Aprovada em 20 de dezembro de 2023, a Emenda Constitucional 132/2023 (reforma tributária) alterou profundamente o Sistema Tributário Nacional, sobretudo a incidência sobre o consumo. Além de ter por ambição solucionar problemas crônicos do sistema tributário brasileiro, a reforma exigirá intensas discussões no decorrer dos próximos anos, haja vista a necessidade de aprovação de dezenas de leis complementares, necessárias à disciplina do novo modelo de tributação.
A promulgação da emenda inaugura, também, debates acerca de mudanças sutis – ou apenas secundárias – realizadas na Constituição, mas que certamente serão exploradas pela doutrina nos próximos anos e analisadas pelos tribunais nacionais. O presente texto apresentará uma delas: a nova redação dada ao art. 150, inciso VI, §2° da Constituição Federal.
Elaborado pelo constituinte originário, o artigo supracitado versa sobre as limitações do poder de tributar, e, em seu inciso VI, veda aos entes federativos instituírem instituição de impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros (art. 150, inciso VI, alínea “a”). Com esta delimitação, criou-se a imunidade tributária recíproca entre os entes federativos.
Sob esse contexto, em sua redação original, o art. 150, § 2º, prescrevia que: “a vedação do inciso VI, “a”, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes”. Este trecho do texto constitucional gerou acentuadas discussões e algumas delas serão tratadas nos próximos parágrafos.
O principal fundamento da regra discutida é a preservação do equilíbrio federativo fiscal, da autonomia dos entes políticos e do livre desempenho de suas atividades. O objetivo é o de diminuir o custo fiscal da atuação pública voltada à satisfação dos objetivos institucionais inerentes ao ente federado, sejam esses realizados de forma centralizada, na Administração Direta, ou descentralizada, na Administração Indireta.
Para tanto, o texto da Constituição é claro quanto à imunidade recíproca de autarquias e fundações públicas, entidades integrantes da Administração Indireta e constituídas sob o regime jurídico de direito público para o desempenho de funções públicas.
Entretanto, em sucessivas interpretações, o STF também estendeu a imunidade recíproca a algumas estatais – i.e. empresas públicas e sociedades de economia mista integrantes da Administração Indireta e submetidas ao regime jurídico de direito privado – desde que preenchidas algumas condicionantes que justifiquem a razão de ser da imunidade tributária (Tema 412[1]).
Em suma, por um lado, as estatais que prestam serviços públicos de cunho essencial e exclusivo, sem intuito lucrativo, poderiam gozar deste benefício[2], na medida em que se presume que não há riscos à livre iniciativa e ao equilíbrio concorrencial. Por outro lado, as estatais que exploram atividade econômicas, voltadas ao lucro e em regime de concorrência, não gozariam de imunidade tributária[3], respeitada, assim, a paridade constitucional (art. 173, § 2º, CRFB/88).
Diante desse cenário, surgiram algumas dificuldades práticas acerca do adequado alcance da imunidade tributária nas estatais. A questão se torna especialmente relevante nos casos em que a estatal presta diferentes tipos de serviços – em regime de concorrência e em regime de exclusividade[4]. As diferentes respostas oferecidas não caberiam no presente artigo, assim, apenas uma delas será aprofundada: a questão envolvendo a incidência do IPTU sobre a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).
No Recurso Especial 773.992, o STF se debruçou sobre a imunidade tributária recíproca quanto ao IPTU incidente sobre imóveis de propriedade da ECT. Nele, foi firmada tese de repercussão geral de que: “A imunidade tributária recíproca reconhecida à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) alcança o IPTU incidente sobre imóveis de sua propriedade e por ela utilizados, não se podendo estabelecer, a priori, nenhuma distinção entre os imóveis afetados ao serviço postal e aqueles afetados à atividade econômica”.
Como se pode ver, a despeito da literalidade da parte final do dispositivo constitucional, o entendimento do STF tem sido o de estender a interpretação acerca do alcance objetivo da imunidade recíproca. O argumento é relacionado à necessidade de permitir que as receitas auferidas pelo desempenho de atividades econômicas concorrenciais possam subsidiar o custo daquelas realizadas em regime de exclusividade e garantir, assim, o amplo acesso e fruição a esses serviços públicos pelos cidadãos.
Chegamos, então, à reforma tributária. A nova redação dada ao art. 150, § 2º, positivou o entendimento do STF na matéria do Tema 644 (RE 773.992), adicionando algumas palavras ao texto:
“§ 2º A vedação do inciso VI, “a”, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo poder público e à empresa pública prestadora de serviço postal, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes”.
O constituinte reformador adicionou um novo caso expresso de imunidade tributária recíproca, para além das autarquias e fundações públicas: a empresa pública prestadora de serviço postal. Contudo, ao fazê-lo, instituiu nova discussão, sintetizada na seguinte pergunta: a previsão expressa dos Correios no novo § 2º, do art. 150, exclui outras estatais do rol das entidades que gozam de imunidade recíproca?
Numa interpretação puramente literal, sim. Por mais que soe improvável que o Supremo altere o entendimento firmado em diferentes teses de repercussão geral, a emenda ao parágrafo 2° do art. 150 da CF, pode inaugurar uma interpretação no direito tributário brasileiro. O poder constituinte reformador parece ter consagrado um privilégio constitucional específico à ECT, deixando de fora as demais empresas públicas. Vale ressaltar que também é válido o argumento de que o fez para proteger a empresa de uma possível mudança de entendimento jurisprudencial, não sendo possível presumir que, via de regra, empresas públicas e sociedades de economia mista não possam gozar de imunidade, especialmente quando na consecução de objetivos institucionais obrigatórios e exclusivos.
A discussão, talvez, resida na dificuldade intrínseca de se identificar, com balizas claras e seguras, a diferença entre uma estatal que presta um “serviço público” e uma estatal que desempenha “atividades econômicas stricto sensu”. Essa tradicional classificação manualística[5], que já parece ter perdido sua utilidade no campo do direito administrativo e da jurisprudência do Supremo noutras searas[6], mantém como reduto a controvérsia sobre o regime fiscal das estatais. Isso, embora a própria Lei das Estatais (Lei 13.303/16) tenha abandonado essa distinção imprecisa no seu art. 1º, ao instituir um regime jurídico relativamente único. Mais preciso, portanto, seria enfatizar que há serviços de maior relevância constitucional que justifiquem, do ponto de vista institucional, maior intervenção do Estado, seja de forma direta ou via regulação[7].
Assim, a verdadeira discussão quanto à correta interpretação a ser dada ao novo parágrafo 2º, do art. 150, a nosso ver, deve tomar por base os elementos que justificam a concessão de imunidade recíproca e, consequentemente, uma decisão pragmática há de ser tomada – preferencialmente pelo legislador infraconstitucional – acerca da exigência de uma atividade lucrativa de uma estatal subsidiar, internamente, outro serviço que exija, do ponto de vista constitucional, que se garanta amplo acesso e fruição a todos os cidadãos.
De todo modo, as discussões jurisprudenciais sobre o tema seguem a todo vapor. No último mês de abril, o tribunal reconheceu repercussão geral da questão constitucional que discute se o arrendamento de bem imóvel da União para concessionária de serviço público de transporte ferroviário afasta a imunidade tributária recíproca, com a consequente incidência de IPTU sobre o imóvel afetado à prestação do serviço (Tema 1.297).
Certamente é possível elaborar muito mais perguntas do que respostas, o que é o intuito do breve artigo. Esse fato demonstra que as controvérsias envolvendo as demarcações do texto positivado pela reforma tributária abrirão caminhos para diferentes correntes e diferentes indagações à Justiça do país, já que, com a sede de responder questões típicas de sala de aula em matéria de direito tributário[8], a EC 132/23 entabulou outras várias (novas e atualizadas).
[1] Decorrentes do ARE 638315, o STF fixou a seguinte tese: “A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – Infraero, empresa pública prestadora de serviço público, faz jus à imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, da Constituição Federal”.
[2] Nessa linha, ver: (i) RE 253.572 acerca da imunidade recíproca da Codesp (Companhia Docas do Estado de São Paulo); (ii) ARE-AgR 763.000 e ACO 2.730 AgR (rel. min. Edson Fachin, P, j. 24-3-2017, DJE 66 de 3-4-2017) acerca da imunidade recíproca da Companhia Espírito Santense de Saneamento – CESAN; (iii) RE 580.264 (rel. min. Joaquim Barbosa, red p/ o ac. min. Ayres Britto, P, j. 16-12-2010, DJE de 6-10-2011,Tema 115.) acerca de sociedade de economia mista, Hospital Nossa Senhora da Conceição S.A., que prestava serviços de saúde.
[3] Em razão disso, o STF entendeu que as sociedades de economia mista que prestam serviços públicos de saneamento básico, tratamento de água, mas que são capital aberto e negociam suas ações no Mercado de Valores não gozam de imunidade tributária (Tema nº 508 e ACO 1.460).
[4] Como no caso da Casa da Moeda do Brasil (“CMB”), empresa pública federal, responsável pela execução de serviços públicos em regime de monopólio, que, segundo entendimento do STF, goza de imunidade tributária (ACO 2.107), inclusive quanto a serviços realizados em concorrência, como a importação de equipamento para impressão serigráfica (ACO 2.179).
[5] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
[6] Como exemplo, o Supremo parece ter adotado um conceito de serviço público mais essencialista ou material, para permitir que esse seja prestado por instrumentos privados, como a autorização (ADI 6482). Na doutrina, para Carlos Ari Sundfeld, o termo “regulação” é útil para superar a dualidade radical entre “serviços públicos × atividades econômicas”, o que aproxima o conceito de serviços públicos ao de “utilities”, no sentido de haver maior preocupação quanto à intensidade regulatória para consecução de objetivos constitucionais. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito público e regulação no Brasil. In Regulação no Brasil: uma visão multidisciplinar. (Sérgio Guerra –Organizador). Rio de Janeiro: FGV, 2014. (p. 97-128).
[7] SCHIRATO, Vitor Rhein. Livre iniciativa nos serviços públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. Para o autor, uma interpretação mais atual do conceito de serviço público seria a seguinte: “Conjunto formado pelo caráter obrigacional da atividade (que impõe ao Estado o dever de prestação de atividade ou garantia dela), sua vinculação aos DF (que pautam as relações Estado-cidadão) e sua consubstanciação na exploração de uma atividade econômica material (não normativa, nem diretiva) pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, substituindo seu dever de garantidor.”
[8] Outro bom exemplo, que reforça a conclusão do texto, é a alteração da alínea “b)” ao inciso VI do art. 150, que conferia imunidade tributária a “templos de qualquer culto”. Muito se discutiu até que ponto poderia se estender esta previsão, e, diante da oportunidade de emenda, o legislador instituiu, na nova redação, que a imunidade engloba: “entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes”, o que, na prática, apenas atualiza a discussão, mas não a encerra.