Reflexões sobre a tributação dos milionários

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Jean-Baptiste Colbert, o ministro de finanças de Luis XIV, cunhou no século 17 a seguinte parêmia: “A arte de tributar consiste em depenar o ganso de modo a obter a maior quantidade possível de penas com o menor número possível de grasnidos.” Ainda hoje, afloram exemplos de gansos receosos da integridade corporal diante da volúpia de quem lhes retira as penas para além do razoável.

Não são raras na história da tributação as incursões dos governos no patrimônio dos mais abastados mediante a instituição de impostos sobre a “fortuna líquida”, ou “net wealth tax”, como é conhecido globalmente. Não se trata de impostos sobre a renda. São cobrados sobre a “fortuna líquida”, ou seja, o total do patrimônio do cidadão subtraído de alguns diminuendos, tais como dívidas, por exemplo. Em outras palavras, além do imposto sobre a renda, o indivíduo que detém uma “fortuna líquida” acima de um determinado valor estará sujeito, também, ao “net wealth tax” nos países onde ele vigora.

No Brasil, o imposto sobre a riqueza foi batizado de “imposto sobre grandes fortunas” pela Constituição de 1988. A primeira dificuldade com a qual o intérprete do texto se depara ao decodificar o artigo 153, inciso VII da Constituição Federal é a definição do que seja “grande fortuna”. A Carta Magna tomou o cuidado de qualificar a “fortuna”. Não é “qualquer fortuna” que pode ser alcançada pelo imposto. É uma “grande fortuna”.

A norma constitucional não nos oferta nenhuma pista do que seja uma “grande fortuna”, apesar de os fundamentos do trabalho e da livre iniciativa expressos já no artigo 1º e reforçados no artigo 170 apontarem para a perspectiva de que o montante de ativos empregados pelas pessoas e empresas na atividade produtiva não devam compor o somatório utilizado para a apuração dessa grandeza.

A interpretação dos conceitos legais não encontra dificuldades quando estamos nos extremos destes conceitos. Por exemplo: certamente teremos muitos adeptos à assertiva de que um patrimônio líquido de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) se encaixa no epíteto de “grande fortuna”. Porém, qual seria o número desses adeptos se reduzíssemos esse montante para R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais)? Que tal R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais)? Quando nos afastamos dos extremos, as subjetividades afloram e fica mais difícil fechar acordos semânticos em torno dos conceitos legais. Penso que um acordo em torno do que seja “grande fortuna” carrega uma alta carga de subjetividade, aumentando a complexidade no desenho de suas fronteiras.

Em 1990, eram doze os países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que cobravam impostos sobre a fortuna líquida. Em 2017, esse número caiu para quatro – França, Noruega, Espanha e Suíça – e em 2018 a França o substituiu por um imposto sobre a fortuna imobiliária. Questões como eficiência e custos administrativos, especialmente em comparação com as receitas limitadas que tendem a gerar, levaram à sua revogação em muitos países.

Recentemente, preocupações com redistribuição de renda e desigualdade social renovaram o interesse pelo “net wealth tax”. Não há, entretanto, dados empíricos que demonstram melhoria desses fatores nos países que o mantinham ou ainda mantêm. Aliás, pelo contrário, conforme demonstra Samuel Sturgis, em seu artigo “The Wealth Tax — Egalitarian Dream or Utilitarian Nightmare?” (Lousiana Law Review).

Millôr Fernandes não se referiu a gansos quando refletiu sobre a tributação, mas deixou registrado: “me arrancam tudo à força, e depois me chamam de contribuinte”.

Melhor do que um imposto sobre a fortuna líquida, é um imposto sobre a renda realmente progressivo (o atual, no Brasil, não é), um governo que gaste somente o que arrecada e que estimule o crescimento econômico dos mais pobres ao invés de tentar tributar os mais ricos para além do razoável, evitando assim “grasnidos” em excesso e fuga de gansos para outras paragens.