No último dia 8 de novembro, o Senado Federal aprovou a PEC n. 45/2019, com a Reforma Tributária. O assunto foi noticiado aqui. Foram feitas alterações no texto oriundo da Câmara dos Deputados, pelo que a PEC voltou para nova apreciação desta última, como determina o art. 60, § 2º, da CF.
O referido dispositivo constitucional já rendeu diversos comentários nesta coluna. Restou explicado aqui que se trata da manifestação pura (ou simétrica) que o bicameralismo brasileiro assume quando o assunto é a reforma da Constituição: as duas Casas Legislativas precisam concordar sobre o mesmo texto, sem que haja a preponderância da primeira Casa sobre a segunda Casa, diferentemente do que ocorre no processo legislativo ordinário. Exige-se absoluta consonância entre ambas para a aprovação de PECs.
Essa sistemática do art. 60, § 2º, da CF – apelidada de “ping-pong” – acaba se tornando um problema, pois as idas e vindas da proposição de uma Casa para outra podem acabar se repetindo ad infinitum, dado que os constituintes de 1988 não trouxeram uma “trava” ou qualquer outro meio de solução para os impasses entre Câmara e Senado. Isso foi explicado aqui, bem como se apresentou o modelo americano para tratar desse problema neste outro texto.
Pois bem. A coluna de hoje se dedica a comentar a alternativa encontrada no Brasil para contornar a questão do art. 60, § 2º, da CF: o costume constitucional chamado de “fatiamento” de PECs. O assunto vem a calhar precisamente porque tudo indica que é isso o que ocorrerá com a Reforma Tributária.
Deve-se começar explicando que o fatiamento consiste na promulgação parcial do texto da PEC, eliminando dele a matéria que não é consensual entre as duas Casas Legislativas. A parte não promulgada é autuada sob a forma da chamada “PEC paralela”, que continua tramitando enquanto subsistir a vontade de discussão da proposta. Com isso, o que já é consenso entre as duas Casas pode ser promulgado mais rapidamente.
A adoção do fatiamento de PECs, como solução para fazer cessar os reenvios de uma Casa para outra, se deu a partir de uma prática costumeira. Não há previsão expressa em quaisquer dispositivos normativos. Trata-se da estabilização de uma interpretação legislativa da CF e das normas regimentais surgida no Senado Federal, e fruto de uma evolução acidentada das práticas.
O entendimento foi viabilizado pela compreensão de que é permitido usar os destaques (para votação em separado) por ocasião da votação de PECs, como ocorreu pela primeira vez na PEC n. 2/1993. Por intermédio desse expediente (o destaque) previsto no art. 312 e seguintes do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), é possível desagregar o texto completo de artigo, inciso ou alínea da proposição (ou mesmo meras expressões) com o objetivo de submeter tal matéria à votação separada do texto básico. O destaque é uma típica tática parlamentar já explicada aqui.
A parte destacada precisa ter autonomia em relação ao texto remanescente, que também deve continuar fazendo sentido mesmo sem o trecho apartado. Na prática, tal destaque faz as vezes de uma emenda supressiva e viabiliza a retirada de dispositivos da proposição que já está em vias de votação. Se, no momento em que os destaques forem votados, não for alcançado o quórum, os trechos destacados são rejeitados e definitivamente retirados do texto.
Tendo-se entendido que os destaques são possíveis em relação às PECs, o passo seguinte foi a compreensão de que o texto aprovado – aquele que, votado em dois turnos, alcançou 3/5 dos votos em cada Casa – cumpriu as exigências constitucionais e pode ser promulgado (art. 60, § 3º, da CF).
Em uma leitura mais rigorosa da CF, a interpretação legislativa que viabilizou a promulgação fatiada de PECs seria inconstitucional, por infringir a lógica de que as decisões das duas Casas Legislativas precisam ser perfeitamente confluentes.
Assim, qualquer alteração feita por uma das Casas no texto de uma PEC oriunda da outra Casa deveria implicar na devolução do texto para nova apreciação da outra Casa. Por exemplo, se o Senado mexe na proposta – seja por adição, modificação ou supressão –, a PEC oriunda da Câmara deve ser a essa Casa devolvida para nova deliberação.
No entanto, prevaleceu entre os senadores o entendimento no sentido de que o destaque é diferente de uma emenda para os fins do art. 60, § 2º, da CF, e que tradicionalmente são admitidas “emendas supressivas” nos estágios avançados das discussões legislativas. Inclusive, assim estava previsto no art. 29 do Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988.
Em resumo, a interpretação legislativa foi a de que a rejeição da matéria destacada em PEC não obriga o retorno do texto remanescente, que foi aprovado, para nova apreciação pela outra Casa Legislativa. A rigor, o entendimento não é diferente do que já tinha sido decidido pelo STF ainda na ADC n. 3, que dispensou o retorno à outra Casa diante de emendas de redação.
A prática do fatiamento teve sua constitucionalidade chancelada pelo STF por ocasião da ADI n. 2.031. Nesse caso, foi suscitada a violação ao art. 60, § 2º, da CF, porque, do texto promulgado da EC nº 21/1999, foram suprimidas duas expressões que constavam do texto da PEC aprovada pelo Senado, mas foram rejeitadas pela Câmara.
A primeira delas foi quanto ao art. 75, § 1º, do ADCT. A Câmara dos Deputados suprimiu a expressão “ou restabelecê-la” que havia no texto aprovado pelo Senado (após “reduzi-la”). Aqui, o STF entendeu que inexistia inconstitucionalidade porque a alteração não implicou uma “mudança substancial” do sentido daquilo que foi aprovado no Senado Federal.
A segunda foi em relação ao art. 75, § 3º, do ADCT. A Câmara eliminou a expressão “hipótese em que o resultado da arrecadação verificado no exercício financeiro de 2002 será integralmente destinado ao resgate da dívida pública federal” que havia no final do texto aprovado pelo Senado. Tratava-se de uma condição à autorização dada para a União emitir títulos da dívida pública.
Nesse ponto, o STF entendeu que houve violação ao art. 60, § 2º, da CF, porque a parte suprimida não tinha autonomia em relação à primeira parte do dispositivo. Ao eliminar a expressão, a Câmara tinha tornado a autorização incondicionada. Por isso, a proposta deveria ter retornado ao Senado Federal.
A ADI foi julgada parcialmente procedente e o referido art. 75, § 3º, do ADCT, foi declarado inconstitucional. Do referido julgado, então, restou o critério de que o fatiamento de PEC não implica violação ao art. 60, § 2º, da CF, sempre e quando o texto suprimido por uma das Casas tenha autonomia e não prejudique o sentido ou compreensão do remanescente.
O mesmo entendimento foi novamente adotado por ocasião da ADI n. 3.367, que tinha por objeto a EC n. 45/2004 (Reforma do Poder Judiciário): concluiu-se pela desnecessidade de, ante a supressão de dispositivo pelo Senado, a proposta ser reapreciada pela Câmara. E novamente na ADI n. 2.666.
O caminho dos destaques para viabilizar a promulgação parcial resolve o problema do “ping-pong” ad infinitum, mas tem o inconveniente de que a rejeição dos trechos incorre no princípio da irrepetibilidade do art. 60, § 5º, da CF. Com isso, não poderá ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
Ocorre que, por vezes, faltam poucos apoios ou é diminuta a divergência a ser superada para a aprovação dos dispositivos destacados, não se justificando o impedimento para a sua apreciação na mesma sessão legislativa. Daí o surgimento da prática legislativa chamada de “PEC paralela”: em vez da simples rejeição, os trechos são separados para que sejam ultimados os debates e as negociações necessárias para superar o desacordo.
A possibilidade jurídica dessa providência vem da analogia com o instituto do veto parcial, pelo qual o presidente da República sanciona parte do projeto, que se torna lei, e a parte vetada, com as respectivas razões, é devolvida para apreciação do Congresso Nacional. No caso da EC, a parte aprovada é promulgada e a pendente continua em discussão.
Assim, após algumas experiências anteriores acidentadas, o primeiro fatiamento nesses moldes da conformação atual ocorreu por ocasião da PEC n. 67/2003 (oriunda da PEC nº 40/2003 na Câmara dos Deputados), que propunha uma Reforma da Previdência e recebeu diversas emendas pelos senadores. Tal proposta deu origem à EC n. 41/2003.
Na época, a conclusão pela continuidade da tramitação de determinados temas foi fruto de um amplo acordo entre os parlamentares e o fatiamento foi fundamentado nos arts. 133, inciso IV, e 314, inciso VIII, do RISF, que permitem o destaque para proposição em separado. A partir desse fatiamento, foi apresentada a PEC n. 77/2003, a PEC paralela, que depois acabou virando a EC n. 47/2005.
Como se vê, o fatiamento e o regime das PECs paralelas são frutos de grandes acordos políticos. A prática virou tendência e se consolidou como instituição não escrita do Congresso Nacional. A Reforma Tributária implementada pela EC n. 42/2003 também foi fruto do fatiamento da PEC n. 74/2003 (PEC n. 41/2003 na Câmara dos Deputados) na PEC n. 74-A/2003.
Como explicado acima, existe uma forte crítica quanto ao fatiamento desde uma leitura mais “purista” da CF. Para Gabriel Dezen Junior, por exemplo, a promulgação fatiada é inconstitucional porque “(…) o texto final da emenda é obtido a partir do seu retalhamento, jungindo-se as partes do texto aprovado na Câmara e no Senado sobre as quais não houve alteração de mérito e construindo-se um tertius que não representa nem a vontade dos Deputados Federais, nem a dos Senadores. Essa providência compromete profundamente o próprio âmago do processo reformador, permitindo que entre em vigor como emenda constitucional um texto que não consagra o entendimento final de nenhuma das Casas e, pior: montado aos pedaços, poderá, na interpretação que vier a colher no futuro, desaguar em efeitos não queridos, e até hostilizados, pelos membros do Congresso Nacional”.[1]
De fato, não se pode negar que existe uma certa opacidade nos critérios que levam ao fatiamento ou à construção do texto final da EC, especialmente quando a conformação da redação acaba sendo dada pelas próprias Mesas, que, embora sejam as competentes para a promulgação, podem acabar não sendo fiéis à vontade majoritária manifestada pelos Plenários.
No entanto, só um estudo empírico – examinando minuciosamente os textos das últimas ECs e contrastando com as redações aprovadas pelos Plenários – poderia revelar se essa preocupação procede. André Corrêa de Sá Carneiro fez isso em relação à EC n. 19/1998.
Seja como for, o fato é que o desenho da CF, art. 60, § 2º, foi falho e a solução do fatiamento de PECs, embora não esteja expressamente prevista, está amparada na Constituição e regimentos. Foi mais um costume constitucional que acabou se impondo e sendo reconhecido pelo STF, desde que os trechos supridos não comprometam o texto remanescente, pois o fatiamento não deve servir para permitir que uma das Casas (mais especificamente, a sua Mesa), isoladamente, atue como “legislador positivo” em detrimento da outra (o Senado).
Agora a ver como será a redação final da Reforma Tributária após o fatiamento da PEC 45/2019.
[1] DEZEN JUNIOR, Gabriel. Processo legislativo completo: esquematizado em quadros. Brasília: Alumnus, 2017, p. 126.