Reflexões sobre a Doutrina da Estrutura Básica indiana

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I

Esse artigo foi inspirado pelo convite de um grande amigo – o brilhante David Sobreira, host do podcast Onze Supremos[1] – para gravarmos um episódio sobre a Doutrina da Estrutura Básica indiana. Antes de falar sobre essa fascinante teoria constitucional, compartilho algumas reflexões geradas pelo convite.

Certamente ainda soa, entre nós, um tanto exótico estudar teorias constitucionais originárias da Índia. Embora o Brasil não tenha escapado à tendencia mundial de crescimento do direito constitucional comparado como disciplina acadêmica[2], seguimos inseridos na lógica tradicional do eixo norte-sul global, em que dedicamos grande parte de nossas energias para estudar o desenvolvimento constitucional dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Há muito mais escrito comparando o Brasil e os Estados Unidos, ou o Brasil e a Alemanha, por exemplo, do que há estudos sobre o que o direito constitucional brasileiro tem em comum com os nossos vizinhos sul-americanos.

A nível mundial, vem crescendo no direito constitucional comparado o estudo focado em outro tipo de “vizinhança”, uma vizinha de circunstâncias comuns, do colonialismo, aos desafios do crescimento populacional, à busca pelo desenvolvimento econômico. O constitucionalismo do Sul-Global incentiva os estudos comparativos entre países geograficamente distantes, mas com características similares, e que têm muito a aprender uns com os outros[3]. E não faltam objetos de estudo riquíssimos, incluindo duas das experiências constitucionais mais interessantes do século 20, a sul-africana e a indiana.

A maior democracia do mundo (apesar dos desafios constantes de se manter nessa classificação[4]) tem uma das mais antigas constituições do constitucionalismo contemporâneo, inaugurado ao fim da Segunda Guerra Mundial[5]. A Constituição indiana data de 1950, e foi precedida do processo de independência do país – até então colônia britânica – e de uma Assembleia Constituinte que debateu durante mais de três anos[6]. O resultado foi uma Constituição tão analítica quanto a nossa, guardadas as devidas proporções de tamanho e pluralidade dos dois países: quando entrou em vigor, a Constituição da Índia já contava com quase quatrocentos artigos[7].

Em mais de 70 anos de história constitucional, a Índia enfrentou inúmeros desafios políticos e jurídicos para manter a sua Constituição viva, muitos dos quais guardam paralelos instigantes com a nossa história constitucional recente, e com os quais certamente temos valiosas lições para aprender. A doutrina da estrutura básica é apenas um capítulo dessa história – talvez o mais conhecido capítulo da história constitucional indiana, e certamente o mais estudado em termos comparados. É motivo mais do que suficiente para celebrar o convite de pensar, ainda que brevemente, sobre ele e sua relação com o Brasil.

II

A Doutrina da Estrutura Básica surgiu no contexto de uma disputa política entre o legislativo e o judiciário pela regulamentação da reforma agrária[8]. É preciso lembrar que o projeto constitucional indiano era, na origem, pautado por um socialismo radical, bem como que, nas primeiras décadas após a independência, o país era governado por um partido forte, que detinha uma tranquila maioria no Congresso Nacional e amplo apoio popular[9].

Nesse contexto, logo nos primeiros anos de vigência da Constituição indiana, o Congresso produziu diversas leis voltadas à implementação da reforma agrária que, por sua vez, foram questionadas perante o judiciário, principalmente em razão do direito constitucional à propriedade. A declaração de inconstitucionalidade dessas leis levou o Congresso Indiano a passar a usar emendas constitucionais para implementar a reforma[10].

O processo de emenda à constituição originalmente previsto na Constituição da Índia, assim como no Brasil, não é particularmente desafiador, consistindo na necessidade de se obter uma maioria qualificada no Congresso[11]. Considerando que a Índia era governada por um partido amplamente majoritário, essa “facilidade” resultou em um grande número de emendas: no início dos anos 1970, pouco mais de 20 após a aprovação da Constituição, já haviam sido aprovadas mais de 30 emendas[12].

A reação inicial da Suprema Corte Indiana, quando confrontada com a primeira emenda voltada a viabilizar a reforma agrária (que, por consequência, limitava o direito constitucional à propriedade) foi de afirmar o poder do Congresso de emendar qualquer parte da Constituição[13].

A posição era condizente com o momento histórico e com o espírito do processo de constitucionalização indiano. Os historiadores se referem ao documento constitucional indiano de 1950 como um processo futurista: a Constituição era vista como o pontapé inicial de uma revolução, como o mapa desenhado para viabilizar mudanças fundamentais naquela sociedade[14]. Essa visão constitucional – muito diferente da americana, por exemplo – é importante para analisar criticamente a existência e o desenvolvimento da Doutrina da Estrutura Básica, como veremos a seguir.

Apesar dessa primeira vitória na Suprema Corte, o Congresso Indiano continuou expandindo o seu projeto de reformas sociais através da Constituição, e a corte começou a mostrar fissuras em sua posição de não interferir com a vontade política por trás das emendas[15]. Em 1967, no caso Golaknath, a Suprema Corte voltou atrás em sua interpretação anterior, de que a Constituição dava amplos poderes de reforma ao Congresso, e advertiu que limites poderiam ser impostos (sem, no entanto, indicar quais seriam esses limites)[16].

A reação do Congresso, então controlado pelo governo de Indira Gandhi, foi a aprovação de novas emendas à Constituição indiana, que introduziram uma autorização expressa no texto constitucional, reafirmando o poder ilimitado do Congresso de emendar a Constituição, cingiram o poder do judiciário de realizar o controle de constitucionalidade, e avançaram nas restrições ao direito de propriedade, objeto inicial da disputa com o judiciário[17].

Foram essas emendas que enfim deram origem ao caso que ficou conhecido como o ponto de nascimento da Doutrina da Estrutura Básica. Em 1973, Sri Kesavananda Bharati, o líder de uma instituição religiosa hindu do estado de Kerala, questionou perante a Corte Estadual a política de restrição de propriedade de terras, que afetava diretamente a instituição religiosa. Assim chegou à Suprema Corte indiana o caso Kesavananda Bharati v. State of Kerala[18], que viria a se tornar o mais icônico precedente já produzido pela corte.

Três características do caso Kesavananda o marcaram, desde o momento em que foi julgado, como especial. O caso foi decidido pelo maior painel de juízes da história da Suprema Corte indiana até então – um grupo de 13 juízes foi convocado para ouvir os argumentos das partes e decidir o caso[19].

O resultado, após seis meses de julgamento, foi um dos mais longos acórdãos da história da corte indiana, com mais de 400 páginas. Mas a fama de Kesavananda se deve principalmente ao fato de que a opinião da apertada maioria (o caso foi decidido por 7 votos a 6) delineou a doutrina da estrutura básica.

A Doutrina da Estrutura Básica é, em essência, uma limitação ao exercício do poder constituinte de reforma exercido pelo Congresso. Curiosamente, a corte indiana não declarou a inconstitucionalidade da emenda constitucional (a 24ª) que havia sido aprovada em resposta ao julgamento do caso Golaknath. Ao invés disso, a corte confirmou que o Congresso teria o poder de emendar qualquer dispositivo da Constituição, mas esclareceu que essas emendas somente seriam válidas se não resultassem em danos ou destruição da estrutura básica da Constituição – e que quem decidiria isso seria o poder judiciário[20].

Como o precedente mais estudado da história indiana recente, e dado o tamanho do acórdão e a quantidade de votos, há intenso desacordo acadêmico sobre o conteúdo e o alcance do caso Kesavananda[21]. Numa colocação que soará familiar a qualquer constitucionalista brasileiro, doutrinadores indianos que estudaram os 11 votos proferidos a fundo afirmam que é difícil discernir os pontos com os quais uma maioria clara concordou[22]. Não houve consenso, naquele momento, a respeito do que consistiria a “estrutura básica” da Constituição, e nem se definiu em termos exatos como uma emenda poderia lhe causar “danos ou destruição”.

Há poucas dúvidas, no entanto, de que o fato de que essas questões foram deixadas em aberto pela corte foi fundamental para a sobrevivência e o sucesso da Doutrina da Estrutura Básica. Ela foi desenvolvida e aplicada em inúmeros precedentes posteriores da Suprema Corte, em que sofreu alterações, expansões e restrições[23]. Essa plasticidade serviu bem ao propósito de fazer frente às críticas que foram feitas à doutrina ao longo dos anos, exceto por exacerbar a que talvez seja a mais fundamental: a crítica acerca da legitimidade democrática do arranjo da doutrina da estrutura básica[24].

III

O controle judicial de constitucionalidade de emendas constitucionais é visto no Brasil com tanta naturalidade que pode ser difícil, à primeira vista, ter empatia com os desafios lançados sobre a doutrina da estrutura básica. Existe, naturalmente, uma diferença fundamental entre a Constituição brasileira e a indiana no ponto que está em debate: entre nós, a “estrutura básica” da Constituição, aquela protegida até mesmo do poder constituinte reformador do Congresso, está prevista no texto original da Constituição, na forma das cláusulas pétreas.

Embora o fato de que foi o do constituinte originário a ideia de proteger determinados aspectos da Constituição de futuras reformas deva, por si só, mitigar em alguma medida caber ao judiciário, um órgão não eleito, o poder de invalidar a vontade de uma maioria qualificada do Congresso Nacional, a previsão expressa está longe de resolver de forma definitivo o desafio democrático imposto pelas chamadas cláusulas constitucionais de eternidade.

O desafio é tão antigo quanto o próprio constitucionalismo moderno. Quando a mais antiga Constituição do mundo estava sendo escrita, esse desafio foi personificado pelo debate entre James Madison e Thomas Jefferson, dois dos pais fundadores americanos.

Madison e Jefferson discordavam sobre a possibilidade de se alterar uma Constituição; enquanto Madison defendia que o documento constitucional deveria ter vocação de eternidade – uma capacidade de resistir ao tempo e aos sabores das mudanças políticas eventuais – Jefferson insistia que, com o passar do tempo, uma Constituição imutável se tornaria imprestável, deixando de ser um veículo para liberdade e republicanismo para se tornar uma tirania de gerações anteriores sobre a geração atual.

Em um dos melhores textos do constitucionalismo americano contemporâneo, Cass Sunstein, como introdução ao seu livro sobre interpretação constitucional, A Constitution of Many Minds, escreve sobre o debate Madison vs. Jefferson, e chama o capítulo de “A vingança de Jefferson”[25]. Isso porque um breve olhar sobre a Constituição dos Estados Unidos atual revelaria que a visão de Madison prevaleceu: mais de dois séculos depois de sua promulgação, a Constituição americana permanece em vigor, virtualmente inalterada, com pouco mais de 20 emendas.

Mas um olhar mais cuidadoso sobre o desenvolvimento constitucional americano revela que aquele texto constitucional se tornou, na verdade, muito mais flexível do que mesmo Jefferson poderia imaginar. Através da interpretação de suas cláusulas abertas, em especial pelo exercício do controle de constitucionalidade, a Constituição dos EUA certamente suportou mais do que uma mudança fundamental a cada geração, como pretendia Jefferson, e essas mudanças são tidas por responsáveis por sua notável longevidade[26].

Quando são lançados desafios sobre o poder que a doutrina da estrutura básica empresta ao judiciário – de literalmente ditar os rumos da mudança constitucional – é importante perceber que esse poder não é tão diferente num contexto, como o Indiano, em que a Suprema Corte tomou esse poder para si de forma expressa e anunciada, do que no contexto brasileiro, em que o poder foi concedido pelo constituinte originário, ou nos Estados Unidos, em que o constituinte imaginava que tal poder sequer seria necessário, e que mesmo o judiciário que o exerce o faz, muitas vezes, de forma implícita.

Em todos os casos, o judiciário é o veículo que empresta elasticidade à Constituição, sem a qual indubitavelmente ela teria poucas chances de sobreviver a longo prazo. No entanto, em um país como os Estados Unidos – em que os pais fundadores e o momento constituinte são venerados, e o projeto constitucional é pensando visto como o produto pronto e acabado de como um estado deve ser organizar, copiado mundo afora – a dificuldade em aceitar a plasticidade constitucional é certamente maior do que a de um país que sempre viu sua Constituição como um projeto em construção, como a Índia.

Essa dualidade deveria emprestar a nós, brasileiros, a oportunidade de refletir sobre o que as cláusulas pétreas, seu tratamento pelo Supremo Tribunal Federal e sua aceitação pela sociedade, dizem sobre a nossa relação com o momento constituinte de 1988. A resposta não caberia nesse breve artigo, mas é um exemplo da riqueza que as reflexões do direito constitucional comparado podem nos proporcionar.

[1] Disponível em: https://open.spotify.com/show/7nqx1ZxXvUNseytoWbMS1x.

[2] Sobre o crescimento do direito constitucional comparado, ver HIRSCHL, Ran. Comparative Matters: The Renaissance of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford University Press, 2014.

[3] DANN, Philipp; RIEGER, Michael; BONNEMANN, Maxim. The Global South and Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford University Press, 2020.

[4] O V-Dem, índice que mede a qualidade das democracias no mundo, vem reportando constantemente o decaimento dos indicadores da democracia indiana, que atualmente está classificada, segundo seus critérios, como uma autocracia. Ver: https://v-dem.net/.

[5] Essa divisão de dois momentos da história do constitucionalismo no mundo possui diversas fontes. Um relato interessante está em ACKERMAN, Bruce. The Rise of World Constitutionalism. Virginia Law Review, vol. 83, nº 4, 1997.

[6] CHOUDRY, Sujit; KHOSLA, Madhav; MEHTA, Pratap Bhanu; The Oxford Handbook of the Indian Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2016.

[7] A versão completa da Constituição Indiana pode ser acessada em: https://www.constituteproject.org/.

[8] KRISHNASWAMY, Sudhir. Democracy and Constitutionalism in India: A Study of the Basic Structure Doctrine. Oxford: Oxford University Press, 2011.

[9] KOCHANEK, Stanley A. The Congress Party of India: The Dynamics of a One-Party Democracy. Princeton: Princeton University Press, 2016.

[10] KRISHNASWAMY, Sudhir, 2011.

[11] CHOUDRY, Sujit; KHOSLA, Madhav; MEHTA, 2016.

[12] CHOUDRY, Sujit; KHOSLA, Madhav; MEHTA, 2016.

[13] Sri Sankari Prasad Singh Deo vs Union Of India And State Of Bihar(And … on 5 October, 1951, disponível em: https://indiankanoon.org/doc/1706770/.

[14] India’s Basic Structure Doctrine: Past, Present, and Future –  In Conversation With Moiz Tundawala And Anuj Bhuwania. Disponível em: https://revdem.ceu.edu/2023/07/12/indias-basic-structure-doctrine/.

[15] KRISHNASWAMY, Sudhir, 2011.

[16] I. C. Golaknath & Ors vs State Of Punjab & Anrs.(With Connected … on 27 February, 1967. Disponível em: https://indiankanoon.org/doc/120358/.

[17] KRISHNASWAMY, Sudhir, 2011.

[18] Kesavananda Bharati Sripadagalvaru … vs State Of Kerala And Anr on 24 April, 1973, disponível em: https://indiankanoon.org/doc/257876/.

[19] A Suprema Corte é composta por mais de 30 juízes, mas as decisões são proferidas por painéis menores, que são convocados para decidir os casos. Ver Supreme Court in India: Importance, Functions, and Powers, disponível em: https://www.lloydlawcollege.edu.in/blog/supreme-court-india.html.

[20] KRISHNASWAMY, Sudhir, 2011.

[21] KRISHNASWAMY, Sudhir, 2011; DHAVAN , Rajeev. The Supreme Court of India and Parliamentary Sovereignty: A Critique of its Approach to the Recent Constitutional Crisis, 15 J. Indian L. Inst. 17, 141 (1976); VENKATESAN, V., Why Uncertainty Still Surrounds the Birth of the ‘Basic Structure Doctrine’, disponível em: https://thewire.in/law/basic-structure-doctrine-india-constitution-democracy.

[22] Idem.

[23] KRISHNASWAMY, Sudhir, 2011; VENKATESAN, V., 2020.

[24] KRISHNASWAMY, Sudhir, 2011.

[25] SUNSTEIN, Cass. A Constitution of Many Minds: Why the Founding Document Doesn’t Mean What it Meant Before. Princeton: Princeton University Press, 2009, p. 1-16.

[26] Idem.