Por força da Súmula Vinculante 24, publicada em 11 de dezembro de 2009, hoje entendemos que o Ministério Público não pode denunciar por crimes contra a ordem tributária antes do lançamento do tributo. E a partir do julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) do Recurso Extraordinário 631.240, na sessão de 27 de agosto de 2014, passamos a compreender que o prévio requerimento administrativo por parte do segurado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é indispensável para a propositura de demanda judicial.
A SV 24 e o acórdão do RE 631.240 são exemplos de entendimentos jurisprudenciais que prestigiaram a atividade administrativa estatal como certificadora da existência do interesse de agir, seja do Ministério Público nos crimes tributários, seja dos segurados do INSS nas demandas previdenciárias. Entendeu-se que, antes de pronunciamentos formais das autoridades fazendária e previdenciária, não faria sentido acionar o Judiciário para alegar sonegação de tributo não lançado ou para pedir a concessão de benefício que não foi negado pelas autoridades administrativas competentes.
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Intensos debates doutrinários e judiciais precederam a edição da SV 24 e o acórdão do RE 631.240. Isso porque, com a superação do regime político autoritário precedente, as primeiras décadas de vigência da Constituição de 1988 foram marcadas por desconfiança em relação ao Estado-Administração e seus agentes, que se refletia em posturas do sistema judiciário desalinhadas com noções básicas das teorias gerais do Estado, do Processo e do Direito Penal.
O Judiciário e o Ministério Público surgiam como salvaguardas da sociedade, diante de uma administração especializada em maltratar o cidadão. Era nesse contexto maniqueísta que se inseria o clima pouco colaborativo entre as esferas de poder estatal, marcado por descrédito das autoridades administrativas fazendárias e previdenciárias.
Embora houvesse consenso doutrinário sobre a noções de que o Estado é uno, agentes do sistema de justiça lançavam mão de argumentações que pressupunham que o aparelho estatal seria composto por esferas desconexas de competência. Embora concordando com a noção de que a jurisdição seria função subsidiária e substitutiva, voltada a resolver problemas já existentes que não foram resolvidos por outras formas, endossavam teorias que colocavam o Judiciário como espaço ideal para o surgimento de conflitos, e não para sua resolução. Embora endossassem a tese de que o direito penal seria a ultima ratio, usavam o processo criminal para passar por cima da função administrativa.
Por anos, o Ministério Público arrogou-se ao direito de denunciar supostos sonegadores de tributos, antes mesmo do pronunciamento definitivo da administração tributária sobre a existência ou inexistência do crédito.
Argumentava-se: que o direito penal ostenta autonomia frente ao direito tributário; que a denúncia antecipada era forma de proteger a ordem jurídica e prevenir a continuidade de práticas ilícitas; que o órgão ministerial seria independente para formar sua opinião sobre autoria e materialidade do crime, pouco importando a opinião da autoridade fazendária competente; que a propositura da denúncia antes da constituição do crédito aumentaria a efetividade da persecução penal, evitando a prescrição.
De forma semelhante, na seara previdenciária, advogados argumentavam: que a inafastabilidade do Judiciário prevista no inciso XXXV do art. 5º da Constituição seria incompatível com a exigência de prévio pedido administrativo perante o INSS; que a instauração de instância administrativa atrasaria a fruição do direito; que a esfera judicial seria independente da administrativa.
Além disso, havia aqueles que buscavam confundir o debate, equiparando as noções de prévio requerimento e de prévia negativa administrativa ao esgotamento da via administrativa, na tentativa de associá-las a uma afronta à garantia da inafastabilidade da jurisdição.
Nas últimas décadas, o Brasil tem experimentado um amadurecimento de sua democracia, que se reflete pontualmente na esfera judicial, a exemplo do que observamos na SV 24 e no acórdão do RE 631.240, que sinalizam a superação do clima de desconfiança que prevaleceu contra o Poder Público nas primeiras décadas após a promulgação da Constituição.
Mas é necessário avançar. Não basta saber em abstrato o que é o interesse de agir; não basta admitir a unicidade do Estado; não basta compreender que o Estado-Administração não existe para maltratar os cidadãos; não basta reproduzir o mantra de que o direito penal é ultima ratio.
Para além da discussão específica que fundamentou o RE 631.240 e a SV 24, é preciso levar a sério essas noções e aplicá-las sistematicamente na concretude do mundo, a partir de debate sobre o necessário aprimoramento da equação Judiciário e Administração Pública, que pode estar na base de uma reforma administrativa adequada para os tempos atuais.
Afinal, por que, na esfera criminal, somente nos casos de crimes tributários, a propositura de denúncia pelo Ministério Público pressupõe a certificação, pelo Estado-Administração competente, de que houve prejuízo ou dano ao bem público? E por que, na esfera cível, a propositura de demanda contra o Poder Público pressupõe prévio pedido administrativo apenas para as demandas contra o INSS?
Numa reforma administrativa substancial, seria meritória a proposta de que tanto servidores públicos quanto particulares somente acionem judicialmente o Poder Público após ao menos apresentarem os requerimentos administrativos pertinentes. Em rigor, não se trata de aprovar grande alteração em nosso ordenamento jurídico: trata-se de incentivar uma mudança cultural mais compreensiva a partir da aprovação de regra legislativa explícita que reitere uma norma que já está em vigor, embora frequentemente esquecida pelos operadores do direito.
Sem necessidade de esgotamento da esfera administrativa, a jurisdição deve ser acionada somente em casos de resposta desfavorável ou de demora injustificada por parte da administração na resolução da demanda do interessado. Esse procedimento não só reforçaria a importância dos processos administrativos formais, respeitando as garantias do contraditório e da ampla defesa, como também permitiria ao Judiciário concentrar-se na solução de problemas mais graves, para os quais os métodos extrajudiciais de resolução de controvérsias não se mostraram eficazes.
A adoção de tais medidas contribuiria para a eficiência e a celeridade da Administração Pública, ao mesmo tempo em que reduziria a sobrecarga do Judiciário. Além disso, promoveria uma cultura de resolução de conflitos mais ágil e menos onerosa, beneficiando tanto o Estado quanto os cidadãos. A adoção de métodos extrajudiciais, como a mediação e a arbitragem, com contribuições de advogados públicos e particulares, deve ser incentivada e institucionalizada, garantindo que as partes envolvidas tenham acesso a soluções rápidas, justas e menos custosas financeira e emocionalmente.
Esse redesenho da relação entre o Judiciário e a Administração Pública não deve ser confundido com a adoção do sistema de contencioso administrativo observado na França. No modelo francês, existe uma jurisdição administrativa separada, responsável por julgar litígios envolvendo a Administração Pública.
A proposta aqui discutida, a partir da radicalização das razões do acórdão do RE 631.240 e da SV 24, visa priorizar as vias administrativas antes do acionamento do Judiciário comum, mantendo a unidade da jurisdição. O objetivo é fortalecer mecanismos administrativos e extrajudiciais de resolução de conflitos, sem criar uma dualidade de jurisdições que poderia complicar ainda mais o sistema judicial brasileiro.
Ao estabelecermos limites claros para a inafastabilidade da jurisdição e promover métodos extrajudiciais de resolução de controvérsias, construiremos um sistema mais justo e eficiente. Superando o antigo clima de desconfiança e de pouca colaboração entre as funções estatais, uma reforma administrativa que reequilibre a relação entre o Judiciário e a administração não é apenas desejável, mas necessária para o desenvolvimento da democracia brasileira.