Reforma administrativa: mudança gradual ou big bang estatal?

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Em janeiro, o secretário de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão e Inovação, José Celso Cardoso Júnior, falou em entrevista sobre a visão da atual administração federal a respeito da reforma administrativa. De acordo com o secretário, a reforma pretendida pelo governo deve ser infraconstitucional e incremental, ocorrendo em fluxo contínuo, e ter como norte o aprimoramento da qualidade das políticas públicas desenvolvidas pelo Estado brasileiro.

Mas, afinal, o que significa uma reforma incremental?

Reformas incrementais partem de pequenas mudanças que acontecem em ambientes controlados e monitorados e paulatinamente se somam em grandes transformações. Contrapõem-se, assim, às reformas radicais, as quais assumem um caráter de big bang e pretendem modificar por completo um determinado conjunto de normas e refundar inteiramente um instituto[1].

O incrementalismo é uma corrente de pensamento inaugurada a partir de artigo seminal de Charles Lindblom em que o autor defende que, ao lidarem com um problema, agentes públicos e dirigentes de organizações em geral devem refletir sobre as alternativas de ação que conseguem identificar e, em seguida, analisar as possíveis consequências de cada uma delas[2]. O movimento parte das premissas da limitação da racionalidade humana e da existência de um espaço de tolerância ao erro e ao insucesso de políticas públicas[3], guardando relações estreitas com o experimentalismo e o reconhecimento da falibilidade humana e institucional.

Muito embora o incrementalismo possua diferentes vertentes e não exista uma linha claramente definida entre reformas incrementais e big bang, é possível identificar cinco caraterísticas principais em sua versão mais contemporânea[4]: (i) desenvolvimento de planos de reforma, com objetivos, ações e estratégias de monitoramento bem delineados; (ii) adoção de mudanças escalonadas, dando-se preferência pela introdução de novas regras infraconstitucionais antes de se passar para alterações do texto constitucional; (iii) implantação de um pequeno conjunto de mudanças em cada etapa;  (iv) monitoramento constante dos efeitos produzidos pelas novas regras; e (v) possibilidade de revisão das mudanças implementadas e do plano de reforma a partir dos resultados verificados.

E quais as vantagens do método gradual?

Primeira vantagem: processo legislativo

De fato, a abordagem incremental parece ser a mais promissora para a implementação de uma reforma administrativa no Brasil. Isso ocorre, em primeiro lugar, por razões ligadas ao processo legislativo brasileiro e ao elevado grau de constitucionalização do regime jurídico dos servidores públicos.

A aprovação de reformas no regime desta natureza requer profundos debates, negociações e concessões recíprocas entre agentes políticos de diferentes espectros ideológicos. Reformas radicais tendem a obter menos consenso entre parlamentares, o que dificulta sua aprovação, sobretudo na realidade brasileira, na qual muito provavelmente demandam emendas constitucionais, haja vista o alto grau de detalhamento das disposições constitucionais da matéria.

De igual modo, podem suscitar maiores debates quanto à constitucionalidade de suas disposições, aumentando as chances de o assunto desaguar no Poder Judiciário. Ademais, não raro dependem da força política de uma liderança carismática que consiga reunir apoiadores em quantidade suficiente para sua aprovação no parlamento, correndo o risco de se esvaírem caso este líder não esteja mais à frente do processo ainda no curso da reforma[5].

Já as reformas incrementais, por serem menos disruptivas, tendem a enfrentar menos resistência e backlash. Como não alteram de imediato as estruturas de determinada instituição, reúnem menos opositores para tentar barrar sua aprovação ou reverter seus resultados. Além disso, não costumam requerer a aprovação de emendas constitucionais, podendo ser feitas por meio de lei ou até regulamento. Assim, dependem menos da força agregadora de lideranças individuais e podem ser realizadas por agentes políticos de menor envergadura ou até mesmo servidores públicos de carreira que exerçam funções de chefia. Ao encontrarem defensores nos andares de baixo da administração, tendem a uma maior durabilidade do que reformas mais abrangentes[6].

Segunda vantagem: implementação

Em segundo lugar, reformas incrementais possuem uma implementação mais fácil após a sua aprovação. Como não pretendem alterar as fundações do regime vigente, tendem a enfrentar menor resistência interna do que reformas do tipo big bang também em sua fase de implantação e, com isso, a sofrer menos sabotagens na hora de tirar suas normas do papel. Ao se encaixarem com mais facilidade à cultura e às práticas locais, a transição para as novas regras pode obter o apoio de mais lideranças setoriais, o que será fundamental para sua efetivação.

Reformas minimalistas permitem que a administração tenha maior facilidade em desenvolver novas rotinas que permitam a implementação dessas regras, treinar equipes de trabalho para que se familiarizem com as mudanças e dialogar com agentes que ainda assim apresentem oposições às mudanças. Especialmente nos órgãos e entidades que precisam lidar com restrições orçamentárias, falta de pessoal qualificado ou maior desconfiança por parte de seus integrantes às inovações, a implantação gradual de reformas pontuais pode auxiliar na concentração e no direcionamento de esforços financeiros e humanos.

Terceira vantagem: monitoramento

Em terceiro lugar, projetos de cunho minimalista permitem um melhor monitoramento quanto a seus efeitos práticos, seus pontos de êxito e onde ainda são necessários novos ajustes[7]. A coleta de informações e a comparação de cenários antes e após a implantação das mudanças é mais fácil quando estas são mais pontuais. A observação constante e a possibilidade de correção de rotas podem evitar que reformas mal desenhadas ou mal efetivadas produzam resultados catastróficos que agravem processos de degradação institucional[8].

Nas reformas mais profundas, como há uma série de novas normas sendo implementadas de uma só vez, é muito mais difícil isolar variantes e medir o que está e o que não está funcionando adequadamente e quais são as causas para o sucesso ou o fracasso de inovações. Já nas reformas incrementais, é introduzido um conjunto menor de novas regras por vez. Com isso, há mais clareza no acompanhamento dos efeitos dessas mudanças, permitindo-se identificar pontos que demandam aperfeiçoamento, corrigir eventuais descalibragens e aprofundar iniciativas promissoras.

Quarta vantagem: complexidade e incertezas

Um quarto argumento em favor de mudanças graduais é o fato de que reformas do regime da função pública produzem seus efeitos em cenários de complexidade e contextos que mudam a todo momento[9]. Ao pretenderem dar saltos abruptos em terrenos pouco firmes, reformas mais amplas podem deixar de colher dados importantes, que poderiam servir de fundamento para aprimorar seus resultados e evitar uma série de consequências não antecipadas e indesejadas.

Quinta vantagem: nem tudo são críticas

Por fim, um quinto argumento em favor da abordagem incremental especificamente para reformas da função pública é o fato de que o atual modelo não deve ser objeto apenas de críticas. O regime jurídico dos servidores públicos inaugurado pela Constituição de 1988 representou um verdadeiro marco na profissionalização do Estado brasileiro. Sem dúvidas há espaço para aprimorá-lo, mas posturas de rejeição completa ao sistema em vigor sob pretexto de promover a modernização do estado podem produzir mais prejuízo do que benefício em uma sociedade historicamente marcada por práticas clientelistas e empreguistas.

É preciso modernizar o departamento de pessoal do Estado, mas não se pode abrir mão do papel que servidores desempenham na concretização e na defesa do estado democrático de direito. Reformas administrativas promovem ideais importantes, como alocação eficiente de recursos públicos, maior efetividade da atuação estatal e aumento da transparência e da responsividade no setor público. No entanto, o objetivo final de qualquer reforma deve ser promover a capacidade estatal de prestar serviços de qualidade à população, em especial a sua parcela mais carente[10].

[1] WEI, Shang-Jin. Gradualism versus Big Bang: speed and sustainability of reforms. Canadian Journal of Economics, vol. 30, n. 4b, novembro/1997, pp. 1234-1247.WEGRICH, Kai. Incrementalism and its Alternatives. In: GOETZ, Klaus H. (ed.). The Oxford Handbook of Time and Politics. Oxford: Oxford University Press, 2021, p. 16.

[2] LINDBLOM, Charles E. The Science of Muddling Through. Public Administration Review, vol. 19, 1959, p. 81.

[3] GOODIN, Robert E. Political Theory and Public Policy. Chicago: University of Chicago Press, 1982, p. 21. A mesma ideia é defendida em relação à tomada de decisão na administração, pública em: DIONISIO, Pedro de Hollanda. O Direito ao Erro do Administrador Público no Brasil: Contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019, p. 39-42.

[4] HALPERN, David; MASON, Danielle. Radical Incrementalism. Sage Journals, vol. 21, n. 2, 2015, pp. 143-149. BERSCH, Katherine. When Democracies Deliver: governance reform in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2019. ANSELL, Christopher K.; BARTENBERGER, Martin. Varieties of Experimentalism. Ecological Economics, vol. 130, 2016, pp. 64-73.

[5] BERSCH, Katherine. When Democracies Deliver: governance reform in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2019, p. 41.

[6] Idem, ibidem, p. 184-185.

[7] ANSELL, Christopher K.; BARTENBERGER, Martin. Varieties of Experimentalism. Ecological Economics, vol. 130, 2016, pp. 64-73, p. 69. BERSCH, Katherine. When Democracies Deliver: governance reform in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2019, p. 23. SABEL, Charles F.; SIMON, William H. Minimalism and Experimentalism in the Administrative State. The Georgetown Law Journal, vol. 100, 2011, pp. 53-93, p. 80.

[8] BERSCH, Katherine. When Democracies Deliver: governance reform in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2019, p. 186.

[9] Em The Science of Muddling Through, Charles Lindblom destaca que, em cenários de complexidade, agentes públicos não possuem consenso político sobre quais medidas adotar, conhecimento sobre as possíveis consequências de todas as alternativas nem tempo para solucionar as duas primeiras carências (LINDBLOM, Charles E. The Science of Muddling Through. Public Administration Review, vol. 19, 1959, p. 79). Ver também: BENDOR, Jonathan. Incrementalism: dead yet flourishing. Public Administration Review, vol. 75, n. 2, pp. 194-205, p. 196.

[10] GRINDLE, Merilee S. Good Enough Governance: Poverty Reduction and Reform in Developing Countries. Governance: an international journal of policy, administration, and institutions, Vol. 17, n. 4, Out/2004, pp. 525-548, p. 534-535.