O objetivo deste artigo é analisar breve e criticamente as principais mudanças tributárias introduzidas no setor de energia pela reforma tributária sobre o consumo. Para tanto, este artigo se divide em duas partes. A primeira sintetiza as principais inovações normativas na tributação do setor de energia decorrentes da reforma tributária.[1] A segunda examina a compatibilidade dessas novas normas com o princípio da neutralidade, previsto no art. 156-A, § 1º da Constituição.
A nova tributação do setor de energia inaugurada pela reforma tributária
Antes da EC 132/23, a tributação no setor de energia era marcada por complexidade e ausência de neutralidade, seja no tocante à tributação pelo ICMS e ISS, seja no tocante à tributação pelo PIS/Cofins. Nesse sentido, conforme Rodrigo Caldas, o Setor convive com controvérsias atinentes a esses quatro tributos.[2]
Em primeiro lugar, relativamente ao ICMS, existe uma diversidade de legislações estaduais e convênios que disciplinam a tributação no Setor de Energia, muitos dos quais são objeto de controvérsia entre fisco e contribuinte.[3] A título meramente ilustrativo, controverte-se sobre a inclusão da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e da Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST) na base de cálculo do ICMS incidente sobre a energia elétrica, nas situações em que tais tarifas constam na fatura de energia como um encargo a ser pago diretamente pelo consumidor final. O tema é objeto da ADI 7195. De igual modo, controverte-se acerca do direito ao crédito nas operações interestaduais com energia.
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Em segundo lugar, relativamente ao ISS, há dúvidas sobre o sujeito ativo em projetos de engenharia complexos visando à construção da infraestrutura necessária para a geração de energia elétrica, o que conduz à realização de negociações diretas com municípios para atrair investimentos.[4]
E, em terceiro lugar, relativamente ao PIS/Cofins, há diversas discussões atinentes ao direito de crédito para empresas do setor de energia.[5] Apenas a título ilustrativo, o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infra-Estrutura (REIDI), instituído pela Lei 11.488/2007, apresenta dificuldades práticas, como a aprovação de projetos tardiamente, o que afeta a suspensão da exigência do PIS/Cofins no caso de venda ou importação de máquinas, aparelhos, instrumentos e equipamentos, novos, e de materiais de construção para utilização ou incorporação em obras de infraestrutura destinadas ao ativo imobilizado.
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A EC 132/23 e a LC 214/25 buscaram alterar o cenário acima descrito. Uma das preocupações da reforma tributária no setor de energia foi reduzir a carga tributária sobre a energia elétrica, insumo fundamental para a indústria. Tal redução seria compensada não apenas pela arrecadação decorrente do Imposto Seletivo incidente sobre o álcool e o fumo, mas também dividindo-se a carga tributária entre todas as demais cadeias de produtos.
Para alcançar maior neutralidade, simplicidade e transparência no Setor de Energia, a LC 214/25 detalhou todos os aspectos necessários à incidência do IBS/CBS, entre os quais os seguintes merecem destaque[6]:
(i) Quanto ao fato gerador do IBS/CBS, esse não será mais a circulação de mercadoria ou a obtenção de receita decorrente da venda de energia, mas sim a realização de qualquer operação onerosa e, no caso de operações entre partes relacionadas, operações sujeitas à apreciação econômica. Relativamente ao aspecto temporal do fato gerador, a LC 214/25 especificou que sua ocorrência se dá “no momento em que se torna devido o pagamento” (art. 10, § 3º);
(ii) Quanto à base de cálculo do IBS/CBS, a própria LC 214/25 manteve a inclusão de encargos e tarifas como a TUST e a TUSD, ao prever que “O valor da operação compreende o valor integral cobrado pelo fornecedor a qualquer título, inclusive os valores correspondentes a: (…) V – tributos e preços públicos, inclusive tarifas, incidentes sobre a operação ou suportados pelo fornecedor, exceto aqueles previstos no § 2º deste artigo” (art. 12, § 1º);
(iii) Quanto ao local da operação para fins de IBS/CBS, nas operações com energia elétrica, a LC 214/25 reputa que esse é tanto o local da entrega ou disponibilização, nas operações destinadas a consumo, quanto o local do estabelecimento principal do adquirente nas demais operações (art. 11, § 7º);
(iv) Quanto à responsabilidade pelo recolhimento do IBS/CBS, essa depende da modalidade de contratação da energia (mercado cativo vs. livre). Nesse sentido, a distribuidora é a responsável no ambiente regulado/cativo, enquanto o alienante é o responsável na venda para consumo no ambiente livre e o adquirente é o responsável nas aquisições multilaterais (mercado de curto prazo, liquidadas pela CCEE);
(v) Quanto ao aproveitamento de créditos do IBS/CBS, tudo o que uma empresa adquire dá direito ao crédito, uma vez que com a Reforma Tributária abandonou-se a ideia de consumo de uma empresa – quem consome é o indivíduo. Conceitualmente, a empresa não é contribuinte do IBS/CBS: com o nascimento do fato gerador nasce também o direito a crédito, de sorte que crédito e débito se anulam. Ademais, o crédito é vinculado ao pagamento.
Vale ainda apontar que, quanto à fiscalização do IBS/CBS, essa será feita pelo Comitê Gestor, reduzindo o poder de autoridades locais. A título ilustrativo, o agente fiscal não terá mais o poder de negar créditos de exportação e será menos suscetível a pressões políticas e argumentos como falta de caixa para negar devoluções de créditos, pois a gestão da arrecadação será centralizada e desvinculada dos caixas dos entes.
Ademais, para implementação de todas essas mudanças, a EC 132/23 desenhou um modelo de transição que não permite o aumento da carga tributária em relação ao PIB durante 10 anos, o que também tende a remover o incentivo de agentes fiscais para criarem “teses” ou interpretarem os dispositivos de forma a ampliar a arrecadação ou restringir créditos. A única forma de aumentar a arrecadação geral será aumentando a alíquota padrão, o que, por incidir sobre todos os produtos e ser percebido na nota fiscal, tende a criar uma trava política a aumentos excessivos.
Uma vez apresentadas as principais normas atinentes à tributação do consumo no setor de energia, surge a seguinte indagação: a nova tributação no setor de energia é compatível com o princípio da neutralidade, previsto no art. 156-A, § 1º, da Constituição? À primeira vista, a resposta é afirmativa. É o que se passa a examinar.
Neutralidade e a nova tributação do setor de energia
Como já tive a oportunidade de me posicionar, o novo paradigma da tributação sobre o consumo adota como ponto de partida quatro princípios fundantes. SIMPLICIDADE indica facilidade e segurança jurídica para o contribuinte pagar seus tributos e cumprir seus deveres. TRANSPARÊNCIA confere visibilidade à complexa relação entre direito, economia e política, de modo a identificar o verdadeiro titular do ônus da carga tributária e aprofundar o exercício da cidadania fiscal nas eleições. NEUTRALIDADE para que a tributação não atrapalhe o ambiente de negócios, incentivando a eficiente alocação do investimento e prevenindo a entropia do planejamento tributário. EQUIDADE para indicar que a tributação deve convergir para isonomia: de um lado, entre as pessoas físicas; de outro, entre as pessoas jurídicas.[7]
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Para o objeto deste artigo, releva examinar o princípio da neutralidade, objeto de positivação explícita na Constituição pela Emenda Constitucional nº. 132/23, em dispositivo assim enunciado:
Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
- § 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte: (…).
Como defendido por André Mendes Moreira, existem duas espécies de neutralidade tributária. Em primeiro lugar, pode-se falar de neutralidade vertical. Para o autor, essa é exclusiva dos IVAs e “se refere ao direito de compensar o imposto recolhido na etapa anterior, de modo que, ao cabo das operações de circulação de mercadoria ou da prestação de serviço, a alíquota efetiva da exação seja sempre equivalente àquela nominalmente fixada em lei.”[8]
Em segundo lugar, pode-se falar de neutralidade horizontal, aplicável a todos os tributos. Para o autor, “basicamente, trata-se do princípio da isonomia, uma vez que predica a sujeição de bens idênticos ou similares a alíquotas iguais.”[9] Assim, André Mendes Moreira conclui que o objetivo imediato da neutralidade vertical é evitar a cumulatividade tributária, enquanto o objetivo imediato da neutralidade horizontal é equalizar a tributação de bens ou serviços similares.[10]
De modo mais genérico, pode-se afirmar que um tributo é neutro se ele não cria um viés que possa influenciar um contribuinte a escolher um investimento ou um curso de ação em detrimento de outro.[11] Por exemplo: se o imposto incidente sobre a venda de um picolé simples for inferior àquele incidente sobre a venda de paletas mexicanas, assumindo que a demanda pelos dois produtos é elástica e que o seu custo de produção é o mesmo, a incidência tributária pode distorcer a escolha do consumidor entre qual produto adquirir, incentivando-o a consumir o picolé simples. Nesse contexto, um tributo neutro é aquele que permite que a escolha de investimento ou ação do contribuinte seja feita com base em considerações de mercado ou pessoais, sem a influência das leis tributárias.
Conquanto singelas, essas definições são suficientes para responder à pergunta formulada no tópico precedente, qual seja, se a nova tributação do consumo no setor de energia, introduzida pela reforma tributária, é compatível com o princípio da neutralidade, previsto no art. 156-A, § 1º, da Constituição. À primeira vista, a resposta é afirmativa.
O princípio da neutralidade tributária, que informa o IBS e a CBS (art. 156-A, § 1º, caput, da Constituição), proíbe que tais tributos sejam utilizados como obstáculo à organização da produção ou escolha do consumidor, exceto na hipótese de haver uma autorização constitucional expressa.
É isso que ocorre, por exemplo, com o estabelecimento de um regime fiscal favorecido para biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, já que, nos termos do art. 225, inciso VIII, da Constituição, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente, incumbe ao Poder Público “manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam o art. 195, I, ‘b’, IV e V, e o art. 239 e aos impostos a que se referem os arts. 155, II, e 156-A.”
Fora das hipóteses constitucionalmente autorizadas, contudo, a Constituição assegurou que a energia será tributada de modo a preservar a neutralidade, vedando, implicitamente, a fixação de alíquotas distintas para energias geradas por diferentes matrizes energéticas ou consumidas em distintos horários ao longo do dia, e assegurando o direito ao crédito ao adquirente de energia independentemente de onde essa será empregada.
Tanto é assim que, com a reforma tributária, o constituinte e o legislador complementar não apenas reconheceram a essencialidade da energia elétrica, ao proibirem a incidência do Imposto Seletivo sobre as operações a ela atinentes (art.153, § 6º, inciso I, da Constituição e art. 413, inciso II, da Lei Complementar 214/25), como também as peculiaridades do setor de energia, entre as quais a existência de variação, ao longo do dia, tanto das fontes utilizadas para geração de energia (hídrica, solar, eólica, térmica, nuclear) quanto do seu preço e consumo; a utilização de conceitos próprios da física que refletem diretamente na tributação, como, por exemplo, os conceitos de alta e baixa tensão, atrelados à perda maior ou menor de energia, respectivamente; e a regulação própria do setor elétrico no Brasil pelos órgãos competentes (ANEEL, ONS, CCEE).[12] E assim o fizeram porque entenderam que a tributação no setor de Energia não deve influenciar as escolhas do consumidor final nem impactar a organização dos seus negócios.
As considerações precedentes permitem concluir que as mudanças introduzidas pela reforma tributária no setor de energia buscaram preservar a neutralidade tributária. Embora à primeira vista referido princípio esteja sendo observado, é preciso ressaltar a importância da legislação infralegal que visará a implementar a reforma em sua inteireza, para que também ela se mantenha em conformidade à neutralidade.
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[1] As principais inovações normativas na tributação do Setor de Energia decorrentes da Reforma Tributária foram objeto de um debate aprofundado entre Rodrigo Caldas, advogado com vasta experiência em posições de liderança nas áreas Jurídica, Tributária e de Relações Governamentais em grandes empresas, e formação internacional (LLM em Taxation em Londres, Certificate em Public Policy em Harvard e AFP pela Wharton School of Business); e, na posição de responsável por trazer as perspectivas práticas do mercado de energia, Arthur Chaves, atual Head Jurídico de comercialização na empresa de soluções sustentáveis Casa dos Ventos, com experiência de 13 anos no mercado de energia renovável, graduado em direito pela UFRJ, pós-graduado em direito empresarial pela Universidade Cândido Mendes. A íntegra do debate está disponível no Youtube no Canal “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária” – Aula 12: O que muda no Setor de Energia? Rodrigo Caldas e Arthur Chaves. Curso sobre a Reforma Tributária:
[2] CALDAS, Rodrigo. “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária – Aula 12: O que muda no Setor de Energia? Rodrigo Caldas e Arthur Chaves”. Curso sobre a Reforma Tributária. Disponível aqui, acesso em 29.05.2025.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Kafka, alienação e deformidades da legalidade: exercício do controle social rumo à cidadania fiscal. 2ª edição São Paulo: Editora Max Limonad, 2020. p. 6.
[8] MOREIRA, André Mendes. Neutralidade, valor acrescido e tributação. 2ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 30.
[9] MOREIRA, André Mendes. Neutralidade, valor acrescido e tributação. 2ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 32.
[10] MOREIRA, André Mendes. Neutralidade, valor acrescido e tributação. 2ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 33.
[11] KAHN, Douglas A. The Two Faces of Tax Neutrality: Do They Interact or Are They Mutually Exclusive. Northern Kentucky Law Review, v. 18, 1990, pp. 1-19 (11).
[12] CALDAS, Rodrigo. “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária – Aula 12: O que muda no Setor de Energia? Rodrigo Caldas e Arthur Chaves”. Curso sobre a Reforma Tributária. Disponível aqui, acesso em 29.05.2025.