Reforma tributária, Comitê Gestor do IBS e Direito Financeiro

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Um dos grandes equívocos cometidos sempre que se debate a reforma tributária está justamente em denominá-la de reforma “tributária”. As questões que envolvem o Direito Tributário são apenas parte do amplo tema que se coloca em debate, e nem é possível dizer se é a maior e mais relevante.

Há muitas questões próprias do Direito Financeiro, principalmente, além do Direito Administrativo e outras áreas do Direito, bem como das finanças públicas, da contabilidade (pública e privada) e tantas outras, exigindo um trabalho multidisciplinar, imprescindível para que se obtenha o melhor resultado.

Há décadas, a reforma tributária é discutida e essa imprópria denominação sempre tem atraído os tributaristas para o comando, condução e liderança do processo. Um fenômeno que muitas vezes distorce o trabalho final, com o predomínio da visão própria dos estudiosos e operadores do sistema tributário, deixando imprecisões, lacunas e dúvidas, decorrentes das interfaces com outras áreas do conhecimento que nem sempre são ouvidas nem integram o processo de reconstrução do sistema.

Na atual fase de debates sobre a legislação complementar do texto constitucional que alterou significativamente o sistema tributário após o advento da Emenda Constitucional 132, de 20 de dezembro de 2023 (EC 132), é importante que haja uma colaboração de todos para aperfeiçoá-lo, e nesse sentido algumas observações se tornam relevantes, como se poderá constatar a seguir.

A instituição do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), principal item da reforma, inova ao criar um tributo de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios (Constituição, art. 156-A), cuja operacionalização dar-se-á por meio de um Comitê Gestor (art. 156-B, entre outros).

Referido Comitê Gestor será uma “entidade pública sob regime especial” dotada de “independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira” (art. 156-A, § 1º). O texto da Constituição, alterado pela EC 132, bem como o projeto em tramitação da lei complementar que foi encaminhado para regulamentar o tema – PLP 108/2024, não são explícitos, mas indicam que será um órgão da Administração Pública.

É o que se pode inferir a partir da leitura dos dispositivos constitucionais e do PLP 108, tanto na versão inicialmente encaminhada em junho, como do relatório final do Grupo de Trabalho destinado a apreciar o Projeto de Lei Complementar 108, apresentado em julho de 2024, de relatoria do deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE).

Segundo os projetos, o Comitê Gestor do IBS deve “prestar contas perante entidades de controle externo” (substitutivo do RF GT PLP 108, art. 2º, XIX), “estruturar o plano de cargos e salários e contratar empregados públicos, mediante concurso público” (substitutivo, art. 2º, XXI), submeter-se à Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101/2000 (substitutivo, art. 41), à Lei 4.320/1964, que regula a elaboração e controle dos orçamentos públicos (substitutivo, art. 44), e às normas de licitações e contratações aplicáveis às administrações públicas (substitutivo, art. 49).

A administração pública brasileira está organizada em função de uma estrutura federativa, de modo que cada ente federado tem sua própria administração pública. Temos, portanto, uma administração pública federal, 26 estaduais, 1 distrital e 5.570 administrações públicas municipais, cada uma delas exercendo materialmente as funções que cabem ao respectivo ente federado.

A instituição do Comitê Gestor do IBS “terá sua atuação caracterizada pela ausência de vinculação, tutela ou subordinação hierárquica a qualquer órgão da administração pública”, o que está em harmonia com a diretriz de assegurar sua independência.

No entanto, não esclarece onde o órgão estará inserido: se na administração pública federal, ou de algum outro ente federado. Ou se há a pretensão de inovar, criando-se um até então inexistente órgão que estaria fora da estrutura federativa – caso em que haveria necessidade de estipular as novas regras que permitissem essa formatação, eventualmente exigindo até mesmo alterações na Constituição e em inúmeras outras normas, dados os muitos desdobramentos que essa inovação traria para a organização do Estado brasileiro.

Evidencia-se ser o Comitê Gestor do IBS uma “entidade” de caráter nacional, uma vez que suas funções abrangem uma série de atos de coordenação, legislação e outros que atingem estados, Distrito Federal e municípios. E segue as normas aplicáveis aos órgãos da administração, como já explicitado.

Órgãos com funções nacionais fazem parte do Estado brasileiro. O Poder Judiciário, que tem uma estrutura de âmbito nacional, ainda que muitos de seus órgãos, como os Tribunais de Justiça, integrem as administrações públicas de outros entes federados, é exemplo claro disso. Os tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), bem como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), exercem funções de caráter nacional.

O que se constata, nessas hipóteses, é que, não obstante exerçam atribuições nacionais, são órgãos que integram a administração pública federal. Seus orçamentos, leis aplicáveis e procedimentos sujeitam-se administrativamente ao regime jurídico federal.

A ideia de criar um Comitê Gestor na forma de uma entidade que se “afaste” da administração pública federal, para dela manter total independência, uma vez que exercerá a competência compartilhada da administração do IBS, imposto que envolve apenas estados, Distrito Federal e municípios, esbarra em obstáculos cuja superação não parece simples, e a legislação ora em vigência e em discussão não tem clareza a respeito.

Veja-se o disposto no art.156-B, § 2º, IV da Constituição, segundo o qual “o controle externo do Comitê Gestor será exercido pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios”, a ser complementado com o art. 40 do Substitutivo do PLP 108, estabelecendo que:

“A fiscalização contábil, operacional e patrimonial do CG-IBS a que se refere o art. 156 B, § 2º, inciso IV, da Constituição Federal, será realizada de forma coordenada, compartilhada e colegiada pelos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e Municipais, que se reunirão, preferencialmente, de modo virtual”.

É preciso esclarecer que as finanças públicas se organizam pelo sistema de planejamento orçamentário da Administração Pública[1], estruturado no âmbito de cada unidade federada, onde se processa todo o ciclo orçamentário e atua o sistema próprio de fiscalização financeira e orçamentária (arts. 70 a 75 da Constituição).

Não há unidade nacional no sistema de fiscalização financeira e orçamentária, sendo o Poder Legislativo de cada ente federado o titular para exercer essa competência, auxiliado pelo Tribunal de Contas responsável por essa atribuição, conforme estipulado pela Constituição Federal e pelas Constituições dos estados e Distrito Federal, que regulam o tema no que tange aos municípios.

Dessa forma, a fiscalização financeira e orçamentária do Comitê Gestor do IBS deverá ser exercida pelo sistema competente para a função em relação à administração pública na qual deverá estar inserido, o que até o momento não está claro.

No caso dos já mencionados órgãos de natureza nacional do Poder Judiciário, todos integram a administração pública federal, estando sujeitos ao sistema de fiscalização financeira cujo titular é o Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU) – modelo que não poderá ser seguido pelo Comitê Gestor do IBS, uma vez que a nova redação da Constituição determina que o controle externo seja exercido pelos estados, Distrito Federal e municípios.

Na apresentação do relatório final do GT do PLP 108, consta que “o CG-IBS está sujeito à fiscalização contábil, operacional e patrimonial pelo Tribunal de Contas do Estado ou do Município competente para apreciar as contas do ente federativo de origem do Presidente do órgão”, em harmonia com o que constava da redação original do art. 40 do PLP inicialmente apresentado, estipulando uma fiscalização cuja titularidade será alterada a cada nova presidência do órgão.

A sistemática parece pouco viável na prática, por várias razões. Inicialmente há que se ressaltar e relembrar que o sistema de controle externo não tem unidade nacional, sendo os tribunais de contas autônomos, inclusive com relação à interpretação do ordenamento jurídico, o que tem gerado diferenças em relação a decisões e procedimentos de questões semelhantes.

A apreciação das contas do Comitê Gestor do IBS, por consequência, poderá ter tratamento diverso conforme o tribunal de contas competente para exercer o controle, gerando uma situação de forte insegurança jurídica.

A autonomia dos tribunais de contas reflete-se ainda em todo o processo de apreciação das contas, que pode diferir conforme o ente federado, sujeitando o Comitê Gestor do IBS a uma multiplicidade de normas e procedimentos diversos que se alteram a cada nova gestão.

A atuação do sistema de controle externo não se limita à apreciação e julgamento de contas, abrangendo uma multiplicidade de outras ações, como inspeções, auditorias, aplicações de sanções, análise de editais, sustação de contratos e uma ampla gama de atividades, que no mais das vezes perduram e ultrapassam um ou mais exercícios financeiros, com potencial de tornar caótico o exercício do controle externo pela multiplicidade de procedimentos concomitantes, sob diversas jurisdições.

Mas não é só. A ausência de delimitação precisa da natureza jurídica do Comitê Gestor do IBS, sua localização na administração pública, bem como a extensão do alcance da gestão orçamentária e respectivo regime jurídico, são questões que abrem um leque extremamente amplo de indefinições.

Tornam o texto constitucional em vigor, e legislação complementar em tramitação, insuficientes para garantir que a implantação da reforma ocorra de forma a trazer os resultados esperados, com a imprescindível segurança jurídica e almejada simplificação.

Ainda há muito o que fazer, as questões não-tributárias precisam de maior atenção e delas cada vez mais depende o sucesso da reforma.

[1] Sobre o tema., vide CONTI, José Mauricio. Planejamento orçamentário da administração pública no Brasil. São Paulo: Blucher, 2020. Série Direito Financeiro (Coord. J Mauricio Conti). Disponível gratuitamente em: https://www.blucher.com.br/o-planejamento-orcamentario-da-administracao-publica-no-brasil_9786555500219