Rebaixamento do Santos simboliza decadência do Brasil litorâneo ante força do agro

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Era uma vez um país que se industrializava em meio a uma democracia incompleta, cercada por tendências autoritárias, e cuja identidade foi forjada entre quatro linhas brancas que delimitam gramados imperfeitos, por pés de homens de diversas cores e origens. A síntese do Brasil entre os anos 1950 e 1980 teve sua réplica no microcosmo da cidade de Santos, no litoral de São Paulo, mais especificamente na Vila Belmiro, bairro que abriga o Estádio Urbano Caldeira, o velho alçapão do Santos Futebol Clube. 

Talvez se trate de um caso único na história do futebol: um time conquistar tantas glórias sem ter sua origem numa capital nacional, estadual ou provincial. Santos — a cidade — já vinha de um ciclo de pujança impulsionado pela exportação de café no século 19 e começo do século 20. A grande virada, porém, do mais robusto time de futebol local deu-se apenas a partir de 1955, quando o clube homônimo ganhou seu segundo Campeonato Paulista depois de 20 anos de jejum. No ano seguinte, Edson Arantes do Nascimento desembarcou na Vila Belmiro para se fazer Pelé e, com tantos outros jogadores talentosos, projetar o nome do Santos — clube e cidade — no mundo e quiçá na eternidade.

Santos não era mais o porto do café apenas. A industrialização crescente de São Paulo e a instalação de um polo petroquímico e siderúrgico na vizinha Cubatão gerou riqueza para além dos velhos barões que encheram os bolsos cultivando e exportando aquela commodity. Do ponto de vista cultural e político, a cidade era efervescente. Já durante a era cafeeira, Santos havia ganhado a alcunha de “Barcelona brasileira”, com extensa influência sindical, em particular dos estivadores. Em meio à paranoia comunista que antecedeu e justificou em parte o golpe militar de 1964, o apelido ainda se justificava, mas fora substituído por “nova Moscou” e “Cidade Vermelha”. O prefeito da época, José Gomes, do PTB varguista, foi deposto assim que a ditadura militar começou.

Pelé jogaria no clube até 1974, mas o auge do alvinegro praiano e da cidade tinha passado, uma estagnação talvez iniciada com o fim da democracia, mas convertida em espiral descendente apenas no começo do século 21. Depois das eras Robinho-Diego (com dois títulos brasileiros, em 2002 e 2004) e a ascensão de Neymar (que levou o time à conquista da primeira e única Libertadores depois da era Pelé em 2011), o Santos e a Santos parecem ter entrado num declínio que, temo, seja irreversível.

Os embates políticos entre esquerda e direita democráticas do pós-ditadura na política local deram lugar nos anos 2010 ao domínio de um grupo político com raízes oligárquicas no autoritarismo e que recentemente abraçou o bolsonarismo de modo explícito. Até agora sequer tiveram a coragem de homenagear Pelé à altura: mesmo depois de um ano de sua morte, causa espécie que a cidade não tenha nenhum de seus principais logradouros com o nome daquele que é seu principal personagem histórico — supera até mesmo José Bonifácio, santista de nascimento e patriarca da independência.

Curiosamente, Santos abraçou uma tendência iniciada em regiões do Centro-Oeste que hoje dão as cartas na política e economia nacionais. Nas eleições de 2022, Jair Bolsonaro (PL) recebeu 56,20% dos votos. Seu pupilo-mor, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), obteve 56,58%. Para quem se imaginou ser uma Barcelona, deve ser duro perceber-se uma Miami do terceiro mundo, reacionária, com cada vez mais prédios de arquitetura duvidosa. Ambas, aliás, tiveram Messi em seus respectivos times locais. Nos últimos anos, Santos teve apenas Neymar, que, em vez de bolas de ouro, coleciona flertes com a extrema direita nacional.

Outra ironia é que enquanto o Santos vai jogar a série B sem boas perspectivas de recuperação devido à crise financeira em que se encontra, Cuiabá — uma das capitais do agro e do bolsonarismo — tem um time homônimo na primeira divisão nacional há três temporadas. O eixo da força da economia e política parece ser indissociável de transformações nos esportes, inclusive o futebol.

Tais transformações também colocam em xeque o maior porto da América Latina, localizado na cidade. Com a melhoria da infraestrutura no Norte do país, o escoamento de soja e outras commodities tende a prescindir de Santos num futuro próximo.

Todos aqueles que imaginavam um Brasil industrializado, democrático, orgulhoso de seu sincretismo, livre do reacionarismo devem chorar a queda do Santos e do meio sociopolítico e econômico que permitiu a ascensão de um dos maiores times da história e do melhor jogador de todos os tempos. Se Santos — o time e a cidade — não são capazes de defender o legado de Pelé, que os demais brasileiros o façam. Pode ser a única lembrança tangível daquilo que, parafraseando Darcy Ribeiro, poderia ter sido o Brasil, mas nos causa tamanha dor porque cada vez mais integra apenas um passado sob risco de ser definitivamente esquecido.