A decisão do STF na ADPF 1058 mudou o eixo da discussão sobre o recreio do professor. O Supremo concluiu neste mês o julgamento da ação proposta pela Abrafi e confirmou que, em regra, o recreio e os intervalos entre aulas integram a jornada de trabalho e devem ser remunerados.
Ao mesmo tempo, fez um ajuste importante: afastou a ideia de uma presunção absoluta, que vinha se consolidando na Justiça do Trabalho, de que esse tempo seria sempre e automaticamente “tempo à disposição”, sem espaço para prova em sentido diverso.
Em termos práticos, a corte manteve o entendimento de que o professor tende a estar à disposição durante o recreio, mas reconheceu que podem existir situações em que aquele intervalo é, de fato, um momento de descanso pessoal. Nesses casos, admitiu que o empregador demonstre que, naquele recorte concreto, o docente não esteve à disposição da escola.
A consequência é sutil, mas relevante: o recreio continua, em regra, compondo a jornada, porém deixa de ser tratado como algo rigidamente imutável, abrindo espaço para um desenho mais cuidadoso das pausas.
Esse movimento interessa diretamente a quem está à frente da gestão educacional. Durante anos, muitas instituições conviveram com um cenário em que ou remuneravam sempre o recreio, ou enfrentavam uma jurisprudência que, na prática, partia de uma ficção generalizante: a de que todos os intervalos, em qualquer contexto, eram inevitavelmente tempo de serviço.
Com a ADPF 1058, não se trata de “liberar” o recreio, mas de permitir que a realidade seja considerada. A partir de agora, há espaço – e responsabilidade – para organizar as pausas de um jeito que respeite a CLT, a decisão do STF e a saúde dos docentes, com previsibilidade e transparência.
A própria legislação sempre trouxe essa tensão. O artigo 4º da CLT considera tempo de serviço o período em que o empregado está à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens. Já o artigo 71 trata o intervalo intrajornada como tempo de descanso, que não se computa na duração do trabalho.
A jurisprudência trabalhista, em muitos casos, acabou privilegiando a leitura do artigo 4º, entendendo que, por estar fisicamente na escola, o professor estaria necessariamente à disposição. O STF, ao julgar a ADPF 1058, ajudou a recompor esse quadro: reafirmou o critério do tempo à disposição como regra geral, mas lembrou que o intervalo também pode ser um espaço verdadeiro de desligamento, desde que isso seja organizado e comprovado.
A pergunta que se coloca, então, é menos teórica e mais operacional: o que fazer daqui para frente? A decisão do Supremo não elimina o tema, mas redefine o terreno em que as instituições vão atuar. De um lado, a presunção automática deixa de ser aceitável. De outro, cresce a importância de demonstrar, com base em fatos e documentos, como o recreio é vivido na rotina escolar.
Um primeiro passo está na forma como a escola se apresenta por escrito. Contratos de trabalho e regulamentos internos podem – e deveriam – registrar a existência do intervalo entre aulas, com a sua finalidade clara: um período destinado ao descanso do docente.
Vale explicitar que esse tempo não deve ser utilizado para atividades típicas de aula, atendimento a pais ou tarefas administrativas. Essa previsão não encerra a discussão, mas sinaliza que a instituição reconhece o intervalo como um direito e estrutura a sua rotina para que ele cumpra esse papel.
Outro instrumento relevante é a negociação coletiva. O STF foi explícito ao reconhecer que a matéria pode ser regulada por lei ou por normas coletivas. Convenções e acordos com os sindicatos de professores podem detalhar a dinâmica dos recreios: duração, forma de concessão, condições em que são ou não computados na jornada, sempre respeitando os patamares mínimos legais.
Ao trazer o tema para a mesa de negociação, instituições e representantes dos docentes podem desenhar soluções equilibradas, que deem segurança jurídica às escolas e previsibilidade aos professores, reduzindo a chance de conflitos posteriores.
O controle da jornada também ganha centralidade. A decisão do STF, ao admitir a possibilidade de que um intervalo seja considerado descanso e não tempo à disposição, pressupõe que essa realidade possa ser demonstrada. Sistemas de registro de ponto – sejam eletrônicos, aplicativos ou outro modelo idôneo – podem ser configurados para refletir a grade real: início de trabalho, sequência de aulas, recreio, retorno.
Em determinadas situações, fará sentido registrar o intervalo como tal, especialmente quando a escola quiser evidenciar que naquele período não houve exigência de atividade. Em jornadas fracionadas, com manhã e tarde, separar formalmente os turnos ajuda a evitar que um grande “vazio” entre os blocos seja confundido com trabalho contínuo.
Nada disso, porém, funciona se a própria prática pedagógica não for ajustada. Em muitas instituições, o recreio acaba, na prática, absorvendo demandas que sobraram: conversas rápidas com coordenação, atendimento de alunos, acertos com famílias.
A decisão do STF convida a repensar esse uso. Se a escola pretende tratar o intervalo como descanso genuíno – e eventualmente afastar o seu cômputo em algumas situações –, é importante proteger esse tempo. Uma alternativa é organizar equipes de apoio ou monitores para cuidar do pátio, permitindo que os professores tenham, com regularidade, um recreio efetivamente livre. Outra é estabelecer horários próprios para reuniões e atendimento, evitando que tudo recaia sobre aqueles 15 minutos.
Também há instituições que, por seu modelo de negócios, preferirão simplesmente reconhecer o recreio como tempo de serviço e incorporá-lo à remuneração de forma estável. Essa é uma escolha legítima: simplifica o desenho jurídico e elimina a discussão sobre o perfil do intervalo, ao custo, evidentemente, de incorporar esse período ao cálculo da jornada.
Em certos contextos – especialmente em redes maiores, com mais folga financeira e sistemas robustos de controle – essa opção pode ser administrativamente mais simples do que a construção de uma lógica fina de distinção entre descanso e disponibilidade.
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O importante é que, qualquer que seja o caminho escolhido, ele seja consistente e transparente. A ADPF 1058 não retirou direitos dos professores, tampouco “deu licença” para as instituições ignorarem a realidade das pausas. O que o STF fez foi relativizar uma presunção absoluta e devolver às escolas e aos próprios docentes a possibilidade de organizar o recreio de forma mais aderente à sua rotina concreta, desde que isso seja feito com seriedade, planejamento e respeito à legislação.
Em última análise, o recreio deixa de ser apenas um problema de “minutos” e se torna um indicador de maturidade de gestão. Instituições que se anteciparem – revisando documentos, dialogando com sindicatos, modernizando o controle de jornada e qualificando o ambiente de descanso – terão condições melhores de conciliar segurança jurídica, sustentabilidade econômica e cuidado com quem está na sala de aula todos os dias. E essa combinação, no fim, interessa a todo o ecossistema educacional.