Este é o primeiro de uma série de artigos sobre o projeto de Código Civil em matéria empresarial, com foco apenas no direito societário. A ideia é discutir as propostas e utilizá-las como alavanca para compreender as razões dos nossos projetos de lei serem tão deficientes e discutir possíveis estratégias para aperfeiçoar nosso processo legislativo.
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O que motivaria uma reforma legislativa no campo empresarial? Dois deveriam ser os objetivos. O primeiro seria impulsionar novos mercados focados em novos produtos e tecnologia, para gerar crescimento econômico. O segundo seria organizar mercados já existentes através de sinalização regulatória mais clara, para prevenir disputas empresariais e reduzir custos transacionais.
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O projeto de reforma do Código Civil atualmente em trâmite no Congresso Nacional (PL 4/2025) não parece atingir qualquer desses objetivos. Em vez de incentivar novos mercados, na única parte que trata de institutos relacionados a produtos potenciais e regulação da inteligência artificial, o projeto cria obstáculos à entrada do Brasil na economia Web3. Tampouco apresenta uma regulação com sinalização clara para os jurisdicionados, que permita prevenir disputas.
Não tratarei aqui da parte relacionada à economia Web3, que será endereçada em outra oportunidade. O foco, por ora, serão os dispositivos de direito societário, que de forma desastrosa – pela complexidade, redação assistemática e descolamento da estrutura econômica dos empresários regulados – apontam para o sentido oposto do que se espera de uma regulação empresarial.
Começarei os comentários pelos dispositivos que tratam da data da resolução das sociedades empresárias para fins de apuração de haveres nos casos de dissolução parcial. Esse é um tema relevantíssimo para o direito empresarial, constituindo boa parte da movimentação judiciária e um dos entroncamentos mais críticos na vida dos empresários brasileiros.
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A data de referência para a dissolução parcial tem enorme relevância por se tratar do marco temporal no qual a pessoa deixa de ocupar a posição de sócio e se torna potencial credora da sociedade. Essa transição substitui o plexo de direitos e obrigações plurilaterais de sócio por uma relação bilateral entre ex-sócio e sociedade, baseada em um possível valor a receber da sociedade pelo reembolso das quotas.
As sentenças de dissolução eram historicamente omissas em relação a essa relevante questão da data. Em uma pesquisa realizada em 2011, tive a oportunidade de demonstrar que mais de 80% das sentenças de dissolução eram omissas quanto à data da resolução e mais de 62% quanto ao critério de apuração de haveres. (NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria aplicada ao direito societário: Um estudo estatístico da dissolução de sociedade no Brasil, 2012. Tese de doutorado.)
Como resultado, essas ações tinham duração média de 1.782 dias (4 anos e 11 meses) e ao final não decidiam o essencial do que deviam decidir, deixando o julgamento das principais questões jurídicas a cargo do perito judicial responsável pelo laudo de avaliação na fase de liquidação.
A grave omissão decorria da falta de uma disposição clara na lei a respeito da estrutura da sentença da fase resolutória da dissolução, que deve incluir data de resolução, critério de apuração de haveres e nomeação de perito. Essa disposição é especialmente relevante para as ações julgadas em justiça não especializada em matéria empresarial, para juízes não habituados a lidar com conflitos dissolutórios.
Essas questões foram endereçadas na última reforma do atual Código de Processo Civil (CPC), cujos arts. 604 e 605 servem de verdadeiro roteiro para os juízes sentenciarem esses casos, incluindo parâmetros para data de resolução, associados a cada hipótese de dissolução, critério de apuração de haveres, nome e qualificação do perito.
Criticado por alguns por serem teoricamente óbvios, esses dispositivos cumpriram um papel pragmático muito importante. Com as alterações no CPC, foi observada uma queda relevante no grau de omissão das sentenças, associada a uma aceleração nos julgamentos (derivada também de outros fatores, como o processo eletrônico e a especialização), tendo a reforma cumprido com sucesso o seu objetivo. O exemplo dessas alterações, além de tudo, demonstra a importância da utilização de diagnósticos empíricos para orientar reformas e escolhas legislativas.
O projeto de reforma do Código Civil surge agora com uma miríade de artigos e conceitos que gerarão dúvidas, confusão e, por consequência, incentivos a litígios. O texto traz não um, nem dois, mas três dispositivos que tratam dessa mesma questão. Os artigos 1031, parágrafos 2º e 4º, o 1085-A e o 1086-A.
Essas normas não obedecem a um padrão na redação, com o uso de expressões distintas para o que deveria ser um único instituto. No art. 1031, parágrafos 2º e 4º, utiliza-se da expressão “data de resolução”, no art. 1085-A, usa-se a “data de referência do balanço” e o art. 1086-A fala em “data de referência da liquidação”.
Na dicção do CPC a data de referência para fins de levantamento do balanço é a data da resolução. A dúvida e a incerteza decorrentes do uso de expressões e prazos distintos incentivarão litígios desnecessários. Melhor seria adotar a mesma redação do CPC e unificar o tratamento dispensado ao instituto nos dois códigos.
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E o problema não é meramente redacional. As referências calendárias utilizadas pelos arts. 1031 e 1086-A são inexplicavelmente diferentes na maioria das hipóteses, criando um desastroso desalinhamento entre a posição jurídica do sócio e seus direitos econômicos.
Na hipótese de retirada imotivada, a mais frequente nos processos e na vida empresarial, o art. 1031 estabelece que a resolução ocorrerá 60 dias após a notificação. Já o art. 1086-A dispõe que a data da liquidação será a mesma da data de notificação. A divergência gera a situação estranha na qual a pessoa terá direito a liquidação de sua quota 60 dias antes de a relação societária ter sido resolvida.
Nesse intervalo entre liquidação e resolução, o sócio/credor tem direito a receber dividendos, votar e fiscalizar a sociedade, uma vez que a resolução ocorrerá apenas 60 dias após o levantamento do balanço. Também nesse intervalo o sócio/credor poderá pleitear dividendos (porque é sócio) e juros e correção (porque é credor dos haveres).
Na retirada motivada, o art. 1031 fala em resolução na data do trânsito em julgado da sentença que reconhece a procedência do pedido de desfazimento do vínculo societário, porém o art. 1086-A estabelece a data da alteração do contrato social ou da interpelação como referência para a liquidação.
Para complicar, ao tratar do recesso (que é uma retirada motivada) o art. 1031 fala em data da notificação. A divergência gera as mesmas perplexidades. Se a data da interpelação ou notificação será a referência do balanço, não faz sentido deixar a sociedade para ser resolvida posteriormente, apenas na data do trânsito em julgado da sentença de um processo cuja mediana de duração é mais de 4 anos. Se é a sentença que desconstitui a relação societária na data em que transita em julgado, é essa mesma data que deveria ser a referência para a liquidação.
A proposta, porém, estabelece que a sentença de dissolução, que tem natureza constitutiva negativa, terá efeitos retroativos. Então, na prática, o autor da ação continuará sócio, exercendo todos os direitos políticos e econômicos inerentes à posição de sócio até o trânsito em julgado. Mas em caráter precário, pois, ao final dos estimados 4 anos do processo, receberá uma sentença prevendo que ele já não era sócio há muito tempo. Haverá repetição dos dividendos? Todos os quóruns das deliberações tomadas com seus votos serão revistos? A proposta é omissa em todos esses pontos.
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Os problemas continuam. O art. 1031, II elevou a separação conjugal à categoria de nova hipótese de causa de dissolução parcial, ao determinar que a resolução ocorrerá na data da separação de fato do casal. A vinculação da separação de fato com a resolução da sociedade é disfuncional. A proposta cria a inusitada hipótese de o sócio, até mesmo o sócio controlador, deixar a sociedade apenas porque se divorciou ou dissolveu uma união estável.
Ao longo de décadas tentou-se criar um ambiente de estabilidade na vida empresarial. Estabelecer que o fim do relacionamento conjugal acarreta o fim do relacionamento societário vai na contramão de todo esse esforço. São relações jurídicas evidentemente distintas. No atual CPC, o parágrafo único do art. 600 atribui legitimidade ativa para o cônjuge ou companheiro cuja relação terminou requerer a apuração de haveres, mas não toma o término da relação (fática ou jurídica) como referência para a apuração dos haveres.
Atualmente, o cônjuge que entende possuir diretos patrimoniais a reclamar de um dos sócios poderá fazê-lo no processo de divórcio e partilha. Ao final, se de fato possuir direito (patrimonial, repita-se), é possível ocorrer a hipótese de apuração de haveres para pagamento desse crédito. Mas também pode ocorrer de o casal se reconciliar, de o ex-cônjuge não possuir o direito e até mesmo de a partilha ocorrer de modo a que a totalidade das quotas continue com o sócio e o cônjuge receba outros bens em compensação.
Se o projeto de Código Civil for aprovado como está, nada disso será possível. Teremos a dissolução parcial apenas e somente porque houve uma separação de fato. Tudo fica ainda mais confuso pelo fato de a sociedade continuar legitimada a propor a ação de dissolução. Poderá a sociedade, então, por via transversa, requerer o reconhecimento de um divórcio e da consequente dissolução parcial para fins de exclusão de um sócio? Novamente, a proposta se omite sobre as consequências de suas intenções.
Ainda sobre o divórcio, apesar de o art. 1031, II resolver a sociedade na data da separação de fato, o 1086-A fala em data da extinção do regime de bens para a liquidação. Segundo o art. 1576 do atual Código Civil, é a separação judicial que põe termo ao regime de bens, que por sua vez é decretada ou homologada por sentença.
A divergência evidentemente criará situações nas quais, por exemplo, a resolução já se operou com a saída do cônjuge da residência em comum, mas a liquidação ocorrerá depois, quando o regime de bens for extinto por sentença ou acordo. Aqui, o ex-sócio fica numa posição em que não tem direito aos lucros, não pode votar ou fiscalizar, mas está sujeito aos efeitos patrimoniais da administração enquanto o regime de bens não for extinto com a fixação da data de liquidação, o que pode levar meses ou anos.
Por fim, como se a confusão já não fosse suficiente, vem ainda um terceiro dispositivo, o art. 1085-A, e apresenta um novo conceito, o de data de referência do balanço, que não é nem a data de referência de liquidação, nem a data da resolução.
A definição, aplicação ou funcionalidade do dispositivo não é explicada pelo projeto. Com isso, após toda essa miríade de datas, prazos e hipóteses assistemáticas, a data a ser utilizada pelo perito como referência para o balanço pode ser qualquer outra, indefinida pelo projeto.
Como resultado, um tema crítico, uma matéria de central importância para o direito empresarial, rotineira na vida dos juízes e estabilizada pelos dispositivos do CPC, acabou completamente desorganizada, tornando-se um vetor potencial de grave desestabilização jurisprudencial, aumento de custos e incremento de insegurança.
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Lendo o projeto e acompanhando o debate, fica claro que, por falta de tempo ou meios, não foi realizado nenhum estudo de impacto regulatório, nenhuma avaliação e nem mesmo uma análise exploratória básica, que tentasse ao menos estimar o impacto da aprovação dessa proposta.
Também não há qualquer fundamento objetivo com base em alguma avaliação – por exemplo, no perfil dos conflitos judiciais entre empresários – que justifique as alterações propostas. Trata-se de um caso exemplar de legislação idiossincrática, baseada em impressões, opiniões e experiências pessoais concebidas por um grupo qualificado, porém muito restrito de pessoas.
As declarações de que a reforma será positiva para a economia, gerará riqueza e crescimento não são embasadas em qualquer estudo e se limitam apenas à expressão de um “wishful thinking” dos defensores do projeto.
Volto ao tema no próximo artigo.