O tabagismo é considerado uma epidemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, por isso, uma grave questão de saúde pública no país, com impactos sociais e econômicos. Essa realidade é registrada em números: o tabagismo corresponde a 12% de todas as mortes que ocorrem no Brasil em pessoas maiores de 35 anos (156 mil por ano) e gera custos sociais que representam 1,55% do Produto Interno Bruto (PIB).
Em face disso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou uma norma sobre os aditivos como os que dão sabor e aroma aos produtos de tabaco. Essas substâncias são usadas para tornar os cigarros convencionais e os eletrônicos mais atraentes ao público, especialmente entre os jovens.
Apesar de estar em vigor há 13 anos, a Resolução da Diretoria Colegiada – RDC 14/2012 é alvo de questionamentos judiciais pela indústria. O assunto, que envolve o poder público e a sociedade civil, merece destaque neste mês, quando se comemora no dia 31 o Dia Mundial Sem Tabaco.
Para a data, a OMS preparou uma campanha com um slogan focado nas substâncias que modificam o cheiro, sabor ou aparência dos produtos: “desmascarando a indústria do tabaco: expondo as táticas das empresas para deixar os produtos de tabaco e nicotina mais atrativos”. A ação foi feita sob a justificativa de que “a indústria tenta sistematicamente encontrar formas de tornar estes produtos atrativos, e acrescenta sabores e outros agentes que modificam o cheiro, sabor ou aparência destes produtos. Esses aditivos têm como objetivo mascarar a aspereza do tabaco e, dessa forma, melhorar sua palatabilidade, principalmente pensando nos jovens”.
Ainda nas comemorações do 31 de maio, as ações referentes ao controle do uso do tabaco renderam à Anvisa um prêmio da OMS por suas contribuições excepcionais para o controle do tabaco, representando o Brasil dentre outros 35 premiados de todas as regiões do globo.
Relação dos aditivos proibidos e permitidos
A RDC 14/2012 prevê a relação dos aditivos proibidos e permitidos (arts. 6º e 7º) e permite a aprovação do uso de outros aditivos, considerando as justificativas apresentadas pelas empresas, “desde que não alterem seu sabor ou aroma” (§2º, art.7º).
Dentre os vedados pela norma estão substâncias com propriedades flavorizantes ou aromatizantes, que possam conferir, intensificar, modificar ou realçar sabor ou aroma do produto; de ameliorantes (substância que reduz os aspectos irritantes da fumaça de produtos fumígenos derivados do tabaco); glicerol e propilenoglicol; e amônia e todos os seus compostos e derivados.
Cabe ressaltar que a norma é fruto de um processo democrático, realizado com a participação social, incluindo contribuições das sociedades civil e médica, bem como do setor regulado. O tema foi debatido por cerca de dois anos em audiências públicas e consulta pública na Anvisa e se apoiou em evidências científicas, que se acumulam por mais de uma década.
Apesar desse histórico, a ampla judicialização tem resultado na inaplicabilidade dos dispositivos da RDC 14/2012 a fabricantes de cigarros do país e empresas de tabaco. Como resultado, entre 2012 e 2023, a indústria realizou 1.112 novos registros de produtos de tabaco com aditivos contemplados pela proibição da norma, segundo um estudo desenvolvido pelo pesquisador e epidemiologista André Szklo, do Instituto Nacional de Câncer (Inca), em conjunto com profissionais da Anvisa e da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) Promoção da Saúde.
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“Não se trata de uma abordagem proibitiva, mas de utilizar a regulação como ferramenta legítima de promoção da saúde. Os aditivos proibidos pela Anvisa não são componentes essenciais para a fabricação de cigarros. Da perspectiva jurídica, a Anvisa não apenas pode lançar mão dessas ferramentas, mas deve fazê-lo para que o Brasil materialize o direito à saúde e outros direitos fundamentais”, disse Isabel Barbosa, diretora associada do O’Neill Institute for National and Global Health Law, parte da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos.
Para o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Virgílio Afonso da Silva, “ao contrário do que alguns sustentam, a competência da Anvisa não é apenas uma competência para controlar, mas também para regulamentar e fiscalizar os produtos que envolvam risco à saúde pública. Não há absolutamente nenhuma dúvida de que o cigarro é um produto que envolve risco à saúde pública. A conclusão óbvia, portanto, é a de que a Anvisa tem poder para regulamentar, controlar e fiscalizar a produção, a importação e a comercialização de cigarros.”
Público-alvo e histórico dos aditivos
As mortes causadas pelo consumo do tabaco ocorrem, principalmente, na idade adulta. Entretanto, é ainda na infância e adolescência que os males originados pelo tabagismo são iniciados. Atualmente, diversos estudos apontam que 90% dos fumantes iniciaram o hábito antes dos 19 anos e 50% das pessoas que experimentaram um cigarro nesta fase tornaram-se fumantes na vida adulta[1].
Pesquisas indicam ainda que, no Brasil, a idade média de experimentação do tabaco é de 16 anos de idade[2] e que 22% de estudantes de 13 a 17 anos já experimentaram cigarro alguma vez na vida, conforme a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), de 2019. O narguilé, que tem como principal atrativo o sabor e o aroma, garantidos a partir de aditivos, tem taxa de prevalência de 22,5% nesta população.
Um estudo realizado Fiocruz/UFRJ/INCA, em 2012, com estudantes entre 13 e 15 anos de idade, mostra ainda que mais de 50% dos entrevistados preferem cigarro com sabor, e mais de 60% dos estudantes que compram cigarros com aditivos afirmam que o sabor é o ponto alto do cigarro[3].
O uso de aditivos em cigarros e outros produtos à base de tabaco se intensificou a partir dos anos 1990, segundo estudo publicado pelo Ministério da Saúde[4]. Entre eles, destacam-se o uso de açúcares e doces. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, contabilizam-se 599 diferentes aditivos nos cigarros. A Organização Panamericana de Saúde e a Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health alertam, porém, que não há evidências científicas revisadas de que certos aditivos seriam necessários para o processamento do tabaco[5].
“A RDC 14/2012 faz o Brasil avançar na promoção da saúde, permitindo que o país se mantenha como referência internacional no controle do tabaco, além de, principalmente, reafirmar seu compromisso com a proteção de crianças e jovens, impedindo que a porta de entrada para o vício seja acessível. O papel da Anvisa é essencial para proteger direitos e garantir a rapidez regulatória para tutela de direitos. Declarar a constitucionalidade da RDC 14/2012 é imperativo de saúde e de direitos humanos”, disse Luís Renato Vedovato, professor da PUC-Campinas e da Unicamp.
Judicialização no STF
O tema chegou ao âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). A RDC 14/2012 foi objeto da ADI 4874, proposta pela Confederação Nacional da Indústria em 2012 e julgada improcedente em 2018, sob relatoria da ministra Rosa Weber.
Em seu voto, a ministra afirmou que “a Anvisa atuou em conformidade com os lindes constitucionais e legais das suas prerrogativas, observados a cláusula constitucional do direito à saúde, o marco legal vigente e a estrita competência normativa que lhe outorgam os arts. 7º, III, e 8º, § 1º, X, da Lei 9.782/1999.”
A ministra ainda disse que a liberdade de iniciativa “não impede a imposição, pelo Estado, de condições e limites para a exploração de atividades privadas tendo em vista sua compatibilização com os demais princípios, garantias, direitos fundamentais e proteções constitucionais, individuais ou sociais, destacando-se, no caso do controle do tabaco, a proteção da saúde e o direito à informação. O risco associado ao consumo do tabaco justifica a sujeição do seu mercado a intensa regulação sanitária, tendo em vista o interesse público na proteção e na promoção da saúde.”
Diogo Rosenthal Coutinho, professor de direito econômico e coordenador do Grupo de Direito e Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), comenta que “para além de ser crucial como forma de proteção à saúde [a prevenção do tabagismo no Brasil], a decisão do STF neste caso também se traduz em uma outra oportunidade valiosa: ao admitir a constitucionalidade da proibição do uso de aditivos de sabores e aromas em cigarros, o mais importante tribunal brasileiro reconhecerá e valorizará o poder normativo da regulação, sem o qual a missão da Anvisa e de outras agências não pode ser cumprida. Isto é: o caso é chave no processo de construção jurisprudencial de um Estado regulador efetivo e democrático no nosso país”.
O debate no STF ainda não terminou. A norma segue em repercussão geral (Tema 1252) sob a relatoria do ministro Dias Toffoli (ARE 1.348.238/DF), e a discussão se dá acerca da competência da Anvisa para a edição da RDC 14/2012 e da constitucionalidade da norma. Em julgamento iniciado no plenário virtual em 1º de novembro de 2024, Toffoli reconheceu a constitucionalidade da medida e ratificou que ela está fundamentada em critérios e estudos técnicos.
Para a advogada e professora da Fundação Getúlio Vargas, Eloísa Machado, o Supremo tem agora a oportunidade de reafirmar a constitucionalidade da RDC 14/2012, “reconhecendo o relevante papel que a Anvisa desempenha e a centralidade da regulamentação de aditivos, sobretudo de sabor e aroma, para as políticas de controle do tabagismo, em consonância com as obrigações internacionais assumidas pelo país.”
Exemplo para o mundo
Frequentemente, a indústria questiona as políticas de controle ao tabagismo e as relaciona ao aumento do mercado ilegal de cigarros. No entanto, a OMS, o Banco Mundial e o Instituto Nacional do Câncer, do Ministério da Saúde, defendem que tais medidas não fomentam esse mercado. A Organização Panamericana de Saúde e a Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health apontam que o mercado ilegal de cigarros está relacionado à corrupção e à fiscalização deficiente, e não às políticas públicas de controle do tabagismo.
Para a ACT, o Grupo de Direito e Políticas Públicas da Faculdade de Direito da USP e O’Neill Institute for National and Global Health Law, o caminho para o combate a este problema de saúde e segurança públicas é a implementação do Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Tabaco (Decreto 9.516/2018). O protocolo prevê a adoção de medidas que envolvem iniciativas em âmbito nacional, esforços diplomáticos entre países fronteiriços, ações coordenadas de inteligência e fiscalização, entre outras iniciativas para reduzir o comércio ilícito de produtos de tabaco.
Dessa forma, o país também tem se consolidado como um exemplo mundial no controle do tabagismo, com reconhecimento da OMS. No relatório Epidemia Mundial do Tabaco, a organização ressalta que o Brasil é o segundo país do mundo a implementar as mais importantes medidas preconizadas pelo órgão. Esse reconhecimento foi feito em 2019 e em 2023.
O Brasil precisa “definir o que quer para suas gerações futuras em relação à prevenção de graves doenças causadas pelo tabaco”, afirma o advogado Walter José Faid de Moura. Neste momento, “entre todos os cenários, o pior deles é contrariar todas as evidências científicas e admitir a venda de cigarros com sabores e gostos de guloseimas”, completou Moura.
[1] https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/tratamento-consenso.pdf
[3] http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/812_pesquisa_aditivos.pdf
[5] https://actbr.org.br/uploads/arquivo/664_RESPOSTA_FGV.pdf