No último dia 9 de abril, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o “marco legal dos jogos eletrônicos e jogos fantasia” no Brasil (PL 2796/2021), que segue agora para sanção presidencial. O texto inicial de Kim Kataguiri (União-SP), que inicialmente não contemplava a mesma gama de preocupações com proteção aos usuários (jogadores), foi devidamente reformulado pelo Senado com considerações relevantes acerca do tema. Falaremos, aqui, a respeito do texto final, aprovado pela Câmara com as inclusões realizadas pelo Senado.
Primeiramente, deve-se destacar a relevância de não se abarcar, no projeto, os jogos destinados a apostas e similares. Embora a decisão seja passível de questionamento pois, afinal, há jogos não destinados exclusivamente para apostas que contêm mecanismos internos similares a apostas em alguns dos desafios, missões ou “quests” que devem ser concluídos pelos jogadores. Similarmente, há mecanismos de resultado aleatório que podem premiá-los com itens exclusivos ou raros, e que geralmente dependem de dinheiro real para serem adquiridos: são as chamadas “loot boxes”, que estão presentes mesmo em jogos que não são voltados originalmente para apostas e azar.
Quanto às “loot boxes”, diversos estudos internacionais em Psicologia, Psiquiatria e áreas afins já têm considerado seus possíveis efeitos danosos, tendo sido até mesmo sugerido enquanto um problema de saúde pública em determinados países. Não tão distantes das redes sociais e de seus mecanismos de recompensa subjetivos, tais como “likes”, reações e outros meios de engajamento, as loot boxes também podem favorecer a dependência e, em se tratando de adquirir os “itens” virtuais com dinheiro real ou grandes passagens de tempo no jogo, podem conduzir a cenários de inadimplência e instigar quadros psiquiátricos mais graves.
No referido PL, contudo, há pouca clareza no que tange à classificação de tais mecanismos: excluir jogos digitais que envolvam algum meio de “resultado aleatório ou de prognóstico”, como o faz, é excluir praticamente milhares de jogos eletrônicos na atualidade, visto que tais itens de resultado aleatório são recorrentes. Ser ou não um jogo voltado exclusivamente ou quase inteiramente para isso não elimina o problema, e removê-lo da regulação apenas mantém os dilemas atuais. Ainda, deve-se questionar quem e como faria a avaliação, em casos de litígio, se um determinado jogo está ou não enquadrado na categoria, uma vez que o tema é técnico e demanda análise aprofundada de quem, de fato, joga.
No mais, seguimos aos aspectos econômicos de investimento e fomento à indústria: tendo esta sido a principal inquietação desde o início do PL, é no mínimo curioso que a definição de jogos eletrônicos (ou seja: softwares e páginas de internet) abranja, para efeitos da referida Lei, “o dispositivo central e acessórios, para uso privado ou comercial, especialmente dedicados a executar jogos eletrônicos”.
Afinal, argumentamos: o mercado de jogos digitais não é, em hipótese alguma, similar ao mercado de hardware (dispositivos físicos e, neste caso, especificamente consoles e similares, considerando o trecho “especialmente dedicados a executar”) que os executam. Além de demandarem profissionais muito distintos em tais setores, também necessitam de investimentos e equipamentos diferentes.
O próprio Ato de Concentração que aprovou a aquisição da Activision Blizzard pela Microsoft enfatiza que, no âmbito dos distribuidores, os agentes de mercado consultados reiteraram que seus consumidores percebem como intercambiáveis a distribuição física e digital de jogos, sendo “físico” o suporte (CD, DVD, fitas e afins) que contém o software internamente. Entretanto, ainda que considere os efeitos da aquisição por uma empresa que não somente atua no desenvolvimento de jogos, mas também de hardware para jogos (consoles, no caso), em momento algum o referido ato atribui equivalência entre tais setores. É indiscutível que sejam distintos, e muito embora o PL até pudesse regular ambos, deveria haver distinção entre os conceitos utilizados.
Outra preocupação econômica que pode advir das excelentes ponderações acrescidas pelo substitutivo do Senado quanto à regulação dos mecanismos e conteúdos em si é o possível desequilíbrio gerado entre desenvolvedores e distribuidores nacionais e estrangeiros. A Seção I e o Capítulo III do dispositivo fornecem embasamentos essenciais que inexistiam no texto anterior, principalmente para a proteção de crianças e adolescentes.
Em consonância com algumas recomendações de variados princípios de governança da internet e regulação de plataformas, tais como Santa Clara Principles 2.0 e The Aequitas Principles on Online Due Process, o novo texto sugere práticas de moderação de conteúdo para evitar práticas dicriminatórias, exploratórias e similares, bem como de mecanismos de denúncia, apelação, transparência e revisão de conteúdos submetidos à análise. Contudo, deve-se questionar se a aplicação do dispositivo será, de fato, para todos os jogos, desenvolvedores e distribuidores, mesmo internacionais, que atuem no Brasil. Pois, caso contrário, teremos um cenário de maiores restrições aos desenvolvedores brasileiros, em descompasso com os estrangeiros.
Já é sabido que jogos estrangeiros são predominantes dentre os jogados no Brasil. Se um PL objetiva fomentar a indústria nacional de jogos, deve garantir que as sugestões de restrição sejam aplicáveis, também, aos jogos estrangeiros. Entretanto, também é sabido que, mesmo jogos que não atuam oficialmente no país, com distribuidoras traduzindo seu conteúdo ao português e disponibilizando servidores locais, é possível acessar, por VPN, jogos que teoricamente ainda não foram distribuídos no país: assim foi, por exemplo, com o atual sucesso de MMORPG “Lost Ark Online”, um jogo russo que, de início, não estava disponível oficialmente no Brasil, mas conquistou uma legião de fãs brasileiros que o acessavam por VPN. Como o PL atenderia tais crianças, adolescentes e adultos, portanto?
Seguimos: diversas proteções, inclusive no que tange à privacidade e dados pessoais, são mencionadas na Seção I, abarcando não somente crianças e adolescentes, mas também adultos, sem distinção. Entretanto, as medidas de mitigação de outros danos presentes no Capítulo III, destinado à proteção de crianças e adolescentes, não mencionam adultos – por se tratar de capítulo dedicado ao público específico. Todavia, as considerações sobre moderação e análise devem ser estendidas a qualquer público, independentemente de sua faixa etária. Inclusive, o mesmo se aplica ao art. 17, que regula as “ferramentas de compras dentro dos jogos eletrônicos”. Além de indicar que as compras devem ser restringidas por padrão – o que será visto, provavelmente, como economicamente inviável –, no caso de confirmação da idade para efetuar determinada compra, a criança pode simplesmente inserir outra data de nascimento para que consiga concluí-la sem aval dos responsáveis.
No mais, pouco se fala sobre a responsabilidade pela devida transparência, por parte da empresa à qual pertence o jogo, dos mecanismos de design que incentive compras. Apesar de o art. 15 mencionar que “a concepção, o design, a gestão e o funcionamento dos jogos eletrônicos” devem ser compatíveis com o “superior interesse da criança e do adolescente”, que de fato constituem um grupo vulnerável, há insuficientes recomendações práticas do que pode ou não existir, inclusive para adultos. Tal insuficiência também é evidenciada em outros conteúdos sobre regulação de moderação quando, por exemplo, não é prevista uma periodicidade para a publicação de relatórios de transparência sobre ocorrências e denúncias de conteúdos impróprios e similares, contrariando algumas sugestões de princípios de governança.
Adicionalmente, a classificação indicativa ser atribuída pelo Estado, como ocorre com outros produtos audiovisuais (filmes) pela Ancine, é praticamente impossível para os jogos: embora seja indiscutível que estes também sejam bens culturais, audiovisuais e da informação, a velocidade de desenvolvimento e publicação destes é superior à dos filmes, o que tornaria impossível o mesmo método de classificação. Até mesmo em plataformas de disponibilidade de jogos para compra e download, como é o caso da Steam, muitos jogos seguem sem classificação indicativa, o que certamente deveria ser corrigido. Não obstante, deve-se repensar em como fazê-lo, considerando a diferença na velocidade de publicação destes bens, se comparados aos filmes.
Por último, trazemos a consideração mais polêmica: jogos não são plataformas – mas nem por isso não deveriam ser regulados como tais. Há inúmeras outras plataformas utilizadas por jogadores como formas de apoio durante os jogos (geralmente de interação por voz, como Discord, ou de transmissão de partidas, como a Twitch), mas que obedecem a outras lógicas de desenvolvimento. Os jogos digitais podem ter (no caso dos que possuem suporte on-line ou de interação com jogadores locais) chats de voz, vídeo ou texto, mas isso não os torna exatamente iguais às plataformas como Facebook, Instagram, Twitter e outras redes sociais.
Certamente, equipará-los momentaneamente às plataformas é necessário e poderá trazer benefícios para reduzir casos de discriminação, desinformação e outros crimes (inclusive financeiros), porém esta não será a melhor resposta regulatória definitiva por não abarcar todas as complexidades envolvidas que não estão necessariamente presentes nas outras plataformas. Mesmo os princípios internacionais para regulação de plataformas não trazem disposições específicas para jogos até o momento, e há somente alguns poucos dispositivos locais de países diferentes para questões envolvendo loot boxes, violência e afins, sem uma carta multissetorial e internacional como as citadas anteriormente ou outras, como Christchurch Call, Manila Principles etc. De todo modo, diante de um cenário de resposta regulatória ainda insuficiente, os jogos devem seguir sendo produtos, assim como as plataformas, de provedores de aplicação de internet e respondendo, como tais, ao Marco Civil, que agora está em rediscussão.
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