Regimes de emergência e o juízo sobre os motivos de sua decretação

  • Categoria do post:JOTA

Era 24 de fevereiro de 1914, uma terça-feira de Carnaval. Curiosamente, naquela mesma data celebrava-se o aniversário da Constituição. Fazia 23 anos de sua promulgação. Poucos dias antes, o jornal humorístico O Malho havia estampado satírica charge em sua capa que ironizava a coincidência entre as datas.

Na ilustração, o então presidente da República, Hermes da Fonseca, aparecia ao volante de um táxi denominado Brazil, circulando em meio aos foliões. Ao lado do veículo, uma figura cabisbaixa com cabeça de burro — o Zé Povo — portava um exemplar da Constituição. Outras personagens da elite política da época completavam a imagem.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Charges e sátiras desse tipo — especialmente as publicadas pela revista Careta — eram notoriamente incômodas ao marechal. Conta-se que tais provocações, somadas a um acalorado episódio ocorrido no Clube Militar, teriam motivado a decretação do estado de sítio em 4 de março de 1914. Segundo a justificativa oficial, tratava-se de conter “elementos subversivos” que pretendiam abalar a ordem pública “não só por meio de criminosa propaganda, mas também pela prática de atos característicos de rebelião”.

A decretação, além de determinar regime de censura à imprensa, deu suporte à prisão de diretores dos principais jornais críticos ao governo, bem como de outras figuras que lhe faziam oposição. No início dos trabalhos legislativos daquele mesmo ano, lavrou Rui Barbosa veemente protesto contra “a proscrição do espírito, da graça, da epigrama”. Segundo ele, foram “a anedota, a zombaria, a caricatura metidas no xadrez, pelo crime de não respeitarem os ridículos da atualidade, os seus abismos e os seus colossos de ridículo infinito”.

Na época, competia ao Congresso Nacional decretar estado de sítio “na emergência de agressão por forças estrangeiras ou de comoção interna”. No entanto, ao presidente da República cabia fazê-lo “não se achando reunido o Congresso e correndo a Pátria iminente perigo”.

A apreciação a posteriori pelo Legislativo do estado de sítio decretado, como em 1914, fazia-se durante sua vigência. Disso resultavam, nas palavras de Rui, “trabalhos parlamentares abafados pelo círculo de intimidação”, pairando “a ameaça de prisão, senão de pena maior, sobre a cabeça de cada um de nós, Senadores e Deputados”.

O desmedido uso do estado de sítio, com frágeis mecanismos de contenção e controle, indicia o viés autoritário que caracterizou o período da Primeira República. A transição do modelo praticado no Império, de coordenação mais fluida entre os poderes, para um sistema político permeado de impasses institucionais acabou por cobrar preço elevado. Passou-se a utilizar instrumental concebido para debelar insurreições e revoltas intestinas como mecanismo para coibir críticas, contestações e divergências em relação ao governo.

Não surpreende, portanto, que o Judiciário fosse instado a examinar a pertinência de tais medidas em face de fatos de menor expressão, corriqueiros, que nem de longe se amoldavam às noções de agressão estrangeira ou comoção interna.

A propósito dessa questão, adotou o STF, em diversos julgados[1], entendimento que reconhecia ao Judiciário poderes para conhecer apenas “dos efeitos ou fatos decorrentes de atos dos dois outros poderes, porventura lesivos dos direitos individuais, e jamais dos motivos ou razões, pelas quais foram tais atos adotados ou postos em execução”. A avaliação sobre as causas e justificativas que informam a decretação estaria reservada ao Legislativo, “juiz privativo para conhecer e julgar” tais atos, “aprovando ou suspendendo o estado de sítio”.

Tal orientação, que recomenda aos tribunais posição deferente às razões políticas que amparam regimes de emergência, encontra paralelo em relevantes experiências constitucionais estrangeiras[2]. Cuidar-se-ia, nesse sentido, de juízo que implica ponderar circunstâncias conjunturais, riscos à estabilidade institucional e necessidades emergenciais de preservação da ordem pública.

Recairia, por conseguinte, no terreno próprio das escolhas políticas sob a responsabilidade dos Poderes constituídos que as aprovam e executam. Não por acaso, sequer a atmosfera de sátiras e caricaturas que tanto inquietara Hermes da Fonseca — em cenário que, segundo Pedro Lessa, pairava “a mais completa tranquilidade, quando nenhum sinal se observa da mais leve comoção intestina” — serviu como justificativa para que o STF apreciasse os motivos do decreto.

Isso não significa, todavia, que as medidas de emergência empregadas ficam imunes ao controle judicial. Cabe a juízes e tribunais apreciar a observância dos procedimentos formais para sua decretação, a licitude das providências executadas e, sobretudo, lesões e ameaças concretas a direitos fundamentais.

As limitações inerentes à sindicabilidade judicial da motivação subjacente ao estado de sítio inspiraram o constituinte a reforçar freios institucionais. Desse modo, não apenas foi erigido modelo alternativo de alcance mais restrito — o estado de defesa —, mas também se passou a exigir prévia autorização congressual para a decretação do estado de sítio.

Em ambos os regimes — estado de defesa e estado de sítio —, exige-se que o presidente consulte previamente o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional. Deverá necessariamente expor e debater com tais colegiados suas razões para tencionar o emprego de medidas de emergência.

Ainda que o Conselho de Defesa Nacional seja dominado por ministros nomeados pelo presidente da República, sugerindo certo alinhamento político, o Conselho da República é dotado de significativa pluralidade. Conta com 6 parlamentares, incluindo os presidentes de Câmara e Senado, e 4 cidadãos brasileiros eleitos pelas Casas Legislativas.

Conforme dispõe a Lei 8.041, de 5 de julho de 1990, as reuniões do Conselho da República estão condicionadas à presença da maioria absoluta (8) de seus membros. Ou seja, não ocorrem ao sabor da mera vontade do chefe do Poder Executivo. A ausência dos parlamentares e dos cidadãos eleitos pelas Casas Legislativas já bloquearia, de plano, sua realização. Obstruiria, por conseguinte, o iter de decretação do estado de defesa ou do estado de sítio. Tais formalidades visam justamente conter excessos, como os cometidos no passado, obstando a adoção de medidas de força, com motivação espúria ou pífia, por essa via.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

A orientação firmada pela jurisprudência — que, a propósito, reconhece a impertinência de ingerência judicial quanto à aferição dos motivos da decretação — acabou por acentuar a necessidade de soluções constitucionais que deslocassem a contenção para o plano procedimental e político.

Dessa diretriz resultou a conformação de rito mais complexo e prudente, que, de um lado, mantém o tradicional entendimento da jurisprudência e preserva legítima esfera de autonomia aos poderes políticos, inclusive ao presidente da República, para cogitar, debater, esboçar e avaliar a adoção de medidas de emergência.

Tal aspecto, para além do âmbito estritamente jurisdicional, projeta-se sobre governantes que assumem funções de relevo. Integra seu horizonte de consciência, ao insinuar, ante circunstâncias que reputam extremas, haver margem de apreciação para decidir sobre o emprego de tais instrumentos constitucionais.

De outro lado, as formalidades que compõem o rito assumem o papel fundamental de refrear impulsos autoritários e impedir que frustrações pessoais — ainda que motivadas pelo humor irreverente dos chargistas brasileiros ou por eventual insucesso eleitoral — degenerem em regimes de exceção.


[1] Ver a propósito a decisão proferida no HC n° 3.527/DF, Rel. Min. Amaro Cavalcanti, Revista do Supremo Tribunal Federal, Vol. 1, 1ª parte, 1914, p. 287. No mesmo sentido, HC n° 300/RJ, Rel. Min. Costa Barradas, Revista O Direito, v. 20, t. 58, 1892, p. 302; HC n° 1.063/RJ, Rel. Min. Ferreira da Silva, Obras completas de Rui Barbosa (1898), v. 25, t. 4, 1948, p. 331.

[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 14ª ed., 2014, p. 169; em sentido semelhante, ver NÍ AOLÁIN, Fionnuala; GROSS, Oren. Law in Times of Crisis: emergency powers in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 153.