Sob a vigência do antigo Decreto-Lei 7.661/1945, era considerado ato de falência o chamamento, pelo devedor, de seus credores, a fim de lhes propor negociação coletiva, nos termos do revogado art. 2º.
Com o objetivo de mudar essa realidade, para deixar de coibir o comportamento e o incentivar, o legislador, em 2005, com a aprovação da Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF), criou a recuperação extrajudicial, instrumento através do qual a devedora pode entrar em acordo com, pelo menos, a maioria de seus credores e pedir homologação judicial, com o fim de obrigar os dissidentes à sujeição às cláusulas aceitas pela vontade majoritária (art. 163, LREF), vertidas em um plano.
Pautando-se pela preservação da atividade empresarial, pela proteção dos interesses dos credores e pela manutenção dos empregos, a recuperação extrajudicial se norteia por eficiência, celeridade e transparência na negociação. De fato, consubstancia-se como alternativa à via judicializada, oportunizando a reestruturação econômico-financeira com mais agilidade e flexibilidade e, sobretudo, menor custo (o que é decisivo em cenário de dificuldade), especialmente reputacional.
Entretanto, a virada jurídica (LREF) não promoveu a cultural, e os primeiros anos de vigência do instituto foram de comedida aplicação. Entre junho de 2005, até dezembro de 2020 (último mês antes que as alterações promovidas pela Lei 14.112/2020, Lei de Reforma, entrassem em vigor), foram 57 casos registrados em todo o território nacional, segundo dados do Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial (OBRE).
Um novo momento se iniciou, porém, com a reforma, que promoveu o aprimoramento do instituto em pontos bastante estratégicos, a saber: (1) criação da tutela negocial (art. 20-B, § 1º), que viabilizou a negociação protegida antes da aplicação de uma das modalidades recuperacionais, facilitando a aprovação de planos extrajudiciais; (2) possibilidade de apresentação de pedido provisório de RE, quando se atinge 33% de adesões, com o compromisso de chegar a mais da metade, em 90 dias (art. 164, § 7º), gerando a imediata proteção contra as execuções dos credores abrangidos; (3) inclusão do crédito trabalhista no escopo do plano, desde que haja negociação com o sindicato da categoria profissional (art. 161, § 1º); (4) clareza quanto à concessão do stay period (art. 164, § 8º), ilidindo dúvidas; (5) redução do quórum de 3/5 para mais da metade dos credores sujeitos (art. 163, caput), facilitando a aprovação; (6) irrevogabilidade da alienação de ativos prevista no plano, na hipótese de posterior decretação de falência (art. 66-A), o que traz segurança jurídica ao adquirente; e, por fim, (7) viabilidade de transformação da RE em judicial, no mesmo processo (art. 164, § 7º), reduzindo gastos e permitindo negociar de forma mais dinâmica e fluída o endividamento.
Revigorada, a recuperação extrajudicial ascendeu significativamente. O número de novos pedidos mais do que dobrou de 2021 para cá. O Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial constatou a ocorrência de 17 pedidos em 2021; 20, em 2022; 42, em 2023; e 16, até maio de 2024, totalizando 95 casos novos em menos de três anos e meio.
Já no formato novo, dois pedidos de recuperação extrajudicial recentes ganharam destaque na imprensa: Grupo Unigel e Casas Bahia. O conglomerado ajuizou tutela negocial ainda no ano passado, tendo trazido seu pedido definitivo aos autos em 21 de maio de 2024, abrangendo R$ 4.143.910.343,83 em créditos. O processo segue em tramitação perante o juízo de primeiro grau. A varejista, por sua vez, apresentou seu plano à homologação em 29 de abril de 2024, com dívida que alcançou a soma de R$ 4.077.957.061,59. A sentença homologatória foi proferida em 19 de junho de 2026, ou seja, em apenas 51 dias.
Ambos são, em termos de valor de dívida, o segundo e o terceiro maior caso desde a reforma e se mostram bastante representativos da realidade da recuperação extrajudicial, em que 84,62% das situações envolvem grandes empresas. Esta é uma das notas que a tem distinguido da recuperação judicial, que apresenta 13,86% dos casos concentrados em empresas do mesmo porte.
Interessante notar que os pequenos negócios ainda são minoria em extrajudiciais: enquanto a RJ é a opção de 60,78%; a RE é de apenas 6,99% deles. No nicho dos empreendimentos de médio porte, constata-se a mesma tendência: 25,36% dos casos são de RJ, e apenas 8,39% de RE.
Quando analisamos apenas o estrato das empresas de grande porte e comparamos os dois institutos, os números seguem indicando a tendência de uma maior utilização neste universo: considerando de 2021 a 2024, ou seja, o pós-reforma, 17,28% dos casos de recuperação de grandes empresas foram feitos na modalidade extrajudicial, enquanto 83,26% optaram pela judicial. Sem este recorte, analisando todo universo recuperacional de casos, há 2,31% de recuperações extrajudiciais e 97,69% de judiciais, no mesmo período (2021-2024).
O OBRE apresenta, ainda, o indicador de importância relativa, ao qual chega dividindo o número de recuperações judiciais pelos de extrajudiciais. Após a reforma, em 2021, no Brasil todo, foram 53 pedidos de RJ para cada 1 de RE: em 2022, 42 por 1; e, 2023, 33; e, em 2024, 43. Isolando, mais uma vez, o segmento de grandes negócios, os números mudam de forma abrupta: 1 RE para 6 RJs, em 2021; 6, em 2022; 4, em 2023; e 5, em 2024, confirmando a tendência.
Uma pergunta se impõe, a partir dos dados trazidos: que fatores explicam essa realidade?
Uma primeira hipótese pode ser a sofisticação da modalidade extrajudicial, que tem alternativas mais personalizadas e que atendem pontualmente às necessidades da empresa e aos interesses dos credores (em contraste com premissas universalizantes do procedimento judicial). Ao mesmo tempo em que isso permite harmonizar endividamentos complexos, exige habilidades avançadas de negociação e construção estratégica, o que nem sempre integra a realidade de empresas de médio e pequeno porte, porquanto acessar profissionais especializados, que absorveriam essa complexidade, pode estar aquém da realidade.
Outro aspecto que influenciaria é o poder de negociação da empresa. A RE permite a recomposição de dívidas em negociação direta, fora do âmbito judicial, sem proteção. Devido ao volume de operações, posicionamento de mercado ou mesmo importância econômica, grandes empresas podem se encontrar em condições de prescindir do Judiciário, impelindo-as ao modelo. Em contrapartida, menos poder de barganha pode resultar em impasses que demandem a busca de um ambiente controlado pela intervenção judicial.
A ideia de um ambiente controlado contribui para a noção de segurança jurídica, incentivando a modalidade judicial, na qual a deflagração do mecanismo precede o diálogo, especialmente no senso comum. Aqui poderia se apontar o refinamento técnico como uma alavanca da RE nos grandes casos, visto que acomodariam soluções menos óbvias.
O momento para se iniciar a negociação também é relevante na gradação da intervenção protetiva estatal. Quanto maior e mais longa a inadimplência, o número de execuções individuais que serão ajuizadas contra o devedor em crise também cresce.
Considerando que a negociação, na modalidade extrajudicial, parece acontecer antes do travamento do diálogo ou do rompimento com os credores – e, por isso, do ajuizamento das execuções individuais –, é provável que o estresse financeiro não tenha progredido para o rompimento.
Daí parece fazer sentido pensar que empresas grandes, com governança mais robusta, tendem a entender mais cedo sua incapacidade de honrar com as obrigações, deflagrando o reperfilamento da dívida de forma antecipada. Temperatura e pressão ainda sob controle, autocomposição incentivada.
Por fim, há um componente ligado à reputação que também precisa ser considerado. A opção pela RJ pode ser sintomática de um quadro econômico-financeiro mais crítico, já que a modalidade judicial conta com garantias legais abrangentes e impositivas, mas que têm como contrapartida a ampla divulgação de sua aplicação, a inclusão do estado recuperacional no nome empresarial.
Na RE, prevalece a ideia de que a empresa tem a situação sob controle, pois está buscando soluções diretamente junto aos seus credores. Vide as ações das Casas Bahia na bolsa de valores, que dispararam quando foi anunciada a RE. Isso porque ela sinaliza a capacidade da empresa de se reorganizar e reafirma o seu potencial de prosperar, favorecendo a imagem. Logo, firmas com gestão de marca mais robusta, logo, maiores, poderão preferir a modalidade desjudicializada.
Em que pese a realidade que os números capturam, em que maioria dos casos de recuperação extrajudicial envolve grandes empresas, acredita-se que ela pode ser uma opção igualmente interessante para médias e pequenas empresas, desde que conduzida de maneira adequada e responsável, pois o estímulo à negociação extrajudicial entre devedores e credores amplia a autonomia dos envolvidos, traz celeridade e reduz custos.
Para isso será preciso também superar uma cultura de litigiosidade e uma postura não colaborativa que ainda é marca de alguns conflitos. Os dados disponíveis, contudo, indicam que novos rumos estão se materializando no horizonte da aplicação da RE, e que o futuro tende a ser de aumento consistente e sustentável de casos, o que levará a uma nova configuração de mercado.