‘Regulação é proteção’, diz Sindigás ao criticar mudanças propostas pela ANP

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A forma como o brasileiro compra o gás de cozinha pode estar prestes a mudar. A proposta em análise pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), no entanto, acende um sinal de alerta entre as entidades do setor, entre elas o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás). De acordo com o presidente da entidade, Sergio Bandeira de Mello, as novas regras podem alterar um modelo que hoje é reconhecido pela segurança, qualidade e pelo controle rigoroso em todas as etapas logísticas. 

Essa percepção atinge também os consumidores. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva aponta que 93% da população teme comprar gás sem a garantia da marca conhecida. Entre as medidas propostas pela ANP, está o fim das marcas gravadas em alto-relevo nos botijões, permitindo que qualquer distribuidora envase os botijões das concorrentes, mediante um sistema de rastreamento que ainda não existe no mercado.

Os entrevistados ainda consideram um possível aumento na criminalidade e violência (94%), uma vez que, para eles, a flexibilização das regras traria risco relevante de ligação com comércio ilegal ou com crime organizado. O levantamento foi realizado com 1,5 mil entrevistados em junho deste ano. A margem de erro é de 2,5 pontos percentuais, para mais ou para menos.

Bandeira de Mello afirma que “o consumidor reconhece o valor da marca e do botijão comercializado cheio e lacrado como sinais de confiança e segurança”. O presidente do Sindigás destaca ainda a importância das políticas públicas para o enfrentamento da pobreza energética no Brasil. Veja na entrevista a seguir.

Estúdio JOTA: Por que as novas regras podem colocar em risco a segurança das famílias?

Bandeira de Mello: O Sindigás tem alertado que a proposta das novas regras da ANP para o mercado de GLP altera um modelo que hoje é reconhecido pela segurança, qualidade e pelo controle rigoroso em todas as etapas logísticas. O sistema brasileiro combina portabilidade do botijão, rede ampla de revendas autorizadas e responsabilização civil e criminal da distribuidora que envasou aquele cilindro, identificada pela marca em alto-relevo. Além disso, o enchimento é feito em grandes bases industriais, com estrutura e equipes de emergência. Essa combinação garante a responsabilidade civil e criminal, manutenção periódica e o funcionamento do sistema de “destroca” (ao comprar o botijão cheio, o consumidor devolve um vazio – de qualquer marca; depois, as distribuidoras fazem a destroca).

Propostas como permitir que qualquer empresa encha botijões de diferentes marcas ou autorizar o enchimento remoto e fracionado em pequenas centrais de abastecimento, inclusive em áreas urbanas, trariam sérios riscos. A perda da unicidade da marca eliminaria o principal mecanismo de responsabilização das distribuidoras, dificultando a fiscalização, desestimulando investimentos na requalificação e compra de novos botijões. Adicionalmente, abre espaço para fraudes e para precarização do serviço. 

Outro ponto é que ao descentralizar o enchimento, aumentaria o risco de atuação de agentes informais e até do crime organizado, como já se observou em mercados internacionais com regulação mais frágil – como no México, onde houve aumento de incidentes, e no Paraguai, que adotou a intercambialidade em 2005 e hoje tem 80% do parque de botijões vencido.

Essa percepção de risco chegou também à população, segundo a pesquisa inédita do Instituto Locomotiva. De que forma esses dados devem ser considerados pela ANP?

A pesquisa mostra que a preocupação com segurança e legalidade não é apenas do setor, mas também da sociedade. O consumidor reconhece o valor da marca e do botijão cheio e lacrado como sinais de confiança e segurança. De acordo com a pesquisa, 92% dos entrevistados acreditam que a compra de gás de forma fracionada traria risco de vazamento de gás; 97% acham importante a marca do botijão ser responsável por garantir a qualidade do gás e 94% consideram importante ter o nome da empresa que encheu o botijão gravado em alto-relevo.

Além disso, 94% consideram a segurança o fator mais importante na hora da compra, mais do que o preço, e 93% enxergam risco de adulteração ao comprar gás fracionado.  O enchimento fracionado, segundo a pesquisa, significa trocar certeza por desconfiança. Para os brasileiros ouvidos, é grande a chance de adulteração ou de receber menos gás do que comprou. 

Para o Sindigás, o debate sobre a regulação é legítimo e necessário, quando baseados em análises econômicas e ganho social. Há, inclusive, o entendimento de que a ANP busca maior competitividade no mercado de GLP.  Mas, o que está em jogo não é apenas a dinâmica de mercado, e sim a segurança de milhões de famílias que dependem do gás de cozinha todos os dias.

A mesma pesquisa mostra que 94% dos brasileiros veem risco de ligação da proposta com o comércio ilegal. Como o Sindigás enxerga esse risco e quais seriam as consequências para os consumidores e para o setor?

A pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que 94% dos brasileiros associam o novo modelo ao risco de avanço do comércio ilegal e do crime organizado — e essa é uma preocupação legítima. Hoje, o sistema de gás de cozinha tem um controle de origem muito bem definido: cada botijão carrega a marca da empresa responsável pelo enchimento, o que garante que ele passe por manutenção, testes regulares e responsabilização em caso de imprevistos. Se o envase for pulverizado entre pequenos distribuidores, esse controle se perde.

E mais: quando não se sabe de onde vem o produto, abrem-se brechas para irregularidades, como envase clandestino, adulteração e até infiltração de atividades criminosas. O resultado é o enfraquecimento de um modelo que hoje oferece segurança, qualidade e confiança para o consumidor. Por isso, regulação e fiscalização não são burocracia, são proteção. Não podemos baixar a régua. A própria ANP enfrenta limitações de equipe e é pouco realista acreditar que conseguirá fiscalizar um número muito maior de agentes. Se essa proposta avançar, o país pode criar um problema enorme, que depois será difícil de reverter.

Como esse novo modelo pode impactar na fiscalização da venda do botijão de gás?

O atual modelo, por ter um número limitado de agentes qualificados no envase, permite que a ANP mantenha um controle efetivo sobre o sistema. Caso a proposta avance e o número de distribuidores aumente de forma expressiva, a fiscalização se tornará muito mais complexa. A dificuldade em monitorar um volume maior de empresas aumentaria o risco de circulação de botijões fora do prazo de requalificação e de práticas irregulares. 

O consumidor sentiria os efeitos diretamente: perda de padronização, maior exposição a riscos de segurança e, em alguns casos, encarecimento local do produto pela redução da eficiência logística. A estrutura atual é o que garante previsibilidade e segurança no abastecimento de todos os municípios brasileiros.

5 – O setor de GLP entrega 13 botijões por segundo em todo o país e atende a 100% dos municípios. Como esse histórico pode contribuir para mostrar que o atual sistema é eficiente e tem capilaridade?

O setor de GLP construiu ao longo de décadas uma rede de distribuição que é referência em capilaridade e confiabilidade. Essa estrutura é resultado de investimentos contínuos em segurança, logística e controle de qualidade. É um sistema que funciona muito bem, com entrega porta a porta de um serviço essencial e garante segurança ao consumidor. Por isso, mudanças estruturais sem base técnica sólida representam um risco desnecessário para um modelo que já se mostrou eficiente e é benchmark internacional.

Apesar de o gás de cozinha estar presente na maioria dos lares brasileiros, há famílias que dependem de lenha ou carvão. Como políticas públicas, como o Gás do Povo, podem ampliar o acesso ao GLP e incluir essas famílias?

Hoje, 91% das famílias declaram usar GLP regularmente e 96% estão equipadas para utilizá-lo. A diferença está na falta de conhecimento e de acesso ao produto. A chegada do programa Gás do Povo tem o objetivo de combater a pobreza energética, levando a 15,5 milhões de famílias uma energia mais limpa e segura que outros combustíveis, como o carvão e a lenha, que ainda é usada por cerca de 23% da matriz energética residencial, especialmente entre os mais vulneráveis.

O GLP garante mais qualidade de vida e saúde para as famílias. Essa mudança é transformadora porque significa menos doenças respiratórias, menos desmatamento e mais dignidade no preparo dos alimentos. O novo programa garante a destinação do recurso à compra da carga de gás, e não apenas transferência de renda, como no programa anterior, o Auxílio Gás dos Brasileiros.

Dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) apontam que, em 2024, a lenha ainda representava cerca de 23% da energia consumida pelas famílias brasileiras. Como o setor pode apoiar o governo para acelerar a transição dessas famílias para o GLP?

A contribuição mais importante é assegurar que os botijões destinados ao programa circulem dentro da atual estrutura da cadeia, com enchimento industrial controlado, botijão identificado com a marca da distribuidora pelo envase e requalificações periódicas. Esses mecanismos garantem monitoramento constante dos botijões e manutenção.

O setor pode apoiar o governo para garantir oferta em municípios sem revendas credenciadas, nos estados nas quais detenham participação igual ou superior a 10% de market share. As distribuidoras podem contribuir na sensibilização, capacitação, suporte técnico e incentivo à adesão pelas revendas, assim como promover canais de relacionamento com revendas e beneficiários, além de uma ouvidoria dedicada ao programa. Desta forma, com esse conjunto de ações, é possível atender à população vulnerável sem abrir brechas para botijões sem controle ou para mercados paralelos.

O Gás do Povo deve contemplar 100% dos beneficiários em março de 2026. Qual a avaliação do Sindigás sobre esse novo programa e qual deve ser seu impacto no combate à pobreza energética no Brasil?

Na nossa visão, o Gás do Povo é um grande avanço. É uma política de cuidado, que gera impacto real na vida de quem mais precisa. Hoje, a lenha ainda ocupa 23% da matriz energética residencial do Brasil. O programa atua justamente no combate à pobreza energética, oferecendo meios para que essas famílias façam a transição para o GLP. Substituir a lenha e o carvão pelo GLP é essencial para proteger a saúde das famílias, reduzir acidentes domésticos e ainda preservar o meio ambiente. 

O novo desenho do programa é mais eficiente: prevê destinação específica do benefício e entrega direta de vales para retirada dos botijões em revendas credenciadas. A expectativa é ampliar a cobertura de pouco mais de 5 milhões para até 15,5 milhões de famílias de baixa renda no CadÚnico [Cadastro Único], ampliando muito o impacto social dessa política.