou da própria percepção dos cientistas envolvidos, já que o autor parte da premissa de que nossas motivações influenciam nossos raciocínios, fenômeno que os psicólogos chamam de raciocínio motivado (motivated reasoning). Por essa razão, o problema do conflito de interesses, para o autor, é estrutural e não será resolvido apenas pela transparência ou disclosure[4]:
“Not surprinsingly, no matter who performs the study, those paid for by a private sponsor tend to deliver the results the sponsor wants.”[5]
No interessante capítulo “Science for sale”, Michaels explora a importância da interpretação dos dados e o quanto os vieses dos cientistas pagos por financiadores podem ser determinantes para tal interpretação. Isso se projeta também nas análises de riscos – que podem ser feitas sob medida para se chegar a um risco que não implique alterações significativas na atividade empresarial – e mesmo na credibilidade de muitas instituições que, como vários think tanks, apresentam-se como independentes, mas são financiadas por interessados em propagar os livres mercados e a desregulação.
Em outras palavras, embora a ausência de transparência seja um grande problema, impor soluções que obriguem os cientistas a declararem os recursos que recebem ou os interesses a que servem, Michaels considera que o full disclosure, embora amenize, não resolve a distorção estrutural: o do raciocínio motivado. Para o autor, o fundamental é que os cientistas possam produzir estudos de forma independente e livre de conflitos.
O segundo grande problema diz respeito à conexão entre a indústria da dúvida e as pautas desregulatórias normalmente implementadas por governos de orientação neoliberal. Como mostra Michaels, a administração Bush foi pródiga em usar argumentos providos por cientistas mercenários para desacelerar a implementação da saúde pública e das proteções ambientais.
No caso de Trump, que seguiu o mesmo caminho, a sua postura não foi propriamente original, mas mero reflexo de meio século de hostilidade republicana contra qualquer evidência científica que não estivesse alinhada com os interesses financeiros dos patrocinadores. Nesses casos, a ciência era a maior inimiga da indústria:
“When you are defending an industry under attack for killing people or harming the planet, science is your adversary. So Republicans take steps to neutralize it by litigating scientific consensus and scientific expertise.”[6]
Sobre o assunto, Michaels cita Richard Hofstadter, em seu livro “Anti-Intellectualism in American Life”, para mostrar o quanto líderes corporativos lutam contra o que consideram a “nova classe”, formada por intelectuais, jornalistas, professores e cientistas que tentam mudar a sociedade de uma forma que afete os interesses da classe corporativa.
Muito dessa luta da elite corporativa dirige-se também ao Judiciário, a fim de, nele, difundir os pressupostos da indústria da dúvida. Michaels cita, como exemplo, o voto do juíz Brett Kavanaugh, da Suprema Corte americana, quando acatou o argumento de que treinadores do Sea World voluntariamente aceitaram o risco de morte violenta como parte do seu trabalho, assim como poderiam legitimamente fazê-lo. Para Michaels, tal interpretação não é apenas uma distorção das leis federais sobre o assunto, mas sim um claro exemplo de valorização de corporações sobre os direitos humanos no processo de elaboração de decisões judiciais.
Por fim, o terceiro grande problema diz respeito à conexão entre a indústria da dúvida e o short-termism, traduzido na filosofia de Friedman segundo a qual o propósito das companhias é sempre buscar lucros a curto prazo, razão pela qual não terão maiores incentivos para neutralizar ou mitigar os danos que podem causar às pessoas e ao planeta.
Dessa maneira, conclui Michaels que, embora seja inequívoco que precisamos evoluir com a ciência, tal propósito não pode ser atingido enquanto a indústria apenas financiar aqueles que querem defender os seus interesses, e enquanto os cientistas não forem independentes e livres de conflitos.
Ainda que a indústria possa e deva pagar por estudos científicos que digam respeito aos riscos das atividades que elas desenvolvem, ela não pode controlar os cientistas que desenvolverão as pesquisas. Uma proposta ambiciosa seria inclusive a construção de instituições independentes que possam intermediar essas contratações e supervisionar os estudos.
Tais preocupações são especialmente importantes nas reanálises de evidências, que precisam ser conduzidas pelo que Michaels chama de “cientistas honestos”, que estejam interessados apenas na busca da verdade e que não sejam instrumentalizados pela indústria da dúvida.
Por todas essas razões, as reflexões propostas por Michaels são fundamentais para que possamos estruturar um sistema coerente de regulação por evidências. Afinal, além dos riscos de captura política[7], os riscos de corrupção da ciência podem minar por completo o sustentáculo de tais análises, realçando a probabilidade de que muitas das “evidências científicas” sejam disfarces para justificar e propagar os interesses do poder econômico.
[1] MICHAELS, David. Triumph of Doubt. Dark Money and the Science of Deception. Oxford University Press, 2020. Tradução livre: Muitas pessoas, especialmente os americanos, esperam que as corporações demonstrem comportamentos mercenários. Isso está no DNA das corporações. Nós não esperamos é cientistas mercenários.
[2] Op.cit.
[3] ORESKES, Naomi; CONWAY, Eric. Merchants of Doubt. How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. Bloomsbury Press, 2010.
[4] Op.cit.
[5] Op.cit. Tradução livre: Sem surpresas, independentemente de quem realiza o estudo, aqueles pagos por um financiador privado tendem a entregar os resultados que o financiador quer.
[6] Op.cit. Tradução livre: Quando você defende uma indústria que está sob ataque por matar pessoas ou causar danos ao planeta, a ciência é sua adversária. Por isso os republicanos tentam neutralizar isso por meio da litigância contra o consenso científico e contra a expertise científica.
[7] Já se abordou os riscos de que as análises de impacto regulatório sejam meros disfarces para justificar a desregulação ou determinadas orientações políticas na série sobre Análises de Impacto Regulatório. Ver FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/perspectivas-das-analises-de-impacto-regulatorio-airs-no-brasil-17022021