Com a reforma trabalhista ocorrida no ano de 2017 passou-se a ter uma facilitação da “pejotização”, especialmente pela permissão através da Lei 6.019 de que não somente as atividades-meio pudessem ser objeto de contratação, mas também aquelas atividades-fim. Desta forma, diversas empresas passaram a adotar o formato de contratação de pessoas jurídicas para prestação de serviços, seja como atividade meio ou fim da empresa contratante.
É a partir deste cenário de substituição de contratações de funcionários empregados (CLT) por contratos de prestação de serviço (PJ) é que surge o objeto de diversas fiscalizações pela Receita Federal. Isto porque busca-se verificar se, de fato, aquele contrato de prestação de serviço não se trata de um vínculo de emprego mascarado com o intuito de redução de carga tributária.
O cenário posto se mostra da seguinte forma. A empresa (A) contrata uma pessoa jurídica (B) para prestação de serviços, que por sua vez, recolhe suas contribuições previdenciárias patronais sobre o pró-labore de seu sócio, como prevê o art. 12, V, “f” da Lei 8.212/91.
Por ocasião de uma fiscalização, é possível que se constate a presença dos requisitos de uma relação de emprego, gerando uma reclassificação por parte da Receita Federal, com a cobrança das diferenças de contribuições previdenciárias não pagas.
E é neste sentido que surge o debate sobre qual a conduta a ser adotada com relação as contribuições previdenciárias patronais pagas sobre o pró-labore do sócio da empresa (B), reclassificada para uma relação de emprego. Uma das posições adotadas é pela impossibilidade de dedução ou apropriação das contribuições pagas, considerando que elas foram recolhidas por contribuintes distintos, o que afastaria a possibilidade de apropriação dos pagamentos.
Por outro lado, posição à qual me filio, entende-se ser possível de aproveitamento as contribuições patronais pagas sobre o pró-labore do sócio, que passou a ter sua relação considerada como de emprego.
Em sendo legítima a reclassificação da relação jurídica, o que se tem como premissa do presente artigo, se mostra necessária a possibilidade de dedução das contribuições sociais previdenciárias recolhidas pelas pessoas jurídica. Isto porque manter-se o recolhimento já efetuado, sem a apropriação dele dos valores posteriormente exigidos, configuraria pagamento em duplicidade, sem fundamento jurídico válido.
É assegurado em nosso sistema jurídico a proteção contra o enriquecimento sem causa e, ao passo em que a própria fiscalização tributária efetua a reclassificação do negócio jurídico apresentado e, tendo conhecimento dos valores pagos à título de contribuição previdenciária, tem o dever de efetuar a apropriação dos valores pagos indevidamente. Ademais, o caráter de pagamento indevido somente vem a ocorrer a partir de uma análise da própria fiscalização, fazendo com que, até então, o recolhimento da contribuição previdenciária fosse devido.
Não é crível, ainda, reclassificar de um contrato de prestação de serviço para uma relação de emprego e, mesmo diante de um pagamento indevido, deixar ao critério do contribuinte, agora empregado, ter que buscar a repetição de indébito das contribuições previdenciárias pagas por sua empresa. Tal fato mostra-se ainda mais discrepante quando verificamos que o então sócio da empresa contratada, e agora empregado, não integra a lide administrativa tributária que analisa a reclassificação.
Assumir que a responsabilidade pela repetição de indébito dos valores pagos indevidamente à título de contribuição previdenciária é o sócio reclassificado para empregado resulta, invariavelmente, na obrigação de notificar o mesmo da decisão proferida na esfera administrativa. Isto porque, em eventual pedido de repetição de indébito não seria possível uma rediscussão da matéria, fazendo com que a decisão de reclassificou a relação jurídica também deva produzir os mesmos efeitos no pedido de repetição de indébito das contribuições previdenciárias.
Ainda que não se trate de uma coisa julgada, inviável seria, para fins de cobrança de diferenças não pagas o entendimento ser no sentido da reclassificação e, para fins de repetição de indébito, ser no sentido da validade das contribuições pagas, o que geraria um enriquecimento ilícito da administração pública.
Deixa-se claro, com isso, não se tratar propriamente dito do instituto da compensação tributária, o que assumiria a premissa de uma identidade de contribuintes no débito e no crédito, mas sim de um aproveitamento das contribuições pagas relativamente ao mesmo negócio jurídico, inicialmente tido como relação de prestação de serviço e, posteriormente, reclassificado para relação de emprego.
De outro lado, na situação de a pessoa jurídica interposta já ter efetuado recolhimentos previdenciários sobre os valores pagos à pessoa física reclassificada como empregado, a hipótese de não permitir o aproveitamento destes valores no lançamento incorreria em enriquecimento ilícito da Fazenda Pública.
Ainda, com relação à violação do princípio constitucional da eficiência, o conselheiro Mário Pereira de Pinho Filho, em voto condutor do Acórdão 9202-009.262 assim concluiu:
Por certo, uma vez que Fiscalização desconsiderou o deslocamento da responsabilidade tributária, efetivado a partir de artifício dito simulatório, parece razoável que as contribuições dos segurados, efetivamente recolhidas pela pessoa jurídica interposta, sobre as mesmas verbas, possam ser abatidos das contribuições apuradas. Aliás, deixar de considerar os tributos efetivamente recolhidos na interposta pessoa ou condicionar essa hipótese a posterior pedido de compensação ou restituição, além de não se mostrar razoável, implicaria também ofensa ao princípio constitucional da eficiência.[1]
De fato, deixar de considerar os tributos efetivamente recolhidos ou condicionar a posterior pedido de compensação ou restituição incorre em violação ao princípio constitucional da eficiência.
Por fim, ressalto alguns dos posicionamentos já adotados sobre a matéria:
ASSUNTO: CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS Período de apuração:
01/01/2010 a 31/12/2010 CARACTERIZAÇÃO DE VÍNCULO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DOS SEGURADOS. RECOLHIMENTO POR INTERPOSTA PESSOA. APROVEITAMENTO. POSSIBILIDADE. As contribuições previdenciárias, referentes à parte dos segurados, paga por pessoas jurídicas interpostas em relação a seus sócios ou empregados, cujas contratações tenham sido reclassificadas como relação de emprego em empresa diversa, podem ser deduzidas dos valores considerados no auto de infração. (Carf. Acórdão nº 9202-009.262, Cons. Rel. MÁRIO PEREIRA DE PINHO FILHO, sessão de 19/11/2020)[2]
(…) TRABALHADORES VINCULADOS À EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇO OPTANTE PELO SIMPLES FEDERAL. DESCONSIDERAÇÃO DO VÍNCULO EXISTENTE. CARACTERIZAÇÃO DIRETAMENTE COM A EMPRESA PRINCIPAL. PRIMAZIA DA REALIDADE SOBRE A FORMA. (…)
SIMPLES FEDERAL. EMPRESA INTERPOSTA. APROVEITAMENTO DE RECOLHIMENTOS PELA EMPRESA PRINCIPAL. Tendo sido constituído, pelo lançamento, vínculo direto entre os trabalhadores e o Sujeito Passivo, entendo que esse é o verdadeiro contribuinte, aquele que, de fato, incidiu nos fatos geradores de contribuição previdenciária, o que ensejou o aproveitamento das contribuições descontadas dos segurados. Nesse sentido, as contribuições patronais previdenciárias, mesmo que recolhidas na sistemática do SIMPLES, devem ser aproveitadas quando do lançamento tributário. Inteligência da Súmula Carf 76. (…) Recurso voluntário provido em parte. (Acórdão nº 2401-003.977, Redator Designado Conselheiro Carlos Henrique de Oliveira, publicado em 05/04/2016)[3]
Desta forma, em obediência ao princípio da eficiência e do não enriquecimento ilícito da administração pública, mostra-se necessário que, nas hipóteses de reclassificação da relação jurídica de contrato de prestação de serviços por uma Pessoa Jurídica, para uma relação de emprego, sejam deduzidas as contribuições previdenciárias pagas sobre o pró-labore da empresa reclassificada.
[1] Acórdão 9202-009.262
[2] Carf. Acórdão 9202-009.262, Cons. Rel. MÁRIO PEREIRA DE PINHO FILHO, sessão de 19/11/2020
[3] Acórdão 2401-003.977, Redator Designado Conselheiro Carlos Henrique de Oliveira, publicado em 05/04/2016