Breve introdução e noção de viés
No último dia 2 de outubro, o coordenador do GT da reforma administrativa na Câmara dos Deputados, Pedro Paulo (PSD-RJ), apresentou ao público um texto que revela a presença de diversos vieses, como o gerencialista e o tecnocrático.
Mas o que é viés? Viés é uma tendência ou ponto de partida que influencia a percepção sobre um assunto, funcionando como um “atalho” mental para simplificar informações e agilizar decisões. Pode ser visto como uma lente que distorce a realidade, fazendo com que se valorize certos aspectos em detrimento de outros.
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O presente artigo se concentrará na análise do viés gerencialista e tecnocrático.
Gerencialismo
Doutrina da eficiência como valor supremo, o gerencialismo (ou Estado gerencial) é uma doutrina que propõe uma reestruturação da administração pública com a utilização de ferramentas, técnicas e valores do setor privado. [1]
Também conhecido como Administração Pública Gerencial ou como Nova Gestão Pública (NGP), este paradigma desloca o eixo da governança do controle de processos para o foco em resultados. Seu objetivo é modernizar a máquina pública para torná-la mais ágil, barata e eficiente. [2]
Seu léxico adota termos empresariais como “eficiência, competência, qualidade total, inovação, cultura organizacional, empreendedorismo, gerência”. Tais palavras tornam-se os novos vocábulos para discutir a mudança no setor público.[3]
Os três pilares do gerencialismo são: o foco na eficiência e na efetividade; a visão do cidadão como “cliente”; e a autonomia com responsabilidade gerencial. Vejamos abaixo de forma breve cada um dos pilares.
A eficiência (otimização do uso de recursos) e a efetividade (capacidade de atingir os objetivos propostos e entregar serviços de qualidade) tornam-se os critérios primordiais para avaliar a ação governamental. É o foco na eficiência e efetividade.
Já o cidadão como “ cliente” é a visão de que o cidadão passa a ser visto como um “consumidor” de serviços públicos. E sua satisfação passa a ser um indicador de desempenho.
O modelo propõe maior autonomia para os gestores públicos. Em contrapartida, essa maior autonomia vem acompanhada de uma rigorosa responsabilização (accountability) pelos resultados alcançados.
Problemas do gerencialismo
O gerencialismo é criticado por sua pretensa neutralidade técnica. A transposição de técnicas do setor privado para o público ignora que a lógica pública é pautada por valores como equidade e justiça social, não redutíveis à lógica de mercado.
Dessa forma, o gerencialismo transcende a mera aplicação de instrumentos de gestão para se firmar como uma ideologia. Ele atua como o elemento unificador que estrutura as relações de poder em um Estado descentralizado, apresentando-se simultaneamente como uma teoria de governança e um compromisso político.
Tecnocracia
Primazia do saber técnico sobre a vontade política, a tecnocracia propõe a substituição da decisão política pela decisão técnica, defendendo que o poder legítimo é aquele exercido em nome do saber.
Esse “saber” é reduzido à sua forma técnico-científica, elevando o conhecimento dos especialistas acima de outras formas, como a popular ou deliberativa. [4]
A política é vista como um obstáculo a ser superado, e as convenções democráticas são desvalorizadas em favor da seleção de líderes com base em sua competência, tornando a delegação de poder a especialistas uma solução aparentemente racional.
Viés gerencialista e tecnocrático presente na PEC da reforma administrativa
Ultrapassadas as breves noções de gerencialismo e tecnocracia, adentremos na PEC. Da leitura da proposta, percebe-se a presença do viés gerencialista e tecnocrático.
Conforme a definição apresentada, esse viés enquadra a administração pública como uma organização que deve ser gerida com a mesma lógica de eficiência, metas e resultados do setor privado.
Comprovando o viés, observa-se que a PEC apresenta i) foco em ferramentas de Gestão; ii) adoção da “meritocracia quantitativa”; iii) o estabelecimento da primazia da Decisão Técnica sobre a Política.
O Estado como uma organização orientada para resultados
Pela proposta, o Estado passa a ser enquadrado como uma organização que precisa “entregar resultados”, com a legitimidade do governo dependendo do alcance de metas quantificáveis, similar a uma empresa.
Para isso, a PEC impõe um “Ciclo de Gestão Obrigatório”. Detalhado no Art. 38-A, a reforma estabelece uma cadeia de instrumentos de gestão interligados como o planejamento estratégico (art. 28 § 1º), acordo de resultados (art. 38-A, I) e avaliação de desempenho derivado do acordo de resultados (art. 38-A, II).
O agente público como “gerente de si mesmo”
O servidor público ideal será aquele que se comportar como um “gestor” ou “empreendedor” de sua própria carreira, motivado por incentivos para atingir metas.
A relação com o trabalho é individualizada e competitiva, e a remuneração passa a ter um componente variável, como no setor privado.
Na PEC, essa lógica se manifesta nos seguintes pontos:
a) Bônus por Resultado (37, inciso XI-A): A proposta institui o bônus de resultado como um prêmio financeiro para os agentes públicos que atingem as metas. Isso introduz a lógica da remuneração variável, um dos principais instrumentos do gerencialismo, que pode até mesmo alcançar quatro remunerações mensais para cargos estratégicos.
b) Progressão Condicionada (38-A, § 3º): A progressão na carreira deixa de ser um direito associado ao tempo de serviço e à capacitação, e passa a ser condicionada à existência e implementação dos instrumentos de gestão, como os acordos de resultados e as avaliações de desempenho. Ou seja, para progredir, o servidor precisa se engajar e ter sucesso dentro do novo modelo.
c) Critério de Seleção: O art. 39-A, que trata da avaliação de desempenho, estabelece como um de seus objetivos “valorizar e reconhecer os agentes públicos que alcancem os objetivos e metas pactuados, inclusive para nomeação para cargos em comissão e designação para funções de confiança”.
A primazia da decisão técnica sobre a política (o lado tecnocrático)
A tecnocracia é o braço do gerencialismo que busca substituir o debate político por soluções supostamente “técnicas”, “neutras” e “eficientes”. Problemas complexos, como a alocação de recursos públicos, são retirados da arena política e tratados como questões de gestão que especialistas devem resolver com base em dados e evidências.
No texto da PEC, isso é observado em:
a) Revisão “técnica” de gastos: (Art. 165, § 2º-A) A PEC determina que o Executivo realize uma revisão de gastos contínua com o objetivo de realocar recursos para políticas públicas “mais eficazes e eficientes”. A definição do que é “eficaz” ou “eficiente”, no entanto, é uma decisão profundamente política, mas que aqui é apresentada como uma conclusão técnica.
b) Filtros técnicos para novas políticas (37, § 17): Para criar ou expandir uma política pública, a proposta exige uma avaliação prévia simplificada que demonstre sua compatibilidade com os instrumentos de gestão e governança e que contenha metas consistentes com os objetivos. Isso cria uma barreira técnica que pode dificultar a implementação de políticas que respondam a demandas sociais urgentes, mas que ainda não foram “validadas” pelo aparato tecnocrático.
c) Extinção de cargos baseada em “estudo técnico” (84, § 2º): A decisão de extinguir cargos públicos ocupados por servidores estáveis — uma ação com grande impacto social e político — deve ser fundamentada em um “estudo técnico” que demonstre a “vantajosidade administrativa”. A decisão é, assim, legitimada por um verniz de objetividade técnica.
Accountability de resultados vs. accountability democrática
No gerencialismo, a accountability é primariamente vertical e baseada em resultados: o gestor presta contas a seus superiores pelo cumprimento de metas e indicadores de desempenho. Na tecnocracia, a accountability se dá por meio da revisão por pares (peer review): a validade de uma decisão técnica é aferida por outros especialistas da mesma área.
O problema é que essa accountability de performance não substitui a accountability democrática. A accountability de performance medirá o quão bem a política foi executada, mas não questionará a validade de seus objetivos. A accountability democrática, por outro lado, permite que os cidadãos responsabilizem o governo não apenas pela eficiência com que implementa suas políticas, mas, sobretudo, pela direção e pelos valores que essas políticas encarnam.
Conclusão
O viés gerencialista e tecnocrático da PEC busca reformar o Estado brasileiro a partir de uma matriz de pensamento que valoriza a eficiência econômica e a gestão por resultados acima de outros valores públicos, como a deliberação democrática e o controle social do poder.
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Essa abordagem promove uma sutil, porém profunda, ressignificação dos papéis do Estado, do servidor e do próprio cidadão.
O debate sobre a reforma administrativa abarca o modelo de Estado que desejamos: é aquele que se legitima pela eficiência de seus gestores e pela objetividade de seus técnicos, ou aquele que encontra sua legitimidade na deliberação pública e na transparência de seus processos políticos?
Fica a pergunta: qual modelo será o melhor para as gerações presentes e futuras?
[1] ROCHA, Carla Giani da; DUARTE, Monique Regina Bayestorff (Org.). Administração Pública na prática: e-book 2019. Florianópolis: Conselho Regional de Administração de Santa Catarina, 2019. Pág 30.
[2] BERRY CONSULTORIA EMPRESARIAL. O que é nova gestão pública?. Berry Consult Blog, 2025. Disponível em: https://berryconsult.com/blog/o-que-e-nova-gestao-publica. Acesso em: 7 out. 2025. Pág 02.
[3] BARROS, Larissa de Araujo; SOUZA, Débora Quetti Marques de. O gerencialismo e seus impactos na gestão da escola pública. Sala 8 – Revista Internacional em Políticas, Currículo, Práticas e Gestão da Educação, v. 1, n. 4, p. 8-31, 2023, pág. 12.
[4] LELLO, Ricardo Caldeira de. Reflexões sobre o conceito de tecnocracia em Platão, Saint-Simon e Veblen. 2010. Monografia (Bacharelado em Ciências Econômicas) – Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Pág. 22..