Esta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma um dos julgamentos mais relevantes para o futuro do Brasil. Trata-se das ações que questionam a constitucionalidade do artigo 19 da Lei 12.965/14, o Marco Civil da Internet, que estabeleceu princípios e – rasos – deveres para a atividade de empresas de tecnologia na rede mundial de computadores.
Este dispositivo, especificamente, reproduziu o teor de uma lei aprovada nos Estados Unidos em 1996 que blindou as empresas de internet de responsabilizações civis e criminais sobre conteúdos ilegais que circulam em redes sociais e outros espaços da web.
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O Marco Civil da Internet, sancionado quase 20 anos depois do Communications Decency Act (CDA), foi ainda mais draconiano ao garantir que estas plataformas digitais só seriam responsabilizadas se não cumprissem decisões judiciais que determinassem a retirada do conteúdo ilegal.
O que veio depois disso foi uma escalada de manifestações de ódio, suicídios, epidemias de saúde mental entre adolescentes e jovens, apologia ao nazismo e ao terrorismo, entre outros discursos, jogados no ventilador virtual. Garantidoras destes espaços digitais, as chamadas big techs usam a justificativa da liberdade de expressão como valor absoluto para tentar driblar estas cobranças públicas. Existem estudos acadêmicos demonstrando que um laissez-faire na internet criou o caldo de cultura propício para a ascensão da extrema direita em vários cantos do planeta.
Não por acaso, tal como nos desdobramentos do artigo 19 da lei brasileira, a Seção 230 do CDA está sendo questionada pela justiça estadunidense e foi objeto de uma iniciativa de revisão provocada pelo Departamento de Justiça no primeiro governo Trump. Também não parece coincidência o fato de que a União Europeia aprovou há três anos uma lei para regular os serviços digitais – conhecida pela sigla DSA – chamando as empresas a responder por modelos de negócios que não apenas silenciam como promovem conteúdos nos “jardins murados” que são as redes sociais. Mesmo caminho seguido por Austrália, Canadá e tantas outras democracias ocidentais.
Apoio insólito
O Brasil vem tentando, sem sucesso, elevar os mesmos diques de contenção para evitar os estragos proporcionados pela inconstitucionalidade da lei de 2014. Pelo menos desde 2020, algumas proposições provocaram debates acalorados no Congresso e morreram na praia. Engavetamento que contou com atuação incansável dos partidos de extrema direita e direita e de um empurrãozinho interessado das empresas estrangeiras, as quais não hesitaram em usar seu poder econômico monopolista para disseminar campanhas de desinformação sobre as proposições legislativas. Dobradinha que se repete no debate atual.
E se repete com um agravante irônico: o apoio inarredável de algumas mentes progressistas e da linha editorial de parte da grande imprensa. Ao insistir na defesa do artigo 19 como a grande âncora da liberdade da internet brasileira, estas entidades – e think tanks de origem e financiamento duvidosos – pavimentaram a estrada que hoje foi tomada pelos partidos e grupos extremistas com instrumentos garantidos pelos mesmos conglomerados estrangeiros.
O argumento central que permeia discursos aparentemente progressistas se alicerça em uma narrativa liberal, construída desde os primórdios da web (ver aqui), que coloca alguns políticos de esquerda, a grande imprensa, entidades da sociedade civil, pesquisadores da academia no mesmo campo ideológico das big techs.
A exigência de notificação judicial antes da retirada de conteúdos sequer é abalada quando se acusa o elitismo de levar ao Judiciário algo que poderia ser resolvido extrajudicialmente. Mesmo sabendo que a maior parte da população brasileira não tem recursos para bancar uma contenda contra empresas transnacionais ou mesmo pessoas físicas.
Efeito reverso
A diferença de uma década para cá é que em 2013 os movimentos reacionários não engrossavam as hostes na defesa desta legislação. O que criou menos constrangimento para parte da esquerda brasileira, que naquele momento só precisava apoiar o pleito dos conglomerados contra os inimigos da época – as operadoras de serviços de telecomunicações e seu foco na neutralidade de rede (ver aqui).
Quem tem boa memória, porém, não consegue esquecer quando empresas de tecnologia e algumas ONGs assinaram manifestos públicos conjuntamente e atuaram em harmonia em momentos mais cruciais para a tramitação do projeto de lei como forma de influenciar a presidenta Dilma Rousseff, ministros, parlamentares e a própria opinião pública.
Outra lembrança impossível de apagar é ver que a proposição ganhou tração no Congresso Nacional justamente meses após as denúncias de espionagem a autoridades e empresas brasileiras pelas agências de inteligência dos EUA, facilitadas pelas big techs, trazidas à luz pelo analista Edward Snowden em 2013. Ou que figuras políticas que tiveram relevância na aprovação do MCI com a redação ultrapassada hoje atuem em entidades financiadas pelos grupos estrangeiros para defender interesses contrários a qualquer regulação.
Ou seja, ao contrário de gerar uma legislação que responsabilizasse de fato os excessos das empresas transnacionais, o escândalo serviu para bancar uma série de iniciativas que somente garantiram que o salvo-conduto se perpetuasse. O lobby foi tão eficiente que Rousseff sancionou a nova lei durante um evento organizado pelo Comitê que deveria zelar pela internet brasileira juntamente com a entidade que administra ativos da internet mundial e era, então, supervisionada pelo Departamento de Comércio dos EUA. Naquele momento, as pessoas de boa-fé realmente pareciam acreditar que este tipo de reação fosse fundamental para evitar novos casos de abusos por estas plataformas e seu governo. No fundo, a estratégia da administração Obama era justamente a oposta.
Ovo da serpente
A estrada pavimentada em 2014 serviu de lastro legal para que a extrema-direita assumisse o protagonismo digital que hoje a democracia se ressente mundialmente. Assim como ocorreu com as manifestações políticas em diversos países do mundo – as chamadas primaveras – as redes sociais ajudaram a promover discursos criminosos com a justificativa de que qualquer intervenção poderia ser considerada censura. O que não diziam é que já possuíam mecanismos eficazes para retirar das redes aquilo que afrontasse direitos autorais ou conexos. Inclusive, cobravam para fazer isso porque o próprio MCI garantiu apenas estas exceções.
No ano passado, este arranjo liberal também serviu de escudo para que o STF tivesse dificuldades em retirar do ar plataformas que infringiram as leis brasileiras ao se recusarem a bloquear contas de usuários que incitaram a tentativa de golpe no Brasil. Ou seja, mesmo com notificação judicial estas empresas se sentiram à vontade para manter criminosos em seus ambientes online. As ações de Donald Trump nesta mesma linha inconstitucional de liberalização das redes sociais, dá mais conforto ainda para a ação global nesta seara.
É uma lástima constatar que nem o argumento do impacto negativo dos conteúdos nocivos difundidos nestas redes sociais na saúde mental de crianças e adolescentes faça este argumento do artigo 19 ser relativizado. Mesmo o direito brasileiro não rezando pela mesma cartilha da Primeira Emenda da Constituição dos EUA, o modelo de governança da internet sustentada pelo país que criou a rede parece prevalecer sobre a proteção da infância, o negacionismo climático e ataques racistas ou homofóbicos. Mais trágico, ainda, é saber que na falta de regulação pública as empresas mantêm tudo isso no ar porque é o conteúdo que dá mais lucro por gerar mais visualizações.
Principismo frágil
Arraigados ao principismo da liberdade de expressão pelo viés da Seção 230, que trata de uma internet que não existe mais, estes mesmos atores hoje combatem governo, STF e quaisquer outros agentes que enxergam onde o laissez-faire digital preservado vai nos levar mais uma vez.
O argumento do momento destes três segmentos é que as empresas só podem ser responsabilizadas se houver um normativo que atualize a Lei 12.965, regulando as plataformas digitais que atuam no país de uma forma ampla. Para estas vozes, o artigo 19 do MCI é constitucional. Convictos destes argumentos, os movimentos sociais e o governo preparam textos que possam ser apresentados ao Parlamento e reduzir os danos destes “desvios” de comportamentos.
Infelizmente, lamento dizer, o esforço legislativo será insuficiente no curto prazo. Com modelos de negócio totalmente consolidados justamente por este vazio legal e um lobby efetivo de 15 anos no Parlamento, as big techs estão confortáveis. Basta acionar o mesmo discurso de liberdade de expressão de 11 anos atrás, já “comprado” por boa parte da população, para atrair aliados suficientes para engavetarem mais uma vez iniciativas deste tipo.
Para assegurar que não haja obstáculo, entretanto, algumas big techs ainda foram além. Contribuíram em duas oportunidades (ver aqui e aqui) para fazer “letramento digital” de políticos e ativistas da extrema direita em suas ferramentas de inteligência artificial e de rede social durante dois seminários promovidos por um partido político.
Tudo isso ocorrendo cerca de um ano antes de um processo eleitoral que promete ser um dos mais conturbados da nossa história política recente graças a milícias digitais anabolizadas. Parece claro que ambas as partes da aliança vão atuar de forma a impedir a aprovação de qualquer legislação capaz de barrar a difusão indiscriminada de desinformação e crimes de opinião durante o pleito do ano que vem.
Isso vale até para o PL de inteligência artificial que volta a tramitar lentamente na Câmara dos Deputados e em sua redação possui amarras em relação a deep fakes. E tudo sendo naturalizado sem nenhum abaixo-assinado condenando este tipo de aliança até agora.
Por mais heterodoxa que seja, a lógica que alguns ministros do STF estão adotando em seus votos, que recebeu apoio da Advocacia-Geral da União (AGU), busca uma alternativa. A intenção manifesta é trazer razoabilidade a este caos patrocinado por um dispositivo inconstitucional que sobrevive por chantagem principiológica.
Parece fazer sentido que uma regra de transição temporária ao artigo 19 resulte deste julgamento. Novos termos para ocupar o vácuo de uma legislação que está, digamos assim, se inconstitucionalizando pelo papel que as big techs assumiram no cenário contemporâneo e as constantes alterações que elas promovem em seus modelos de negócio.
Enquanto o legislador não assume o papel de colocar algo no lugar de um caduco artigo 19, e isso não se dará até 2026, algumas vozes precisam se levantar para falar contra esta aliança digital perigosa que foi construída e vem sendo reforçada de forma regular. Como nos muitos momentos em que a história se repete, o silêncio ou a conivência pode ser letal para nossa democracia.