Reforma tributária e o setor de serviços: muitos desafios à vista

  • Categoria do post:JOTA

A reforma tributária tem sido objeto de muita atenção e debates acalorados em todo o país. Com o objetivo principal de simplificar o sistema tributário brasileiro, tornando-o mais transparente, eficiente e equitativo, a PEC 45 propõe a unificação de tributos federais e a reformulação do sistema de impostos estadual (ICMS) e municipal (ISS) sobre o consumo, sob modelo de Imposto sobre o Valor Adicional (IVA) dual, composto por: uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) federal, e um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) a nível estadual e municipal. Assim, haverá a substituição de PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS por um sistema mais enxuto e menos burocrático, com esses dois novos tributos.

Contudo, os desafios que a reforma pode trazer para o setor de serviços não podem ser subestimados, eis que pode representar um aumento substancial de carga tributária para o setor que contribui com uma fatia significativa do Produto Interno Bruto (PIB) do país e é um grande gerador de empregos.

A alíquota exata do sistema IVA dual sobre os serviços ainda não foi definida, mas o próprio Ministério da Fazenda estima que a alíquota fique em torno de 27% ou, com os benefícios incluídos pelo Senado, poderia chegar a 27%. A alíquota final deverá implicar a manutenção da arrecadação total dos tributos atuais, de tal maneira que, do ponto de vista de carga tributária x PIB, não haverá redução de carga tributária.

Com base nas previsões atuais, utilizando-se a alíquota de 27% do IVA, vemos um claro aumento na carga tributária em relação ao setor de serviços. Houve setores de serviços que foram beneficiados com tratamentos tributários especiais ou com reduções de alíquota, mas que, fora os serviços intelectuais, não serão objeto do presente artigo. A título de exemplo, o §1ª do art. 9º da PEC/45 prevê que, para alguns setores específicos, será concedida uma redução da alíquota da CBS e do IBS em 60%. O referido artigo delega para a Lei Complementar definir as operações com bens ou serviços que gozarão da redução, devendo ser referentes a serviços de educação, saúde, transporte público coletivo, atividades artísticas e culturais nacionais, entre outros.

Uma boa parte das empresas prestadoras de serviços utilizam-se da sistemática do Lucro Presumido, cujas alíquotas de PIS e Cofins combinadas correspondem a 3,5%. Essas prestadoras também se sujeitam ao ISS, cuja alíquota máxima atual é de 5%. Neste cenário, a carga tributária sobre a prestação de serviços sairia dos atuais 8,65% para 27%, ou seja, um aumento de 212%.

No caso das empresas prestadoras de serviços que adotam o Lucro Real, as alíquotas de PIS/Cofins combinadas correspondem a 9,25%, e estão sujeitas ao mesmo ISS, totalizando 14,25% de carga tributária sobre os serviços prestados. Neste caso, o aumento seria equivalente a 89,5%.

Se considerarmos o desconto sobre a alíquota aprovada pelo Senado para os prestadores de serviços de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, correspondente a 30%, o aumento da carga tributária para prestadores sob o Lucro Presumido seria de 118%, e para os sob o Lucro Real, de 32,6%. Ou seja, o benefício reconhecido pelo Senado reduz o aumento de carga tributária, porém ele ainda continua sendo significativo.

Representantes do Ministério da Fazenda têm repetido que não haveria real aumento de carga tributária para os prestadores de serviços, já que seus principais clientes seriam empresas, que poderiam tomar o crédito do IVA dual e, assim, os tributos cobrados pelos prestadores de serviços não seriam custo, mas sim, crédito para essas empresas. Nesse cenário, apenas a menor parte dos serviços seriam prestados para quem não possa tomar os créditos.

O ponto que esse raciocínio de “crédito pleno” na prestação de serviços desconsidera é a dificuldade que os prestadores de serviços têm para estabelecer seus preços perante as empresas. Assim, inúmeras vezes os prestadores de serviços são pressionados por seus clientes a reduzir ao máximo o preço total dos serviços para continuarem fazendo negócios com eles. Ora, existe a possibilidade de uma boa parte do aumento da carga tributária supostamente “creditável” ser assumido pelo próprio prestador de serviços, reduzindo sua lucratividade, ou mesmo inviabilizando, com o tempo, a continuidade de suas atividades.

O aumento de carga tributária ainda implicará o aumento de preços dos serviços para os consumidores pessoas físicas, bem como para entidades que não se aproveitem dos créditos tributários do IVA dual, como são os casos de fundos de investimento, fundos de pensão e entidades sem fins lucrativos.

Do ponto de vista da capacidade contributiva, o aumento de carga tributária que se projeta com a reforma tributária poderia ser considerado como violador do princípio constitucional da capacidade contributiva? A Constituição Federal determina a graduação dos impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte, nos termos do art. 145, § 1º, da Constituição Federal.

Esse princípio é fundamental para os tributos sobre renda e patrimônio, nos quais é mais fácil identificar a “capacidade econômica” individual de cada contribuinte. No entanto, para tributos sobre o consumo, como é o caso do IVA dual, fica difícil a mensuração de qual o limite da capacidade econômica do contribuinte que estaria sendo violado num aumento significativo da carga tributária sobre o consumo de serviços.

Outro aspecto importante é a inclusão de atividades que antes não eram tributados. A reforma pode ampliar a base tributária, englobando atividades que anteriormente estavam isentas ou sujeitas a uma tributação reduzida, como é o caso das locações de bens móveis e imóveis. No caso de locações, por exemplo, as empresas estão sujeitas à tributação por PIS/Cofins, porém isentas de ISS, já que o Supremo Tribunal Federal, há muitos anos, declarou que locação não correspondia à prestação de serviços.

Há ainda que se considerar a aplicação de uma única alíquota para mais diferentes situações, equiparando-se a tributação de serviços à tributação de, por exemplo, produtos de vestuário. Será que, ao tratar com uma única alíquota, situações absolutamente distintas, haveria violação ao princípio da isonomia, previsto pelo art. 150, II, da Constituição Federal? Este princípio proíbe o Poder Público de instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente e, por consequência, em instituir tratamento igual para contribuintes que não estejam em situação equivalente. Em relação a tributos sobre o consumo, é difícil a aplicação do princípio da isonomia para combater o uso de alíquotas uniformes – será possível, sim, discutir os casos em que uma determinada situação “A” esteja abrangida por um benefício ou tratamento especial, enquanto uma situação “B” equivalente não esteja.

Outro ponto que o Congresso deveria considerar é a criação de mecanismos de compensação para mitigar o impacto sobre os serviços mais intensivos em mão de obra. Uma possibilidade seria, por exemplo, permitir o crédito presumido de IVA dual sobre o mais oneroso insumo do setor de serviços: a mão de obra. Isso porque, ao contrário das indústrias, em geral, os prestadores de serviços não possuem muitos insumos passíveis de creditamento, sendo a folha de salários um dos maiores gastos do setor. O setor de serviços emprega uma grande quantidade de trabalhadores, e um aumento nos custos tributários pode afetar a geração de empregos. Portanto, seria importante estabelecer políticas de incentivo ao emprego nesse setor.

Agora, colocando-se de lado a discussão sobre o aumento de carga tributária: a reforma tributária poderá implicar benefícios para o setor de serviços?

De imediato, não, na medida em que as empresas, por anos, irão continuar a apurar os tributos atuais PIS/Cofins e ISS, e terão, a partir de 2026, que cumprir as obrigações acessórias que sejam requeridas na implementação do IVA dual. No entanto, ao final do período de transição, em havendo a prometida simplificação das obrigações acessórias para a apuração de IBS e CBS, poderá haver redução de custos de conformidade para as empresas. A ver.

A reforma tributária é vista como necessária para garantir a sustentabilidade fiscal do país e promover um ambiente de negócios mais favorável, porém, seus impactos sobre o setor de serviços no Brasil são complexos e variados. É imperativo, assim, que sejam encontrados mecanismos que mitiguem os impactos negativos sobre o setor de serviços, uma vez que este é um motor essencial para o crescimento econômico e a geração de emprego no Brasil.

O cenário é de expectativa e cautela, com o setor de serviços aguardando as definições que virão com as leis complementares e seu desdobramento na prática. A busca por um sistema tributário mais simples e justo é um anseio comum, mas a transição deve ser conduzida de maneira a preservar a competitividade e a viabilidade dos prestadores de serviços, elementos-chave para a sustentabilidade econômica do país.

*

Este artigo é parte integrante da série “A reforma tributária por elas”. A série, sob a
coordenação de Luiza Leite, faz parte do projeto “Mulheres no Tributário”