Acadêmicos e profissionais do direito têm abordado as falhas conceituais e metodológicas presentes no PL 4/2025, que dispõe sobre a atualização do Código Civil. Muito tem se dito a respeito do excesso de linguagem indeterminada (por exemplo, as muitas referências a termos genéricos como ordem pública) e sobre a transferência da responsabilidade pela definição dos rumos da vida civil, do Legislativo para o Judiciário, a quem caberá dar sentido prático às expressões vagas.
Os problemas, porém, vão além disso. O projeto também comporta críticas quanto às alterações em institutos específicos, como nas espécies contratuais típicas. Destaco apenas uma: o contrato de comissão.
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A comissão é um tipo contratual que alia mandato e intermediação para a produção de resultados econômicos. Constitui-se pela outorga de poderes para operações em favor e à conta de outrem. O outorgante é o comitente; o outorgado é o comissário. O comissário representa em nome próprio os interesses do comitente perante terceiros, que assume os custos e se beneficia do resultado.
A origem da comissão remonta ao direito grego e ao direito romano; passa à Idade Média no contrato de comenda; serve à Liga Hanseática, aliança comercial e política do norte da Europa, e ao comércio em Veneza e em Gênova, no século 16; e chega ao Brasil para ser utilizado pelos exportadores de café.
Ingressou no direito brasileiro a partir do Código Comercial de 1850, sob a modalidade mercantil, e, com a unificação do direito privado no Código Civil de 2002, adquiriu maior abrangência patrimonial. Antes se destinava somente a negócios envolvendo bens móveis; hoje vale para todos os tipos de bens. Atende ao mercado financeiro, ao agronegócio, ao setor de turismo e convém às necessidades de negócios atípicos.
O PL 4/2025 inclui o parágrafo único ao artigo 694 do Código Civil nos seguintes termos: “o contrato de comissão se aplica exclusivamente a transações com bens móveis”. A pretendida modernização resulta no retorno ao modelo do século 19. Faz sentido?
Depois de mais de duas décadas de maior abrangência, e sem controvérsias na jurisprudência, resolveu-se restringir o alcance patrimonial da comissão. A exposição de motivos cita opinião doutrinária de Bueno de Godoy e de Theodoro Júnior.
O primeiro aponta violação ao princípio da continuidade registral, dizendo que a aquisição de bens imóveis exige o registro do título translativo perante o fólio imobiliário, onde deveria constar o assentamento das alienações do vendedor ao comissário e deste ao comitente. O segundo segue na mesma linha, acrescentando que a publicidade da escritura e do registro iriam de encontro ao sigilo, esvaziando a finalidade socioeconômica do instituto.
Os motivos utilizados para justificar a proposta de atualização não merecem apoio. A publicidade não afeta a comissão. O segredo sobre a pessoa do comitente é uma opção no desenvolvimento da arquitetura contratual. O negócio não é desnaturado se o comissário revela a identidade do comitente, de modo que tanto a relação interna – comitente e comissário – como a externa – comissário e terceiro – seguem válidas e eficazes.
A compra e venda de imóveis baseada na confiança entre comitente e comissário é comum e pode ser organizada sob formas diversas. Compromissos admitem que o comissário indique que a escritura definitiva será outorgada em favor do comitente.
A comissão se desenvolve no âmbito pessoal, enquanto o registro atribui direito real, havendo a possibilidade de adequação das obrigações às regras do sistema de registro de imóveis. Negócios podem ser firmados sob a forma de contratos atípicos, e a autonomia privada confere liberdade para que os contratantes assumam riscos e para que avaliem o grau de segurança aceitável para os seus negócios.
A continuidade registral também não é afetada pela comissão. O comissário pode adquirir os direitos de propriedade, restando ao comitente os direitos econômicos e a expectativa quanto ao domínio. Almeja-se o resultado das transações imobiliárias, não necessariamente o bem imóvel. O negócio entre comitente e comissário corresponde à relação interna da comissão, a relação externa pode ser materializada entre o terceiro e o comitente. Assim, o interesse do comitente é obtido e o princípio da continuidade restará respeitado.
O mercado recepciona a comissão sobre imóveis porque é adequada à demanda social, resolve problemas e favorece a circulação econômica. A restrição ex ante se mostra inoportuna, do ponto de vista prático, e equivocada, sob a perspectiva teórica, seja por restringir a liberdade contratual, seja porque ilegalidades devem ser analisadas ex post, de acordo com a situação concreta.
Daí a crítica ao PL 4/2025 no concerne à atualização da comissão. O modelo comportaria modificação para disciplinar os contornos do segredo na ordem privada, para tutelar o negócio fiduciário intrínseco ao tipo e para assegurar a compatibilidade dele com o sistema contratual. Se não for esse o propósito, melhor deixar como está.