Reduções de dívidas podem legitimar incidência de PIS e Cofins?

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O presente artigo tem o objetivo de apresentar – mais um pouco –a incessante  iniciativa da Receita Federal em fazer recair a tributação pela Contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e pela Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) sobre quaisquer variações patrimoniais positivas havidas pelas pessoas jurídicas, sejam de caráter definitivo ou não (por exemplo, remissão de dívidas); assim como pretende propor novas abordagens que, eventualmente, contribuam para a precisa e mais acurada consolidação da jurisprudência que vem sendo firmada pelos tribunais administrativos e judiciais do País a respeito do tema.

Afinal, é razoável admitir a incidência de PIS e Cofins sobre as inúmeras hipóteses de perdões e remissões de dívidas que se tem vivenciado atualmente, as quais, por exemplo, refletem-se na concessão, pelos credores, em favor das pessoas jurídicas devedoras, de reduções ou desoneração de suas obrigações originalmente reconhecidas, em especial quando constituem oscilações patrimoniais positivas?

Entendemos que não. E explicamos.

A Constituição Federal de 1988, em sua formatação original, estabelecia a possibilidade jurídica de que o PIS e a Cofins recaíssem apenas sobre o faturamento das pessoas jurídicas, assim entendido como as receitas decorrentes da prestação de serviços, da venda de mercadorias ou da combinação de ambas.

Posteriormente, não conformado com os contornos constitucionais dados pelo Poder Constituinte, o legislador federal tentou, através da Lei 9.718/98, ampliar o alcance das hipóteses de incidência do PIS e da Cofins, para assim contemplar também outras receitas quaisquer.

Essa inovação promovida pelo legislador federal foi ratificada com a promulgação da Emenda Constitucional 20/98, que fez inserir no texto constitucional dispositivos que previssem, também, a tributação, por PIS e Cofins, sobre quaisquer receitas havidas pelas pessoas jurídicas, e não mais apenas sobre o faturamento.

Contudo, a confirmação constitucional posterior, por emenda, não impediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) impusesse importante derrota à União ao julgar a inconstitucionalidade da lei federal em comento, na parte em que estendia a tributação pelo PIS e pela Cofins para outras receitas que não aquelas decorrentes do faturamento das pessoas jurídicas.

Mas, a queda de braço não parou por aí.

Pouco tempo depois, o governo federal editou diferentes medidas provisórias, instituindo o regime supostamente não cumulativo de tributação dessas contribuições sociais, primeiro o do PIS, e depois o da Cofins, as quais acabaram convertendo-se nas famosas – e ainda vigentes – Leis 10.637/02 e 10.833/03.

Importante realçar que, nesses diplomas legais, além do estabelecimento de regras voltadas à apuração não cumulativa do PIS e da Cofins, ficou definido que tais contribuições sociais incidiriam sobre quaisquer receitas obtidas pelas pessoas jurídicas, independentemente da denominação que lhes fossem atribuídas.

Não obstante, sob a justificativa de que estaria, daquele momento em diante, autorizada a exigir e cobrar PIS e Cofins sobre quaisquer receitas obtidas pelas pessoas jurídicas, independentemente da denominação que lhes fossem empregadas, a Receita Federal foi além.

Com efeito, a RFB[1] emitiu opinião no sentido de que, nas hipóteses de redução de passivo, em que haja lançamentos a crédito no resultado, caberia a tributação pelo PIS e pela Cofins, nos termos autorizados pelas Leis 10.637/02 e 10.833/03.

Adicionalmente, o entendimento acima referido tem sido utilizado como fundamento a que as autoridades fiscais estejam lavrando, desde então, autos de infração de PIS e Cofins contra as pessoas jurídicas beneficiárias desses perdões ou remissões de dívidas.

Os argumentos principais de que têm se valido os contribuintes, em suas defesas administrativas e/ou ações judiciais, para contestar a exigência de PIS e Cofins sobre a redução de passivo em questão, são, em apertada síntese, os seguintes: (i) a tributação não pode recair sobre valores que não sejam enquadrados no conceito jurídico de receita, que representa o ingresso de recursos novos, em caráter definitivo, no patrimônio da sociedade devedora; (ii) especificamente com relação aos descontos concedidos por fornecedores (de bens e de serviços), tais valores assumem a natureza de recuperação de despesas, sendo certo que eventual lançamento a crédito no resultado também não se amolda ao conceito de receita, acima mencionado; e (iii) na remota hipótese de se admitir que os valores perdoados ou remitidos possam ser considerados como receita tributável, para fins de incidência de PIS e Cofins, o que se afasta por completo da legislação comercial e tributária, é importante ressaltar que essas receitas não detêm natureza operacional, uma vez que não advêm do regular exercício das atividades das pessoas jurídicas, sendo mais adequado, nesses casos, a tributação como se receitas financeiras o fossem, portanto sujeitas às alíquotas combinadas de 4,65% (a exemplo do ocorre com os descontos condicionados – Solução de Consulta COSIT 531/2017).

A despeito dos argumentos acima apresentados, demonstrando a clareza do racional de que o PIS e a Cofins somente deveriam incidir sobre o que, efetivamente, receita representa, conforme regramentos constitucional e legal vigentes, o comportamento da jurisprudência administrativa tem oscilado ao longo dos anos, sendo certo que, atualmente, mostra-se com viés desfavorável aos contribuintes.

No julgamento do Leading Case, o famoso “caso Sílvio Santos”, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), em um primeiro momento, através do Acórdão 3402-004.002, havia dado ganho de causa aos contribuintes, ao reconhecer a impossibilidade de se fazer incidir PIS e Cofins sobre algo que, em definitivo, receita não é, sendo que o mero lançamento a crédito no resultado – decorrente da operacionalização contábil da redução/extinção do passivo quando não existe uma contrapartida financeira – não configura a hipótese de receita, sob as perspectivas jurídica, legal e constitucional.

Entretanto, em segundo julgamento desse mesmo caso, a Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf, através do Acórdão 9303-008.341 – em meio às infrutíferas discussões se o voto de qualidade deveria privilegiar, em caso de empate, os contribuintes ou o fisco federal – acabou revertendo a decisão anterior para julgar procedentes os lançamentos constantes dos autos de infração de PIS e Cofins expedidos pela Receita Federal.

Por seu turno, quanto à evolução da jurisprudência na esfera judicial, é possível identificar decisões favoráveis aos contribuintes, dando conta, em linhas gerais, de que a redução de passivo não é hipótese de incidência de PIS e Cofins.

A mais relevante delas é sobre o julgamento de um caso análogo (não exatamente sobre perdão de dívidas), em que o STF, ao apreciar o Recurso Extraordinário 606.107, sedimentou o entendimento de que a receita, expressão de capacidade contributiva e delimitada constitucionalmente, consiste no “ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”, advertindo expressamente que “o conceito de receita, acolhido pelo art. 195, I, b, da Constituição Federal, não se confunde com o conceito contábil. A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário”.

Nesse contexto, entendemos ainda possível a complementação da linha de argumentação acima com outros elementos que, de uma vez por todas, contribuam para que a antiga pretensão da RFB, de promover a tributação de hipóteses de redução de passivos (que receita definitivamente não constituem) seja totalmente e definitivamente afastada.

Para tanto, é fundamental buscar apoio no tratamento que, atualmente, é dispensado pelo legislador tributário federal para as hipóteses de transação tributária federal, nos casos especificamente em que se impõe a redução de multas, juros de mora e encargos legais, e para os descontos concedidos no âmbito de processos de recuperação judicial, em relação aos quais a hipótese de incidência do PIS e da Cofins foi legalmente afastada sobre os descontos concedidos pelos credores da recuperação – também conhecidos como haircuts.

Diante disso, é de extrema importância trazer à consideração o disposto no artigo 50-A, I, da Lei 11.101/2005, incluído pela Lei 14.112/2020, quando, expressamente, determina que o PIS e a Cofins não devem incidir sobre os descontos concedidos no âmbito dos processos de recuperação judicial (haircuts).

A RFB alega, por seu turno, que se trata de uma hipótese de isenção – até para manter a coerência – em que supostas receitas advindas de haircuts não devem integrar as bases de cálculo do PIS e da Cofins somente para as hipóteses em que a lei determina.

Contudo, o que se reconhece, através dessa norma legal, é, claramente, que a redução de passivo não deve gerar qualquer efeito tributário, pelo menos não para fins de PIS e Cofins, além do que, conferir esse tipo de tratamento para as empresas em recuperação judicial é apenas o primeiro passo para declarar, a cada oportunidade, a impossibilidade de tributação da redução de passivo.

Por sua vez, a Lei 13.988/2020, em seu artigo 11, inciso I, estabelece a possibilidade de concessão de descontos nas multas, nos juros e nos encargos legais relativos a créditos a serem transacionados que sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade competente.

Além disso, por meio do § 12, do mesmo artigo 11 (incluído pela Lei 14.375/2022), o legislador tributário federal estabeleceu que os descontos concedidos nas hipóteses de transação (multas, juros e encargos legais) não serão computados na apuração das bases de cálculo do IRPJ/CSLL e, também, do PIS e da Cofins.

De se notar que, nesse caso em específico – da transação tributária federal – o legislador já teve o cuidado de sequer fazer referência à expressão ou palavra receita, estabelecendo apenas que os descontos concedidos não serão incluídos nas bases de cálculo do PIS e da Cofins, em um nítido reconhecimento de que tais valores, definitivamente, não devem se amoldar ao conceito jurídico de receita, o único capaz de gerar efeitos tributários, quando verificado, na prática.

Por fim, vale ressaltar que a própria RFB, em relação ao Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), no passado, já se manifestou no sentido de que o perdão ou cancelamento de dívida somente terá repercussão tributária para o beneficiário se corresponder à contraprestação de serviços ao credor (Solução de Consulta DISIT/SRRF08 8022/2016).

Isso significa dizer que a RFB já admite que, para pessoas físicas, o IRPF não deve incidir sobre quaisquer oscilações patrimoniais positivas por elas havidas, na medida em que, mesmo em se tratando de imposto de renda cuja hipótese de incidência permite uma abrangência maior dentro do contexto daquilo que representa acréscimo patrimonial ou não, nem todos os ganhos estão sujeitos à tributação, justamente o que ocorre com os casos de perdão/remissão de dívidas.

O objetivo em trazer a discussão envolvendo o IRPF não é a busca pela equiparação do tratamento dispensável aos tributos em questão (até porque são totalmente distintos entre si, e cobrados de pessoas diferentes); todavia, é importante através desse exemplo evidenciar que, se para o IRPF a própria RFB já limita (e muito) a tributação do “cancelamento da dívida”, é totalmente desarrazoada e juridicamente insustentável a ideia de tributação do perdão/remissão de dívidas, por PIS e Cofins, como se quaisquer variações patrimoniais positivas representassem o gatilho, legitimado constitucional e legalmente, de tributação dessas contribuições – numa tentativa forçada de enquadramento desses supostos ganhos no conceito jurídico, legal e constitucional de receita.

Com base nas considerações acima expostas, e diante da evolução da legislação tributária que regula a matéria, em hipóteses específicas, esperamos que a questão envolvendo a impossibilidade de tributação do perdão/remissão de dívidas, pelo PIS e pela Cofins, evolua ainda mais na consolidação da jurisprudência, de maneira que os tribunais judiciais e administrativos espalhados pelo país valham-se dos argumentos aqui expendidos e no entendimento manifestado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 606.107, assegurando-se aos contribuintes o direito de não submeterem à tributação dessas contribuições em relação a algo que, definitivamente, receita não representa.

[1] Podemos citar apenas como exemplo a Solução de Consulta COSIT nº 176/2018.