Reforma administrativa e enfrentamento à desigualdade de gênero no setor público

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O cenário da desigualdade no serviço público brasileiro revela uma contradição estrutural entre forças de mudança e permanência. De um lado, observa-se o avanço de mecanismos impulsionados por iniciativas do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, pela criação de instrumentos como o Concurso Nacional Unificado (CNU) e pela aprovação de novas legislações voltadas à inclusão; de outro, persistem instituições informais enraizadas na cultura burocrática que limitam o alcance dessas transformações.

A pressão institucional tem surtido efeitos na “porta de entrada”, com ampliação do acesso e redistribuição de oportunidades nos concursos e processos seletivos, mas há uma falha evidente na desconexão entre essa base e o topo da hierarquia estatal. Enquanto as regras garantem maior diversidade no ingresso, a estrutura de liderança mantém-se desigual.

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O contraste entre o sucesso das políticas de inclusão e a persistência da desigualdade vertical evidencia que, apesar das mudanças normativas, o poder e o prestígio continuam a ser majoritariamente ocupados por homens brancos nas posições de comando.

Os dados divulgados pelo Movimento Pessoas à Frente (2024) demonstram esse efeito de funil, enquanto as mulheres são maioria no total de servidores federais, sua participação despenca à medida que a hierarquia avança, caindo para apenas 27% nos cargos do topo da burocracia.

A participação feminina no funcionalismo federal ativo é de 45,2% na amostra total, mas despenca para 42,4% nos cargos em Comissão Executivos (CCE), e Funções Comissionadas Executivas (FCE) e atinge seu ponto mais baixo, 27,0%, nos cargos de Natureza Especial.

No Poder Judiciário, o padrão se repete: o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), reportou que as mulheres tiveram apenas 11,1% das nomeações para tribunais superiores entre 2000 e 2021. No recorte racial, o problema se intensifica: mulheres negras, que representam 28% da população brasileira, ocupam apenas 15% dos cargos de liderança (MOVIMENTO PESSOAS À FRENTE, 2024).

A remuneração média de servidores do governo federal por sexo também evidencia a desigualdade. Ao longo de mais de duas décadas, a remuneração masculina se manteve consistentemente superior à feminina. Em 2022, enquanto a média salarial masculina se aproximava de R$ 11.500, a feminina ficava abaixo de R$ 9.500, refletindo a concentração de mulheres em cargos de menor remuneração e menor poder hierárquico.

Esse contexto de desigualdade tem suscitado demandas da sociedade civil e iniciativas de resposta do governo federal e do Poder Legislativo. O CNU, que em sua primeira edição em 2025, apresentou importantes resultados no que se refere à mobilidade social. Uma análise conjunta do Ipea e do MGI (2025) revelou que o CNU gerou um aumento médio de remuneração de 2,1 vezes para os candidatos aprovados, com ganhos ainda mais significativos para mulheres e minorias raciais.

Em relação ao acesso no topo da hierarquia, o Decreto 11.443/2023 buscou romper a exclusão racial, estabelecendo a meta de 30% de ocupação por pessoas negras nos Cargos Comissionados Executivos (CCE) e Funções Comissionadas Executivas (FCE) até 2025.

O Programa Federal de Prevenção e Enfrentamento do Assédio e da Discriminação (PFPEAD), instituído pelo Decreto 12.122/2024, e a instituição do Plano Nacional de Igualdade Salarial são esforços de coerção formal que visam impor um ambiente de trabalho íntegro.

Ainda, nesse ano entrou em vigor a Lei 15.177/2025 estabelece a reserva mínima de 30% das vagas para mulheres nos conselhos de administração de empresas estatais, determinando ainda que 30% dessas vagas sejam destinadas a mulheres negras ou com deficiência. Já a Lei 15.142/2025, determina reserva às pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas o percentual de 30% das vagas oferecidas nos concursos públicos.

No entanto, essas são iniciativas fragmentadas. Apesar desses avanços, trata-se de um problema estrutural que precisa ser enfrentado por meio de reformas que envolvam todos os entes federativos e níveis da administração pública. Por essa razão, a reforma administrativa inclui propostas que buscam atacar diretamente essa questão pensando de forma mais global.

O eixo de Profissionalização inclui uma área de Políticas para as Mulheres. As medidas propostas abrangem diferentes dimensões da vida funcional e institucional. No campo disciplinar, a tipificação do assédio sexual como ato de improbidade administrativa busca fortalecer os mecanismos de responsabilização.

Em relação à proteção e permanência no trabalho, prevê a remoção prioritária e o teletrabalho sigiloso para servidoras vítimas de violência doméstica. No âmbito dos direitos sociais, estende a licença-maternidade de 120 dias e a estabilidade provisória às mulheres com vínculos temporários e comissionados.

A proposta também institui políticas obrigatórias de apoio a gestantes, lactantes e cuidadoras, incluindo prioridade para remoção e oferta de creches. Além de reforçar a política de cotas, determinando uma cota mínima de 30% de mulheres em cargos de liderança e nos conselhos de estatais.

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Ao atacar questões centrais de desigualdade e assédio no setor público, a proposta avança ao criar mecanismos de proteção, com destaque para a atenção às mulheres com vínculos temporários. Também busca enfrentar a desigualdade no acesso aos cargos de liderança, o chamado “teto de vidro”.

No entanto, ao concentrar esforços na avaliação de desempenho sem explicitar como o sistema levará em conta as dimensões de desigualdade, a reforma pode não atingir os efeitos pretendidos nem alterar as dinâmicas informais que sustentam a desigualdade vertical.

Essas dinâmicas envolvem redes de confiança, padrões de recrutamento e práticas de nomeação que reproduzem a concentração de poder nos grupos tradicionalmente dominantes. Embora as medidas ampliem a proteção e a presença das mulheres no serviço público, seu impacto sobre as hierarquias internas e os mecanismos informais de exclusão tende a ser limitado sem mudanças mais amplas na cultura organizacional e nos critérios de seleção para os cargos de direção.


AGÊNCIA SENADO. Lei amplia a 30% as vagas para negros, indígenas e quilombolas em concursos. 2025.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Diagnóstico da Participação Feminina no Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2019.

BRASIL. Ministério do Trabalho e Previdência. Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Brasília: MTP, 2021.

ENAP (Escola Nacional de Administração Pública). Datathon: desigualdades de gênero no serviço público / Escola Nacional de Administração Pública. — Brasília: Enap, 2024.

IPEADATA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Concurso Unificado impulsiona mobilidade social e amplia diversidade no serviço público. Brasília: IPEA, 2025.

MOVIMENTO PESSOAS À FRENTE. Desigualdade de gênero em cargos de liderança no Executivo Federal. Nota Técnica 2024. [S.l.]: Movimento Pessoas à Frente, 2024.